Por MARIAROSARIA FABRIS*
Considerações sobre a novela de Giovanni Verga e suas adaptações no teatro, na ópera e no cinema
Em 1874, com a publicação da novela Nedda, Giovanni Verga deixava momentaneamente de lado os romances mundanos ambientados nas rodas da burguesia e da aristocracia,[1] que haviam lhe permitido consolidar sua fama de escritor, e dava início a uma virada em sua carreira, ao contar a história de uma pobre catadora de azeitona, que pecava levada pela paixão.
Nedda inaugurava a fase madura de Verga, quando este se aproximou do Verismo, levado pelo conterrâneo Luigi Capuana, grande divulgador do ideário do movimento, e influenciado por novas leituras, principalmente de autores franceses, dos quais extraiu antes a sugestão de um método do que um modelo, valendo-se dos preceitos do Naturalismo apenas na medida em que o ajudaram a enxergar melhor a realidade da nativa Sicília.
O Verismo (o termo deriva de vero, no sentido de reale [“real”, “realidade”]) nasceu da penetração da tendência naturalista no meio intelectual italiano pós-unitário por volta de 1870, tendência que se afirmou a partir dos debates sobre o Realismo que agitaram Milão durante uma década, abrindo caminho para uma renovação da literatura, com abordagens mais modernas da realidade. Embora adotasse alguns postulados do movimento francês, o Verismo teve um caráter regionalista, tendendo a retratar antes ambientes rurais com sua massa camponesa do que os espaços urbanos em que conviviam todas as classes sociais.
Com o sucesso de Nedda, os editores solicitaram ao escritor outras narrativas breves, que deram origem às coletâneas de novelas que tinham como tema principal o mundo popular da terra natal, dentre as quais Vita dei campi (1880) e Novelle rusticane (1883). A esse período fecundo de sua produção pertence também Padron ‘Ntoni, um “esboço marinharesco”, que Verga havia começado a elaborar em 1874, mas que não o satisfazia. O texto permanecia inédito, embora o autor tivesse tornado a redigi-lo quatro vezes, dedicando-se a ele com afinco, como se deduz de uma carta ao amigo Capuana, datada de 14 de março de 1879: “confio em Padron ‘Ntoni e gostaria […] de ter-lhe dado aquela marca de fresco e sereno recolhimento, que deveria estabelecer um imenso contraste com as paixões turbinosas e incessantes das grandes cidades, com aquelas necessidades fictícias, e aquela outra perspectiva das ideias ou, diria eu, também dos sentimentos. Por isso teria desejado ir refugiar-me no campo, à beira-mar, no meio daqueles pescadores e colhê-los vivos, como Deus os fez. Mas, talvez não seja ruim, por outro lado, que eu os considere a certa distância, no meio da atividade de uma cidade como Milão ou Florença. Não lhe parece que, para nós, o aspecto de certas coisas só tem importância se visto de um determinado ângulo visual? E que nunca conseguiremos ser tão sincera e eficazmente verdadeiros como quando fazemos um trabalho de reconstrução intelectual e substituímos nossos olhos por nossa mente?”
Finalmente, em janeiro de 1881, o escritor publicou o episódio da tempestade na revista La nuova antologia, sob o título de “Poveri pescatori”, e, em fevereiro, lançava o romance, do qual, em abril do ano anterior, havia cortado as quarenta e duas páginas iniciais, para que a obra resultasse mais eficaz e interessante (ciente de sacrificar paisagem, ambiente e personagens) e mudado o título. I Malavoglia (Os Malavoglia) foi o primeiro livro do ciclo La marea, mais tarde intitulado I vinti, integrado posteriormente por Mastro-don Gesualdo (Mestre Dom Gesualdo, 1889), projeto que confirmava a adesão de Verga ao Verismo.[2]
I Malavoglia narra a história dos Toscano, vulgo os Malavoglia, uma família de pescadores chefiada pelo patriarca Padron ‘Ntoni, cuja ruína começa depois de uma frustrada tentativa de obter um lucro suplementar com a venda de uma carga de tremoços. O jovem ‘Ntoni, ao servir na Marinha, descobre o mundo e tenta em vão apartar-se da vida de sacrifícios que os outros membros da família aceitam com resignação. Se ‘Ntoni acaba derrotado, os irmãos que conseguiram superar os lutos e as desgraças que se abateram sobre a “casa da nespereira”, lutam para reconstruir a unidade familiar.
O itinerário de Giovanni Verga verista está todo contido nas obras concebidas no mesmo período: as novelas e os dois romances dos anos 1880, considerados suas obras-primas. Para o escritor, as narrativas breves eram esboços, estudos preparatórios para os textos maiores; redigidas paralelamente, as novelas permitem verificar como temas, personagens e técnicas narrativas foram aproveitados nos vários gêneros aos quais o autor se dedicou, inclusive o teatral.
A gestação de I Malavoglia, por exemplo, refletiu-se na elaboração de Vita dei campi (e vice-versa) e Novelle rusticane. O imobilismo social a que estão condenados o velho pescador e sua família em Fantasticheria (Fantasia, 1879, publicada em seguida na primeira coletânea) espelha a mesma condição que aprisionará Padron ‘Ntoni e seu núcleo familiar, enquanto Pane nero (Pão amargo, 1882, depois anexada à segunda) pode ser considerada um desdobramento cínico de I Malavoglia, com a degradação da figura do chefe de família e a afirmação de uma nova provedora, que reconstitui o lar desfeito graças a seu corpo oferecido como mercadoria de troca.
