Por RONALDO TADEU DE SOUZA*
É necessária uma atitude negra coletiva para levar tensões políticas violentas à sociedade
“Cumé que a gente fica?” (Lélia Gonzalez).
O que fazer? – é o nome do romance de Nikolai Tchernichevskii escrito na Rússia no século XIX.[1] Mas a expressão-pergunta ganharia notoriedade e passaria a ser parte do vocabulário político e intelectual, em especial o da esquerda, ao longo de todo o século passado apenas depois que Vladimir I. Lênin público livro com título idêntico em 1902. A indagação foi lançada ao debate público russo no momento de transição efervescente, em que os militantes socialistas, os trabalhadores e os camponeses teriam de responder às exigências do tempo.
O gesto de Lênin, expressado nas linhas de O que fazer?, era seu modo, sempre audacioso, de tensionar as discussões (e a ação…) que atravessavam a sociedade russa de então.[2] Era a estilística leninista – para dizer que não se poderia mais agir de uma certa maneira sobre circunstâncias peculiares da luta de classes. Nos termos de Alain Badiou: Lênin incitava seus leitores a extrair o “real”[3] da realidade. Ou seja; observar com atenção dialético-revolucionária a superfície pura da presença. Paixão pelo real. Obsessão pela aparência que enuncia tudo. Comprometimento – não com a realidade complexa –; e sim com o que acontece e com o acontecido. O que fazer? foi a questão-símbolo do aceno da principal personagem da Revolução Russa de 1917 – em um momento crucial de seu país.
A resposta de Lênin à sua própria pergunta foi organização de um partido de quadros, a vanguarda, objetivando dois momentos dialeticamente constituídos: fazer com que a circulação da subjetividade radical-revolucionária-insurrecional adquirisse maior amplitude e sentido; e no mesmo movimento, tinha o intuito de apreender a temporalidade do espírito daqueles e daquelas que teriam e deveriam se apresentar no proscênio político como o verdadeiro sujeito da transformação.
A situação dos negros (trabalhadores e pobres) no Brasil hoje; impõe a mesma interrogação. É o mesmo gesto leninista de dizer que a existência tal qual está sendo vivida pelos negros e negras, suas famílias, amigos e amigas, conhecidos próximos tem de ser tensionada, desafiada com o desespero racional de quem não mais suporta o extermínio diário, a humilhação social, os tapas na cara, a força policial contra sua vida, a fome crônica, os deslizamentos de terra. É necessário uma atitude negra coletiva para levar tensões políticas violentas à sociedade.
Ora, os fatos estão aí para quem quer ver. São concretos e cristalinos. Irrefutáveis. Após um ano da chacina do Jacarezinho, outra chacina, agora na Vila Cruzeiro, com o mesmo número de mortos, praticamente. A ação é idêntica. O fuzilamento cruel e sem qualquer piedade de jovens negros e pobres praticados pelo braço armado do Estado. Na mesma semana um homem negro é exterminado em uma câmara de gás e Sergipe; Genivaldo tinha problemas de saúde mental – ainda assim o braço armado do Estado (esse agora pertencente ao âmbito federal) o elimina, o mata asfixiado sem nenhum pretexto (e mesmo que houvesse…) que não seja o ódio de raça-classe, o plano sistemático de combater e exterminar o inimigo interno não-branco trabalhador. A violência é inenarrável. A dor dos que ficaram nem por 1000 anos irá passar. O firmamento divino é o que poderá acalentar mães, país e esposas; é o grito do coração em um mundo sem coração (Marx).[4]
É certo que os avanços para setores da população negra são inegáveis. As políticas de ações afirmativas é uma das conquistas mais fundamentais da história dos de baixo no Brasil (em debate sobre o livro recém-lançado de Vladimir Safatle, Só mais um esforço, Ed. Autêntica, a economista, Leda Paulani afirma que a transformação estrutural que os governos de esquerda do PT fizeram, se deu apenas no campo da educação[5]), e precisamos defendê-la sim-ou-sim, até à “morte”. (E ainda é preciso romper a barreira no nível das profissões estatais, como a carreira docente, por vezes bloqueadas pelas “fraudes” em concursos que todos sabem que ocorrem, o judiciário, a diplomacia, os bancos públicos etc.)
A visibilidade e uma maior empatia na luta contra o racismo atravessam setores importantes da sociedade brasileira (brancos que convivem com negros em espaços outros que não os mais miseráveis, são, relativamente, sensíveis à causa e alguns são sinceros companheiros de luta, dentro de seus limites). Avança a representatividade negra em espaços privados e públicos de poder – há uma classe média negra hoje que faz repercutir seus interesses imediatos de projeção, padrões de consumo e distinção cultural mobilizando a expressão “americanizada” do antirracismo, bem como a bandeira dos Black Lives Matter [Vidas Negras Importam].
Importantes intelectuais, escritores e escritoras, pesquisadores e pessoas públicas têm surgido no setor acadêmico-universitária e na arena midiática, tornando as discussões mais inquietas para as “consciências e privilégios brancos”[6] . Toda essa dinâmica é altamente positiva e alterou o horizonte do combate ao racismo e aos racistas. Em poucas palavras: houve um processo de “institucionalização” público-privada das sensibilidades raciais. (Um ponto que devemos estar atentos diz respeito a que nesse mesmo andamento temos o que Florestan Fernandes chamou de acefalização dos movimentos negros.[7] E chegará o momento da crítica radical e cáustica a ele.)
