Por JOÃO LANARI BO*
Comentário sobre o filme de Sergey Loznitsa
Sergey Loznitsa é dos poucos cineastas contemporâneos que logrou boa circulação no circuito internacional fazendo filmes explicitamente políticos, sem concessões – e atuando numa brecha arriscada: a fronteira entre a poderosa Rússia e seu entorno imediato, Ucrânia sobretudo. Maïdan: protestos na Ucrânia, documentário sobre o movimento civil contra a presidência pró-Moscou de Viktor Yanukovych, na praça central da capital ucraniana, é um exemplo claro: filmado nos três meses que se estendeu o evento, entre dezembro de 2013 e fevereiro de 2014, tornou-se um registro único e visceral.
A reação popular deu-se pela súbita recusa de Viktor Yanukovych em assinar acordo de associação com a União Europeia, após longa negociação. Dada a atualização do conflito que se materializou com a invasão russa da Ucrânia, oito anos depois, em 22 de fevereiro de 2022, o jornal The Guardian resolveu em boa hora disponibilizar o filme na internet, até a guerra terminar, como se pode ler na página do Youtube.
Loznitsa – nascido em 1964 na Belarus e educado na Ucrânia – completou sua formação de diretor de cinema no Instituto Gerasimov de Moscou, a famosa escola de cinema VGIK, depois de graduar-se em engenharia e matemática, atuar como pesquisador de inteligência artificial em Moscou e, nas horas vagas, servir de intérprete para japonês. Entrou na VGIK em 1991 – ano do colapso do comunismo e fragmentação da União Soviética. Seu primeiro filme, Today we are going to build a house, foi realizado em 1996. O cerco nazista a Leningrado foi o foco de Blokada, finalizado em 2005, que deu a Loznitsa o prêmio de melhor documentário russo do ano.
A reputação internacional foi consolidada com os longas de ficção Minha felicidade, de 2010, e Na neblina, de 2012. No passado recente realizou dois poderosos statements políticos: Donbass, de 2018, mergulho anárquico no conflito que estourou no leste da Ucrânia a partir de 2014, logo depois dos protestos de Maidan terminarem; e Funeral de Estado, de 2019, feito com material de arquivo do mastodôntico funeral de Joseph Stálin.
Maïdan: Protestos na Ucrânia, finalizado em março de 2014 a tempo de ser exibido no Festival de Cannes, é um pungente e minimalista testemunho dos acontecimentos que sacudiram o país, um dos registros audiovisuais que não vai ficar datado, como ressaltou crítica à época no Variety. Utilizando quase exclusivamente “master shots” (planos fixos), filmados de pontos estratégicos daquele espaço urbano, em geral de duração longa, o filme absorve uma complexa atmosfera sonora, que passa por discursos, palavras de ordem, canções, conversas, ruídos, bombas de gás pimenta, tiros e gritos (o som, como de hábito, a cargo de Vladimir Golovnitsky).
Assistimos à atualização do virtual coletivo, com imagens de interiores (nas sequências iniciais) e exteriores, sem narração ou entrevistas, apenas a massa sonora e a movimentação da multidão. Voluntários permeiam o espaço para prevenir violência e distribuir alimentos, grupos se organizam para construir barricadas com qualquer objeto que possa obstruir movimentos, de cadeiras a pneus – a canção dos partisans italianos, Bella ciao, foi atualizada para Ciao Vitya Ciao, alusão a Viktor Yanukovych.
A partir de 19 de janeiro de 2014, com a introdução de forte legislação repressora pelo governo acuado, a temperatura começa a esquentar: sobressaem anúncios solicitando a mulheres e crianças para abandonar a linha de frente, e voluntários circulando com máscaras de gás. Um dos raros movimentos de câmera registra o lançamento de gás lacrimogênio próximo ao local onde estava a imprensa – o cinegrafista foi obrigado a proteger-se para não se ferir. Cada detalhe dos planos gerais passou a sugerir um estado de urgência. Chamadas nervosas pelo alto-falante procuram médicos, ouvem-se mais tiros, a neblina baixa sobre a praça – ao final, estima-se em uma centena o número de mortos.
Num tom patriótico-nacionalista, incontornável naquela situação, o patriarca ortodoxo celebra ato em homenagem às vítimas, transformadas em heróis nacionais. Logo em seguida, o Presidente Yanukovych fugiu para a Rússia. Tal como em Blokada, Loznitsa não interpreta: naturalmente, qualquer decisão ligada a edição de som e imagem adota um ponto de vista. Em Maïdan: Protestos na Ucrânia, porém, quem se expressou foi o conjunto de habitantes reunidos naquele espaço. Como salientou o cineasta: “Um filme não é um estudo sociológico. Portanto, prefiro que os espectadores façam o seu próprio julgamento com base no que veem. Como autor, não devo impor opiniões, nem as minhas nem as de outras pessoas”.
O filme recolheu a multiplicidade de subjetividades condensadas em um consenso cívico. Em Maïdan: Protestos na Ucrânia a luta, absolutamente contemporânea à obtenção de sons e imagens, foi pela autodeterminação.
*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).