O caso mais significativo para entender esse trânsito entre gêneros é Cavalleria rusticana (1880), que integra Vita dei campi: o início da novela deriva diretamente do episódio romanesco em que o jovem ‘Ntoni, ao voltar do serviço militar, namorica as garotas da aldeia: “O ‘Ntoni tinha chegado em dia de festa, e andava de porta em porta a cumprimentar os vizinhos e os conhecidos, de modo que onde passava todos ficavam a olhar para ele; os amigos seguiam-no em cortejo, e as moças debruçavam-se às janelas; mas a única que não se via era a Sara da comadre Tudda.
– Foi com o marido até Ognina, disse-lhe a Santuzza. Casou com o Menico Trinca, que era viúvo com seis filhos pequenos, mas rico como um porco. […]
A comadre Venera […] queria gozar da cara que o ‘Ntoni faria com aquela notícia. Mas também para ele o tempo tinha passado, e costuma-se dizer “longe dos olhos, longe do coração”. O ‘Ntoni agora usava a boina sobre a orelha. – O compadre Menico quer morrer chifrudo, disse ele para consolar-se […].
O ‘Ntoni foi-se embora todo gabola, rebolando os quadris, com um cortejo de amigos, e gostaria que todos os dias fosse domingo para passear com sua camisa de estrelas […].
Enfim, o ‘Ntoni passou o dia inteiro se divertindo […].
Na chalupa caçoavam dele porque a Sara dera-lhe o fora […]. – “Carne de porco e homens de guerra duram pouco”, diz o provérbio; por isso a Sara deu o fora em você. […]
– Namorada é o que não me falta, respondeu o ‘Ntoni; em Nápoles corriam atrás de mim feito cachorrinhos”.
Na transposição do triângulo amoroso para a novela, o jovem ‘Ntoni, pescador, torna-se Turiddu Macca, camponês, Sara transforma-se em Lola e Menico Trinca em compadre Alfio:
“Turiddu Macca, o filho de nhá Nunzia, terminado o serviço militar, todos os domingos pavoneava-se na praça com o uniforme de bersagliere e o barrete vermelho, feito o homem do realejo quando arma a barraca com o periquito. Indo à missa com o nariz escondido no xale, as moças comiam-no com os olhos e os moleques, como moscas, zumbiam ao redor dele. Ele trouxera também um cachimbo talhado, com o rei a cavalo que parecia vivo. E, levantando a perna como para dar um pontapé, acendia os fósforos nos fundilhos das calças. Apesar disso tudo, a Lola do seu Angelo não apareceu nem na missa nem na sacada, pois comprometera-se com um tal, natural de Licodia, que era carroceiro e tinha quatro mulas de Sortino no estábulo. Como soube disso, logo no início, Turiddu – diacho – queria arrancar as tripas do fulano de Licodia, ora se queria! No entanto não fez nada e desabafou indo cantar as canções de desdém que sabia sob a janela da moça.
– Mas esse Turiddu, filho da nhá Nunzia, não tem nada pra fazer – diziam os vizinhos – pois passa as noites cantando como um pássaro desacompanhado?
Finalmente ele topou com Lola que voltava da romaria à Nossa Senhora dos Perigos e, ao vê-lo, não ficou nem pálida nem corada, como se não fosse da sua conta.
– Felizardo quem lhe vê! – disse ele.
– Oh, compadre Turiddu, disseram-me que você havia voltado no início do mês.
– Para mim, disseram outras coisas mais! – respondeu ele – é verdade que você vai se casar com compadre Alfio, o carroceiro?
– Se Deus quiser – respondeu Lola, puxando sobre o queixo as duas pontas do lenço.
– A vontade de Deus pra você é aquela que mais lhe convém. A vontade de Deus foi que eu havia de voltar de tão longe pra ter essas ótimas notícias, nhá Lola!
O pobre diabo ainda tentava bancar o valente, mas a voz tornara-se-lhe rouca e andava atrás da moça gingando, de forma que a borla do barrete lhe dançava sobre os ombros de um lado para outro. Ela, no íntimo, tinha pena de vê-lo tão abatido, mas não queria iludi-lo com lisonjas.
– Escute, compadre Turiddu – disse finalmente – deixe eu alcançar minhas amigas. Que diriam na vila ao me ver com você?…
–Tá certo – respondeu Turiddu – agora que vai se casar com o compadre Alfio, que tem quatro mulas no estábulo, o povo não deve falar. Minha mãe, no entanto, coitada, teve que vender a nossa mula baia e as poucas videiras na beira da estrada durante o tempo que eu servia o exército. Mas tudo isso passou e você não pensa mais no tempo que nos falávamos pela janela do quintal e você me deu um lenço antes de eu ir embora. Só Deus sabe as lágrimas que derramei nele ao partir para tão longe, onde nem o nome sabiam da nossa terra. Então adeus, nhá Lola, vamos fazer de conta que choveu e parou e a nossa amizade acabou.
Nhá Lola casou-se com o carroceiro e aos domingos ficava na sacada, as mãos sobre o ventre para mostrar todos os grandes anéis de ouro que o marido lhe dera. Turiddu continuava indo e vindo pela viela, com o cachimbo na boca, as mãos no bolso e o ar indiferente, de olho nas moças. Mas por dentro roía-se, pois o marido de Lola possuía aquele ouro todo e ela fingia não reparar nele quando passava”.
