Educação e cultura em época de eleição

Imagem: Isaac Taylor
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Por LUIZ ROBERTO ALVES*

A educação é cultural porque o humano não poderia ser formado distante das práticas da ética, da estética e da política, mas as campanhas não contemplam isso

Há algo de errado com a educação neste tempo eleitoral? Com o conceito linguístico de educação, em si, não há nada de errado, até porque a palavra educação não move todas as ações educacionais, não organiza a comunidade educativa, ou produz a pedagogia e a legislação. Mas há muito de duvidoso, ou enviesado, nos textos e falas sobre educação e suas práticas na vida do povo, seja nos municípios, seja na totalidade do país.

Neste momento eleitoral, o pensamento que orienta artigos em jornais, propaganda eleitoral nos veículos de mídia, debates entre candidatos e candidatas e opiniões de organizações sobre a educação das novas gerações revela a espantosa perda do seu sentido maior na vida humana: garantir as mudanças biopsíquicas e sociais da pessoa que cresce rumo à sua integralização cultural, isto é, construir-se cidadão, cidadã. A educação é cultural porque o humano não poderia ser formado distante das práticas da ética, da estética e da política.

Decorre que constitui um crime contra a pessoa humana, o educando, a educanda, propor formação técnico-profissional para os adolescentes sem que o currículo de estudos propicie o questionamento do trabalho na contemporaneidade, discuta o que mudou no ato de trabalhar, analise as relações entre capital e trabalho e pense na diversidade do trabalho e do emprego nas distintas regiões do país. Qualquer candidato, para ter direito de ser candidato a favor de um outro Brasil, teria a obrigação de pensar o trabalho como uma totalidade também cultural e não um remendo ou uma enganação educacional.

O que se deu em nossa história desde 1822 é que a educação liberal (e crescentemente capitalista) do nosso emblemático século XIX criou e legislou sobre uma espécie de educação “desencantada”, fracionada e diminuída, na qual se ensinam “conteúdos” de um currículo imposto, orienta-se para um emprego profissional, especialmente os pobres, e se adestra para a retenção de fatos a serem provados. Tudo distante dos desejos, vocações, necessidades manifestadas e significados vitais das pessoas que compõem as novas gerações. Tivéssemos tido forças históricas para outra orientação, veríamos com olhos de ver as culturas da mudança na correlação entre ciências, artes, técnicas, linguagens dirigidas ao futuro integral dos seres em processo formativo.

Mas o trabalho monstruoso do Império (fundamentado em escravatura e desprezo para com povos originários) consistiu em desencantar a educação no que ela já era pensada, isto é, lugar de direitos ao crescimento da pessoa, de respeito aos sentimentos da criança, de beleza do lúdico, de mudança social e cultural. As bonitezas do mestre e amigo Freire voam longe daqui. Para nosso azar, a herança deseducacional que o tempo de transição colonial cravou nos séculos XX e XXI consistiu na alienação comunitária da família, na alfabetização exclusivamente funcional, na supremacia branca a avançar por níveis de estudo, na ignorância do potencial transformador ético e estético da cultura e na crença conformada e conformista com a prática da colonização, espécie de purgatório de qualquer pensamento dialético. Só contam o a personificação do número 1 que manda e o 2 que obedece.

Deste modo, impossibilitados de crer na educação como mudança integralizadora do ser em sociedade (com raras e brilhantes exceções) criamos normas, regras, estratégias e palavras-de-ordem que mantêm quase intacto o legado formal da passagem canhestra da monarquia para a república. O Manifesto da Educação Nova de 1932 e os grandes embates Modernistas e revolucionários daquela década não tiveram sequência e o liberal-capitalismo voltou a mandar como antes. Sequer uma lei brilhante, o Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990, e uma Constituição Cidadã foram capazes de superar o legado indecente. Até agora.