Mas o que deveria ser feito e que não foi tentado ainda? Aqui, não se trata do que Wendy Brown advertia acerca da subordinação das “lutas” de minorias (o que não é o caso no Brasil visto a partir do prisma demográfico) aos regimes de resolução jurídico-institucional, o “legalismo [progressista]” enredado na ordem liberal, “de não querer aquilo que não se pode não querer”[8]. É urgente sim direitos humanos, investigação justa e imparcial, controle estatal das polícias, políticas públicas de combate à desigualdade e justiça aplicada por um judiciário atento e que responda à sociedade.
No entanto, essa é uma pergunta que todos os negros e negras tinham de fazer a si mesmos diuturnamente: e muitos a fazem seguramente; muitos já autorrefletem; muitas não suportam mais viverem e verem os seus e suas mortos pela polícia assassina que tem um único intuito desde os tempos da colônia (agudizado nos anos de fascistização do governo Bolsonaro e de ascensão da direita intransigente desde 2014 com seus personagens mais destacados à frente: Moro, Kataguiri, Arthur do Val, Paulo Guedes, Allan dos Santos, MBL, Jovem Pan, Instituto Von Mises, classe média frustrada, polícias estaduais e federais, Olavo de Carvalho, burguesias financista e do agronegócio e tutti quanti), a defesa violenta da ordem e dos interesses da elite (de todos os setores, o econômico, o político, o social, o cultural, o midiático) branca dominante – e para isso tem de ir aos morros e chacinar adolescentes negros e mestiços; tem de vigiar os bairros periféricos com suas viaturas (o eco fatal dos veraneios dos dias sombrios da ditadura civil-militar-empresarial) e revistar e agredir jovens que estão armados apenas com sua ginga, a camisa do PSG (a 10 do Neymar), de chinelos Havaiana e uns baseados no bolsa da bermuda; muitos e muitas não querem assistir mais reportagens (que sempre defendem subliminarmente os sicários estatais) noticiando mais uma criança morta pelo coturno da polícia, mais uma jovem mãe baleada por fuzil de guerra e de última geração portado pelos que se regozijam pela faca-na-caveira como símbolo pregado em seus uniformes.
Insistindo na formulação de Wendy Brown, não se trata “de não querer aquilo que não se pode não querer”; ocorre que as vias pelas quais estamos travando a luta, o combate contra o racismo que elimina negros com a naturalidade e a frieza eichmanniana,[9] não estão sendo o suficiente para aqueles que mais necessitam.
Há uma nação negra trabalhadora que quer e necessita que a expressão-pergunta possa vislumbrar ser respondida. Não estamos “ainda” no contexto em que “que fazer?” foi respondido nos termos que conhecemos – a organização-ação do sujeito político para derrubada revolucionária dos poderes opressores na Rússia (e poderia elencar aqui outros momentos que a pergunta foi respondida como no Haiti de Toussaint Louverture e C. R. L. James, na Argélia de Fanon, na Palmares de Zumbi, na organização dos Panteras Negras nos Estados Unidos).
Mas a indagação histórica de Tchernichevski-Lênin (e a provocação de Lélia Gonzalez… na epígrafe) explicitava um dos aspectos daquele momento – o do desespero. Assim, no livro Duas revoluções,[10] que organiza os textos e intervenções de Lênin em 1917 e um texto-peça de Brecht, A decisão, em um momento a organizadora (via Lênin) afirma: o povo estava desesperado, a revolução era uma consequência imposta e forçosa. Nós negros e negras estamos desesperados; e faz muito tempo… Cumé que a gente fica? e O que fazer?
*Ronaldo Tadeu de Souza é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.
Notas
[1] Ver Nikolai Tchernichevski . O Que Fazer? Expressão Popular, 2015.
[2] Ver Vladimir Ilich Lênin. O Que Fazer?
[3] Alain Badiou. One Divides Itself into Two. In: Sebastian Budgen, Stathis Kouvelakis and Slavoj Zizek. Lênin Reloaded. Duke University Press, 2007, p. 15.
[4] Ver Karl Marx. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.
[5] Ver debate no link: https://www.youtube.com/watch?v=EF-n89x008k
[6] Aqui coloco entre aspas como advertência por não concordar com a noção; que é proveniente da teoria da branquitude, ou ao mesmo ganhou relevância e sistematização no debate brasileiro a partir dele. Ainda assim, me parece útil para o arranjo conceitual-metodológico em pesquisas sociológicas e psicológicas qualitativas sobreo racismo.
[7] Ver Florestan Fernandes. O significado do protesto negro. Cortez Editores, 1989.
[8] Wendy Brown. Introduction e Suffering the Paradoxes of Right. In: Wendy Brown and Janet Halley. Left Legalism/Left Critque. Duke University Press, 2002, pp. 1 a 37 e pp. 420 a 434.
[9] Ver Hannah Arendt. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Companhia das Letras, 2006.
[10] Ver Iná Camargo Costa. Lênin e Brecht-Duas Revoluções. Expressão Popular, 2020.