Para desforrar-se, Turiddu torna-se capataz de Cola, um rico vinhateiro, pai de Santa, com a qual o jovem começa a flertar. Lola, enciumada, consegue enredá-lo de novo e Santa, para vingar-se, conta tudo a compadre Alfio, que, na véspera da Páscoa, lança um desafio ao rival. No dia seguinte, ao alvorecer, os dois se enfrentam e compadre Alfio, apesar de ferido, consegue matar Turiddu.
Atendendo aos apelos do amigo Giuseppe Giacosa, afamado dramaturgo lombardo, Verga transpôs a novela para o palco, em 1883. No dia 12 de outubro, escrevia-lhe Capuana (em carta transcrita por Sarah Zappulla Muscarà): “Li e confirmei minha ideia, ou seja, que, pelo que nós entendemos por romance e por novela, deles ao drama propriamente dito há apenas um passo e não é muito difícil. Alguém que tenha a mão acostumada a todas as malícias da cena não teria sabido adaptar melhor do que você fez sua novela para o teatro. Está tudo lá: o ambiente, a rapidez da ação, o efeito”.[3]
De fato, segundo Pietro Gibellini, havia uma “teatralidade latente” na novela, a qual, em sua primeira parte, ao lado de momentos de comédia (como a corte de Turiddu a Santa), “tem a cadência de um drama”, enquanto, na segunda parte, “o tom é o da tragédia ou da epopeia trágica”, passagem marcada pelo convite de Lola ao jovem para visitá-la.[4]
A adaptação levou a algumas modificações: ao lado dos personagens já presentes na narrativa breve – Turiddu Macca, Santuzza, Compadre Alfio di Licodiano, Nhá Lola, sua esposa – ganham vida Nhá Nunzia, mãe de Turiddu (antes apenas citada), Tio Brasi, estribeiro, Comadre Camilla, sua esposa, Tia Filomena e Pippuzza, que anunciará a morte de Turiddu; a questão econômica (com Lola que se casa com um homem mais rico e aos domingos ostenta sua riqueza) passa em segundo plano diante da paixão e do ciúme declarados de Santuzza, que adquire um destaque maior no novo gênero; o duelo entre os dois rivais não é encenado.
A tentação de mostrar essa cena de efeito dramático garantido, no entanto, era grande, e Verga não foi poupado do desgosto de assistir a uma montagem (janeiro de 1908) em que o famoso ator siciliano Giovanni Grasso modificou o desfecho, como relatou Ignazio Burgio: “Antes que baixasse a cortina, […] voltava para o palco de improviso, e, enquanto era perseguido pelos atores que personificavam os carabineiros, mostrava aos espectadores aterrorizados a faca toda avermelhada (provavelmente de tomate!), com a qual tinha matado o rival Turiddu”.
E pensar que o autor, em 18 de agosto de 1884, havia comentado com o amigo Luigi Capuana: “Esta pequena comédia deve ser interpretada mal para render bem, isto é, sem ênfase nem efeitos teatrais. Eu quero a mesma simplicidade e a mesma naturalidade de pessoas que falem e se movam como os camponeses e que não saibam interpretar” – como citou Muscarà, acrescentando: “Atento às nuances, aos mínimos detalhes, tendo consciência […] de que tudo contribui para explicitar a verdade da qual os personagens são portadores, havia escrito a Capuana, a fim de que lhe enviasse fotos de camponeses e lugares, desenhos e esboços, amostras e objetos, e ao irmão, para que providenciasse, em Vizzini, os figurinos minuciosamente descritos”.
Dessa forma, estava tudo lá: “o acre Verismo, o código de honra silencioso e arcaico, os rituais atávicos, os elementos folclóricos, antropológicos e de costume, capazes de fascinar por seu exotismo”. Pensando no efeito cênico, o escritor ambientava “o drama na ‘pracinha da aldeia’, renovando a cena italiana apinhada de interiores burgueses”, como observou Muscarà.
O sucesso de público e de crítica foi estrondoso, também devido à fama do escritor e, principalmente, à atuação de Eleonora Duse.[5] Em relação a esta interpretação, anos mais tarde, Capuana será uma voz discordante, talvez em virtude da recusa da grande dama do teatro italiano em protagonizar sua peça Giacinta, representada desde 1888, adaptação do polêmico romance homônimo, que tanto havia escandalizado ao ser publicado em 1879. No prefácio de Teatro dialettale siciliano (em cujos cinco volumes reuniu suas peças rurais, escritas entre 1911-1912 e 1920-1921), ao comparar montagens diferentes de Cavalleria rusticana, ele escreverá: “a ‘Santuzza-Duse’ tinha parecido aos meus olhos de siciliano ‘uma espécie de falsificação da apaixonada criatura de Giovanni Verga, nos gestos, na expressão da voz, nas roupas’”, ao contrário daquela “‘viva e real’, ‘de primeiríssima ordem’, de ‘uma pobre atriz da província’, ou de intérpretes excepcionais como Marinella Bragaglia e Mimì Aguglia”’(como referiu Muscarà).
Os lucros aferidos com a atividade teatral animaram o autor a continuar por esse caminho, pois dedicar-se apenas a novelas e romances rendia menos do que escrever para o palco, trabalho este, aliás, facilitado pelas obras narrativas nas quais frequentemente se baseava. Apesar disso, a questão financeira não pode ser vista como o único estímulo para essa atividade, uma vez que, já no início de sua carreira, Verga havia enveredado pela dramaturgia com a comédia de costumes I nuovi tartufi (datada de 1865, porém inédita até 1982) [6], e com o drama Rose caduche [7] e a comédia L’onore [8], ambos de 1869. Desse mesmo período, seria também outra peça, Nuvole d’estate, da qual não se tem muitas notícias, e a obra teatral que o autor tentou extrair do romance Storia di una capinera.[9]
Cavalleria rusticana, ao ser publicada em 1884, dava início ao teatro verista. Na peça seguinte, In portineria (1885), Verga tentou mudar de registro, conforme escreveu, no dia 5 de junho, a Luigi Capuana: “Eu quis que o drama fosse rigorosamente íntimo, todo com nuanças de interpretação, como acontece realmente na vida; e, nesse sentido, era mais um passo na busca do real”, salientando que, ao ambientar suas histórias no meio proletário milanês, pretendia retratar “um outro lado da vida popular: fazer para a raia miúda da cidade o que eu já havia feito para os camponeses sicilianos”. Partindo da novela “Il canarino del n. 15” (1882), que faz parte da coletânea Per le vie (1883), o texto teatral, além de ter sido um fracasso em sua primeira encenação, recebeu violentas críticas, o que amargurou o escritor; contudo, no ano seguinte, graças a uma nova montagem com Eleonora Duse, obteve o aplauso do público. Extraída da novela homônima (que integra Vita dei campi), La lupa, representada em 1896, também teve êxito, apesar de seu conteúdo polêmico [10]; nesse mesmo ano, a peça foi publicada, junto com In portineria e Cavalleria rusticana, num volume único pelo editor Treves.
Verga esboçou ainda, em 1886, um texto teatral baseado em Dramma intimo (1883), novela publicada antes em Drammi intimi (1884) e depois em I ricordi del capitano d’Arce (1891), e, em 1887, sem concluí-lo, o terceiro ato da comédia Il come, il quando ed il perché, (baseada na novela homônima que integrou a edição de 1881 de Vita dei campi), título que aparece também no manuscrito do segundo ato de outra comédia de ambiente mundano, depois intitulada Le farfalle (1890). Da narrativa breve “Il mistero” (1882), publicada em Novelle rusticane, o escritor, com a colaboração de Giovanni Monleone, extraiu a homônima sacra representação da Paixão de Cristo, com música de Domenico Monleone.[11]
De outra narrativa breve que não integra nenhum volume, “Caccia al lupo” (1897), a qual guarda certo parentesco com “Jeli il pastore” (“Jeli, o pastor”, publicada em Vita dei campi), o autor extraiu o ato único homônimo, o qual, junto com Caccia alla volpe, foi encenado em 1901 e publicado em 1902; enquanto na peça seguinte, Dal tuo al mio, montada em 1903, fez o caminho inverso, do texto dramático para o narrativo, ao transformar a comédia num romance com o mesmo título (1906), lançado sem êxito.[12]
Voltando à encenação de Cavalleria rusticana, o sucesso da peça levou o escritor a pensar em musicá-la e, para tanto, em 22 de março de 1884, escreveu ao maestro Giuseppe Perrotta, seu amigo de infância, pedindo-lhe uma pequena sinfonia que servisse de epílogo à obra, a ser executada antes da abertura das cortinas, “algo que tenha a eficácia da simplicidade, como a comédia, que tenha cor, o sopro realmente siciliano e campestre” (conforme registrou Muscarà).
A primeira apresentação do prelúdio sinfônico se deu no dia 29 de julho de 1886, no Arena Pacini de Catânia, sob a regência do maestro Perrotta. Dois anos mais tarde, Gian Domenico Bartocci Fontana escreveu o libreto Mala Pasqua, musicado pelo maestro Stanislao Gastaldon. O drama lírico em três atos, representado no Teatro Costanzi de Roma, em 9 de abril de 1890, não obteve sucesso, ao contrário da triunfal ópera de Pietro Mascagni, Cavalleria rusticana; em 1907, foi a vez de outro melodrama com o mesmo título, de Domenico Monleone. Com Mascagni, o ideário verista adentrava o mundo da ópera, no qual, ao lado deste compositor, se destacaram ainda Giacomo Puccini, Ruggero Leoncavallo, Umberto Giordano, Francesco Cilea, Alfredo Catalani e Riccardo Zandonai, dentre outros.
Tanto Mascagni quanto Gastaldon tinham participado da mesma edição do concurso que o editor musical Edoardo Sonzogno, de Milão, costumava realizar entre compositores que ainda não haviam conseguido a representação de uma ópera de sua autoria. O concurso teve setenta e três candidatos e, enquanto Gastaldon inscrevia Mala Pasqua (que foi a última classificada), Mascagni propunha Cavalleria rusticana, com libreto de Giovanni Targioni-Tozzetti e Guido Menasci, conquistando o primeiro lugar, o que lhe assegurava uma montagem financiada por Sonzogno. Encenada no Teatro Costanzi, no dia 17 de maio de 1890, a ópera de Mascagni teve um sucesso extraordinário, mas, nos créditos, não havia nenhuma menção a Verga, cujo nome passou a ser incluído só depois que este se manifestou.[13]
Apesar de não ter sido informado a priori dessa adaptação, o escritor exigiu apenas o que lhe caberia pela lei dos direitos autorais. Mesmo o maestro Gastaldon, autorizado pelo autor a transformar Cavalleria rusticana em ópera, não se opôs a um contrato entre Verga e Mascagni, ou entre o escritor e o editor musical, a quem o compositor havia cedido o drama lírico. Não chegando a um acordo quanto ao valor da porcentagem a ser paga, Verga enfrentou uma longa disputa judicial com Sonzogno para recuperar uma parte dos grandes dividendos obtidos com o melodrama de Mascagni, encerrada em 1893, com parecer favorável ao escritor.
Vale lembrar que o triunfo operístico, ao lado do sucesso teatral da obra de Verga, determinou a mudança do título da coletânea que a novela homônima integrava, o qual passa de Vita dei campi para Cavalleria rusticana ed altre novelle, na edição de 1892, e despertou o interesse da sétima arte por sua trama, levada para as telas no início do século XX, o que vinha confirmar a penetração do Verismo também no cinema. A dupla paternidade de Cavalleria rusticana, no entanto, causou alguns problemas, uma vez que nem sempre foi possível estabelecer se um filme se baseava na novela ou na peça de Verga, ou então no drama lírico de Mascagni.
A longa querela entre o autor siciliano e o compositor toscano repetia-se no campo cinematográfico. Por exemplo, em 1916, o escritor presenciou as filmagens da realização de Ugo Falena, enquanto a de Ubaldo Maria Del Colle teve o beneplácito do maestro e de seu editor musical, os quais desautorizaram a execução da ópera durante a projeção de outras adaptações cinematográficas também intituladas Cavalleria rusticana. Ao realizar sua versão em 1982, Franco Zeffirelli a extraiu da novela e da ópera.
De Cavalleria rusticana derivaram outros cinco filmes com o mesmo título, os de Mario Gallo (1908) [14], Émile Chautard (1910) [15], Mario Gargiulo (1924), Amleto Palermi (1939) e Carmine Gallone (Sangue por amor, 1954), além de uma primeira transposição em chave cômica, datada de 1901, Cavalleria rusticana?! [16], e “Cavalleria rusticana oggi”, primeiro episódio da comédia Io uccido, tu uccidi (1965), de Gianni Puccini. [17]
Outras novelas de Verga que chegaram às telas foram La lupa (A loba), da qual foram extraídas as transposições homônimas de Alberto Lattuada (1953) e Gabriele Lavia (1996), Caccia al lupo, L’amante di Gramigna (A amante de Gramigna) e Rosso Malpelo (Ruivo Pelo-ruim), filmadas com o título original por Giuseppe Sterni (1917), Carlo Lizzani (1968) e Pasquale Scimeca (2007), respectivamente, e Libertà (Liberdade), na qual Florestano Vancini se inspirou para realizar Bronte: cronaca di un massacro che i libri di storia non hanno raccontato (1972).[18]
Dentre os romances, estão Storia di una capinera, Una peccatrice, Eva, Tigre reale, Il marito di Elena [19], todos adaptados com o mesmo título. O primeiro foi filmado por Giuseppe Sterni (1917), Gennaro Righelli (1943) e Zeffirelli (1993), respectivamente; o segundo, pela Polifilm de Nápoles (1918); o terceiro por Ivo Illuminati (1919); o quarto por Giovanni Pastrone (1916) [20]; o quinto por Riccardo Cassano (1921). As obras-primas do escritor siciliano também tiveram uma versão audiovisual: I Malavoglia foi levado para as telas por Luchino Visconti, em La terra trema (A terra treme, 1948) [21], e por Scimeca, em Malavoglia (2010); Mastro-don Gesualdo deu origem à série televisiva homônima (1964), dirigida por Giacomo Vaccari.[22]
Retomando o discurso sobre Cavalleria rusticana, ao ser transformada em libreto, a obra sofreu mais algumas modificações: Santuzza, que, na peça, era o segundo personagem, foi alçada a protagonista; a mãe de Turiddu, agora chamada Lucia, passou a ter uma maior presença cênica, tornando-se o terceiro personagem da ópera; o coro da vizinhança ganhou destaque nas árias entoadas pelos aldeões ao retornarem da labuta, na taberna, na igreja ou na praça. A ação continuou bem sintetizada, como na peça, em que era respeitada a unidade espaciotemporal típica do teatro grego.
Tudo se passa na praça de um lugarejo siciliano, no domingo de Páscoa, e fatos importantes que antecedem esse dia e explicam o comportamento dos personagens são recuperados pelas falas, como nesse desabafo de Santuzza a Lucia, extraído do libreto da ópera:
“Você sabe, mãe,
antes de ser soldado,
Turiddu havia jurado fidelidade
eterna a Lola.
Retornou, e ela havia se casado; e
com um novo amor quis apagar a
chama
que lhe queimava o coração:
me amou, o amei.
Ela invejou os meus prazeres
esqueceu seu esposo, ardeu em
ciúmes…
Roubou-me… Impedida da honra
estou:
Lola e Turiddu se amam,
eu choro, eu choro!”
A personagem de Santuzza, apenas esboçada na novela e que foi ganhando espaço na peça e na ópera, acaba por aproximar-se psicologicamente da protagonista de La lupa, ao antepor a força de sua paixão às leis da comunidade. O crescimento da moça seduzida e desprezada por seu amado e da mãe de Turiddu desloca o eixo da obra, a qual, de um drama entre dois rivais masculinos se transforma numa tragédia da impossibilidade feminina de romper certas barreiras sociais.
Entre 18 e 29 de outubro de 2014, o Teatro Municipal de São Paulo propôs uma nova versão de Cavalleria rusticana [23], desta vez com direção cênica de Pier Francesco Maestrini, o qual, em sua leitura da ópera, introduziu uma série de licenças poéticas. Em vez do tradicional cenário da praça da aldeia, com a igreja, à esquerda, e a taberna e a casa de mãe Lucia, à direita, preferiu descortinar diante dos olhos do público uma paisagem mais ampla, com o lugarejo no topo de uma colina e circundado por vales e montes (com uma profundidade de campo quase cinematográfica) e trazer o local da ação para fora do povoado, num espaço que se presta a acolher os vários acontecimentos.
Dessa forma, a encenação recuperou um elemento fundamental da arte de Verga: a paisagem. Na primeira cena, antes que os camponeses comecem a colheita de laranjas, numa espécie de platô, à esquerda, surgem Turiddu e Lola se amando ao amanhecer. O local de encontro entre os amantes chama a atenção pelo fato de remeter aos rochedos à beira-mar onde ‘Ntoni Valastro e Nedda [24] namoravam em La terra trema.
A movimentação dos aldeões no palco é muito animada, arrancando, dessa forma, o coro de seu papel de mero espectador e comentador (como na novela, na peça e em algumas passagens do libreto), em que ele apenas sublinha as falas de personagens principais. Nesse sentido, aproxima-se do coro coletivo de toda a aldeia de Acitrezza, em I Malavoglia, com seus diálogos e seu disse-me-disse, extremamente vivazes e coloridos, aos quais Visconti também não conseguiu resistir, recuperando-os, de forma magistral, principalmente na primeira sequência narrativa do filme, em que o movimento incessante da câmera, que guia o olhar do espectador de um ponto a outro da praia, é ditado pelo ritmo sonoro da grande polifonia constituída pela fala quase incompreensível dos pescadores sicilianos.
O canto de Aleluia que ressoa na igreja e na praça foi substituído por uma procissão de grande efeito cênico, que dialoga com as procissões presentes nas realizações cinematográficas de 1939 e 1954, por exemplo. A pietà, transportada num andor, transforma-se na paródia de um tableau vivant, pois quando a padiola ornamentada é colocada no chão, Nossa Senhora ajeita o Cristo que estava apoiado em seus joelhos e se junta aos demais fiéis, que estão entoando o canto religioso, seguida logo depois pelo filho.
Compadre Alfio não é mais um carreteiro, mas um chefe mafioso que anda num carro preto com seus capangas, sem que se traia de todo a concepção da obra, ao pensar que esta organização de tipo patriarcal está baseada nos mesmos valores ligados à honra e à posse de bens dos personagens verguianos. Tampouco está excluída uma referência a The godfather III (O poderoso chefão III, 1990), de Francis Ford Coppola, que incorporou o prelúdio da ópera à sua trilha sonora. Do duelo entre os dois rivais, ausente no libreto, é mostrado só o início, com Turiddu sendo subjugado pelos capangas; e seu corpo será jogado por estes na frente da casa da mãe, logo depois do famoso grito que anuncia sua morte: “Hanno ammazzato compare Turiddu!” (“Mataram o compadre Turiddu!”). Neste caso, o efeito visual se sobrepõe ao canoro, e o elemento masculino ao feminino, mas nada consegue superar a força impetuosa de Santuzza.
A intertextualidade [25] que presidiu essa montagem da ópera remete às diferentes possibilidades de leitura às quais a trama de Cavalleria rusticana esteve sujeita desde que foi concebida e às várias camadas de interpretação que se interpõem entre ela e seus apreciadores hodiernos, que nada mais fazem do que enriquecê-la e comprovar a força criadora de Giovanni Verga.
*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros textos, do capítulo Verga e o Verismo italiano, que integra o volume O Naturalismo (Perspectiva).
Versão revista de artigo publicado em Letras em Revista, vol. 6, no. 1, 2015.
Referências
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MUSCARÀ, Sarah Zappulla. “Cavalleria rusticana di Giovanni Verga fra teatro, melodramma e cinema”, 2014. Disponível em: <http://apcz.pl/czasopisma/index.php/ TSP/article/viewFile/TSP–w.2014/007/4730>.
MUSCARÀ, Sarah Zappulla. “Giovanni Verga invisibile burattinaio-artista, fra teatro, melodramma e cinema”. In: Giovanni Verga: una biblioteca da ascoltare. Roma: Edizioni De Luca, 1999. p. 41-81.
RICCARDI, Carla. “Introduzione”. In: VERGA, Giovanni. Tutte le novelle. Milano: Mondadori, 2001. p. VII-XXX.
ROBERTO, Federico de. “Prefazione” [a Processi verbali] In: ________. Romanzi, novelle e saggi. Milano: Mondadori, 2004. p. 1641-1642.
TARGIONI-TOZZETTI, Giovanni; MENASCI, Guido. Libreto de Cavalleria rusticana. Trad. Igor Reyner. In: Cavalleria rusticana + I pagliacci. São Paulo: Fundação Theatro Municipal de São Paulo, s.p., 2014 [catálogo].
VERGA, Giovanni. “Cavalleria rusticana”. Trad. Loredana de Stauber Caprara. In: ________. Cenas de vida siciliana. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2001. p. 65-72.
VERGA, Giovanni. Lettere a Luigi Capuana. Firenze: Le Monnier, 1975.
VERGA, Giovanni. Os Malavoglia. Trad. Aurora Fornoni Bernadini e Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
Notas
[[1]] Enquanto Una peccatrice (1886), Storia di una capinera (1871) e Eva (1873) são anteriores a “Nedda”, Tigre reale (1875), Eros (1875) e Il marito di Elena (1882) foram publicados depois.
[2] O projeto deveria ter sido completado com La duchessa delle Gargantàs (depois La duchessa di Leyra), L’onorevole Scipioni e L’uomo di lusso. A protagonista do terceiro romance do ciclo deveria ter sido Isabella, suposta filha de Gesualdo e futura condessa de Leyra. O núcleo do romance, portanto, já estava na obra de 1889. Em La duchessa di Leyra, Verga voltaria aos temas dos romances burgueses, retratando a vaidade aristocrática e suas paixões. O texto foi redigido em várias etapas: em 1898, La nuova antologia anunciou sua publicação; em 1907, o autor comunicou a Édouard Rod, seu tradutor francês, que estava trabalhando nele, mas, em 1918, queimou o manuscrito, sinal evidente de que a experiência verista havia chegado ao fim. Depois da morte do escritor, Federico De Roberto publicou o primeiro capítulo do romance e o fragmento do segundo, encontrados entre seus papéis, na revista La lettura (1° de junho de 1922).
[3] Afinal, ao comentar um dos postulados do Verismo, a impessoalidade – isto é, uma narrativa caracterizada pelo dialogismo e pela ausência de comentários, na qual o escritor “desaparecia”–, Federico De Roberto, terceiro grande nome do movimento, no prefácio de Processi verbali (1889), afirmará: “A impessoalidade absoluta só pode ser alcançada no puro diálogo, e o ideal da representação objetiva consiste na cena tal como se escreve para o teatro. O acontecimento deve desenrolar-se por si, e as personagens devem significar o que são por elas mesmas, por meio de suas palavras e de suas ações”.
[4] Carla Riccardi teceu esse mesmo tipo de considerações ao sugerir que Mastro-don Gesualdo é um romance “teatral” em sua estrutura, não só porque o “protagonista-herói age numa sociedade baseada na ficção”, mas também pelo recurso aos diálogos e às cenas com multidão que parecem atos de uma comédia.
[5] Sucesso comprovado também pelas paródias Cavalleria pocch paroll, apresentada no Teatro Milanese pela trupe de Eduardo Ferravilla e Eduardo Giraud, e Fanteria rusticana: scene livornesi, montada pela companhia Ciotti-Serafini no Teatro Nuovo de Florença. Ao contrário, I Malavoglia, quando de seu lançamento, foi um fiasco, desnorteando o público e a crítica.
[6] Na peça, cujo título alude a Tartufe (Tartufo, 1664), de Molière, o escritor opõe os valores familiares às intrigas e à hipocrisia da política.
[7] Inspirando-se basicamente em La dame aux camélias (A dama das camélias, 1848/o romance; 1852/a peça), de Alexandre Dumas Filho, Rose caduche focaliza um tema constante na obra verguiana: a disparidade de intensidade e de duração do desejo amoroso num casal. A peça não foi encenada na época (a primeira montagem é de 1960) e será publicada apenas em 1928.
[8] Em que pesem algumas tentativas para retomá-la, em 1872, em 1876 e em 1878, a peça não foi concluída, mas o autor aproveitará parte de suas personagens na chamada trilogia do amor – Eva, Tigre reale e Eros – e em Il marito di Elena, enquanto permanecerão inacabadas as que deveriam ter protagonizado duas das obras do ciclo de I vinti: a duquesa de Gargantàs e o advogado Scipioni.
[9] Dessa obra existem três esboços com títulos diferentes, La sposa di Gerico (apenas o argumento), Cenerentola (texto mais completo, com atos, cenas e personagens) e Dolores (três esquemas), provavelmente da década de 1890, além de uma tentativa de 1913.
[10] Em 1919, La lupa foi musicada pelo maestro Pietro Tasca, mas essa nova versão será encenada só em 1932.
[11] Um novo libreto de Il mistero, escrito em 1921, será publicado pela revista Scenario em 1940.
[12] Ao ambiente teatral Verga dedicou outras novelas, reunidas em Don Candeloro e C.i (1893): “Paggio Fernando” (1889); “Don Candeloro e C.i”, “Le marionette parlanti” e “La serata della diva” (1890); “Il tramonto di Venere” (1892).
13] Embora no libreto se afirme que este foi extraído da novela de Verga, sua concepção está mais próxima da estrutura da peça.
[14] Esta versão, realizada à revelia do autor, correspondia às filmagens da encenação da peça durante a turnê da companhia teatral de Giovanni Grasso na Argentina.
[15] Foi a primeira vez que Verga autorizou a transposição cinematográfica de uma obra de sua autoria, mas não gostou deste roteiro de Cavalleria rusticana; assim mesmo, consentiu que a “Association Cinématographique des Artistes Dramatiques” o rodasse, na esperança de assegurar por mais tempo o sucesso que as representações teatrais da peça homônima estavam tendo na França. Lançado no ano seguinte, o filme dirigido por Chautard desagradou à crítica e ao escritor, o qual, apesar da experiência negativa, não renunciou a colaborar com a indústria cinematográfica, como confidenciou à sua companheira, a condessa Dina Castellazzi di Sordevolo, em 20 de fevereiro de 1912: “Cavalleria ou não Cavalleria, o cinematógrafo hoje invadiu de tal forma o campo e precisa de argumentos ou temas com os quais embrutecer o público e cegar as pessoas” (em correspondência citada por Muscarà em 1999). As relações do escritor com o cinema sempre foram ambíguas, pois ele não queria rebaixar sua arte, mas, ao mesmo tempo, como outros literatos, deixou-se atrair pelo lucro fácil que a venda dos direitos autorais de suas obras ou de um roteiro lhe assegurava. Além disso, em 1916, Verga tornou-se sócio da “Silentium Film” de Milão, à qual enviará alguns roteiros, sempre com o intuito de popularizar sua produção literária.
[16] Esta adaptação também foi realizada à revelia do escritor. Verga, que, como já acenado, sempre se bateu pelo reconhecimento de seus direitos autorais, esteve entre os fundadores da “Società Italiana degli Autori” (1882). Em 1920, a recém-fundada “Società Autori Cinematografici” o convidará a associar-se, por ser um dos autores da sétima arte mundialmente mais conhecidos e apreciados.
[17] Tequila: historia de una pasión (2011), do diretor mexicano Sergio Sánchez Suárez, é um bom exemplo de outros filmes que se inspiraram em Cavalleria rusticana.
[18] Das novelas até agora não citadas, “L’amante di Gramigna” (1880) e “Rosso Malpelo” (1878) foram recolhidas em Vita dei campi, enquanto “Libertà” (1882) integrou Novelle rusticane.
[19] Estas foram as últimas filmagens a que Verga pôde assistir, pois faleceu no mesmo ano.
[20] Nos créditos de Tigre reale, aparece o nome do escritor como roteirista. De fato, algumas adaptações das obras verguianas para as telas contaram com a colaboração do próprio autor, embora nem sempre as assinasse. Verga exerceu a atividade de roteirista de 1912 até 1920, porém, algumas vezes, quem redigia os roteiros era De Roberto, enquanto a condessa Sordevolo era encarregada das adaptações, mas sempre com a supervisão do escritor.
[21] La terra trema continua sendo a expressão máxima de um texto verista no cinema. No início dos anos 1940, Visconti estava ligado ao grupo da revista Cinema, em cujas páginas, com o artigo “Verità e poesia: Verga e il cinema italiano” (1941), Mario Alicata e Giuseppe De Santis haviam aberto um debate sobre a obra do escritor siciliano. A redescoberta de Verga, como mestre do almejado realismo, e a premência de levar para a tela sua “arte revolucionária, inspirada numa humanidade que sofre e espera” estavam ligadas ao desejo de opor uma cultura enraizada na realidade social e popular do país à retórica da cultura oficial do Fascismo. Visconti estava interessado em adaptar “L’amante di Gramigna”, mas, ao ser impedido de levar adiante o projeto (o roteiro não foi liberado pelo Ministério da Cultura Popular), sua escolha recaiu sobre I Malavoglia, atraído também pela musicalidade e pela plasticidade presentes em alguns trechos da obra-prima verguiana, que serão elementos-chave do filme, como já tive ocasião de escrever.
[22] Numa carta à condessa Sordevolo (8 de maio de 1912), ao discorrer sobre quais escritos de sua autoria poderiam ser transpostos para a tela, Verga – além de descartar “Le storie del castello di Trezza” (1875), “Certi argomenti” (1876), I ricordi del capitano d’Arce e Il marito di Elena – acrescentava: “Com Mastro-don Gesualdo e com I Malavoglia, eu também acho que não se pode fazer nada por causa do gosto desse público” (conforme transcreveu Muscarà em 1999).
[23] A ópera, encenada pela primeira vez no Brasil no Teatro São José (São Paulo, 9 de fevereiro de 1892), foi apresentada no Teatro Municipal de São Paulo em várias ocasiões, conforme catálogo dessa instituição: 1º de outubro de 1913, agosto de 1914, setembro de 1915, outubro de 1922, junho de 1924, outubro de 1925, maio-junho e agosto de 1926, dezembro de 1928, julho de 1933, novembro-dezembro de 1934, maio de 1938, outubro de 1941, outubro de 1942, setembro de 1944, fevereiro e junho de 1947, agosto de 1948, outubro de 1949, junho de 1950, janeiro, maio e setembro de 1951, setembro de 1956, novembro-dezembro de 1957, setembro de 1958, abril de 1962, outubro de 1963, outubro-novembro de 1965, outubro de 1968, outubro de 1974, novembro de 1981, novembro de 1993, dezembro de 2000, outubro de 2013 – o que atesta sua grande penetração no nosso meio cultural.
[24] No filme, o sobrenome da família de pescadores passou a ser Valastro e a Sara do romance tornou-se Nedda.
[25] É interessante notar que esse tipo de intertextualidade caracterizou também o diálogo de Verga com cineastas italianos em obras que não eram transposições de uma novela ou de um romance de sua autoria. Por exemplo, Visconti fez de Rocco e i suoi fratelli (Rocco e seus irmãos, 1960) a continuação de La terra trema, enquanto em Il gattopardo (O leopardo, 1964), embora tenha se baseado no romance homônimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, acrescentou uma pitada verguiana na descrição do jovem soldado encontrado morto no jardim do príncipe Salina, que ele retirou da novela “Carne venduta” (“Carne vendida”, 1885). O mesmo fizeram Paolo e Vittorio Taviani quando filmaram “La giara”, episódio de Kaos (1984), ao emprestarem a Dom Lolló, um dos protagonistas da novela e da peça de mesmo nome de Luigi Pirandello, alguns traços do avarento Mazzaró de “La roba” (“Os bens”, 1880), uma das narrativas breves de Novelle rusticane. Zeffirelli, ao contrário, em Storia di una capinera (Sonho proibido), para as sequências da peste, valeu-se da descrição que Alessandro Manzoni fez da epidemia em I promessi sposi (Os noivos, 1840-1844).