Leiam-se artigos, acompanhem-se debates e verifiquem-se os planos de governo de quaisquer candidaturas pelo país afora e haverá lugar para o desencanto: trata-se de prometer ensino técnico/tecnológico para estudantes do ensino médio, o que revela aceitação do princípio básico da Reforma Temer-Bolsonaro; trata-se também de fazer da cultura a ordem unida do que preceitua a economia criativa do chamado “centro democrático” brasileiro; noutras palavras: cultura é negócio, cultura é criação pesada e vendida em novo sistema industrial de produção. Ainda um pouquinho mais e se pode verificar que a diversidade territorial, étnica e de classe do nosso país não é trabalhada pelo ângulo integrador do ético, do estético e do científico (valores fundamentais do ato de educar), mas sim pela sua logística e seus remendos políticos capazes de recuperar, em alguma medida, o tempo e as oportunidades perdidas, o horror do momento e as ameaças persistentes da pandemia.

Entende-se, pois, que muito raramente alguém cita, hoje, os resultados educativo-culturais a que chegaram as CONAES e mesmo a recente CONAPE, reunida em Natal, julho. Qualquer bom leitor encontraria nesses movimentos (fortes durante 15 anos deste século) todos os valores e estratégias educacionais necessárias às mais urgentes e consistentes políticas. Associadas às conferências regionais, estaduais e nacionais que trataram de trabalho e habitação, seus diagnósticos sócio-históricos, métodos de pesquisa e organização e encaminhamentos políticos superam tudo o que se discute e se promete hoje a torto e a direito. Parece, nos textos e falas, que o passado (secular e recente) se evaporou.

Não há que apontar culpas. O que ocorreu foi a aceitação de um legado funesto e bárbaro, mas vivo e ativo. Dentro dele, houve boas experiências nos vários níveis e etapas da educação, do ensino infantil à experiência universitária, as quais continuam a operar uma desejável, embora tímida, dialética, ou a tentativa de interpor entre estado, governo e povo novos valores, novos projetos, novos pensamentos de mudança. No entanto, nada ainda altera a força do legado, o que leva diretamente ao desencanto de discursos honestos como “falta muito a fazer”, “vai ser a luta de gerações”, “precisa instruir para o trabalho”, “é urgente pensar o ambiente e a ecologia”, “vamos recuperar o nível escolar dos grandes colégios de décadas anteriores” e “mais tecnologia para trazer a escola ao tempo global” ou “escola em tempo integral prá todo mundo e políticas imediatas superadoras do atraso ocasionado pela pandemia”.

Ora, os caminhos do saber e do desejo de saber não obedecem às lógicas das emergências ou dos conformismos. As culturas orgânicas do povo, vivas mesmo sob pandemia e pobreza, excluídas muitas vezes, terão de ser os ouvintes privilegiados pós eleição, pois nelas há dialética, isto é, os legados deletérios não são maiores que as forças, pois a pobreza cotidiana engendra a sua própria consciência. Em decorrência, pandemia, ensino, fome serão componentes comuns de equações trabalhadas pela vida a contrapelo, que é a condição humana comum das maiorias. Haverá uma pedagogia crítica segura para o reequacionamento da vida tornada indigna neste tempo. Ninguém precisa de salvação. Bastará a oitiva dignificante e o investimento sem amarras do capital.

É triste imaginar que toda a elaboração intelectual deste momento histórico em torno da educação parece resumir-se às disputas pelas instituições e pelos poderes num momento pós-eleitoral. As pessoas (incompletas e inacabadas como propôs Paulo Freire) que crescem nos distintos cantos do Brasil, com quatro, nove ou dezesseis anos de idade, ficam a ver navios (fantasmas) enquanto o discurso eleitoral flui. Será que perderemos outra vez o trem da História? Pena.

Talvez o momento brutal da administração do inominável planaltino tenha engendrado esse quadro enviesado. Ao contrário do que se escreve e se fala hoje, é a leitura da qualidade social da formação das gerações (com sua oitiva) que determinará a ação dos equipamentos e instituições mediadoras dos governos e da sociedade. Ora, não são as instituições (de fato elas se tornaram covis de bandidos) que devem ser liberadas ou salvas e sim sua significação (seu espírito) a serviço exclusivo do bem-querer (ah! Mestre Freire!) das distintas gerações em processo formativo, as quais se educam nas florestanias, nas periferias alargadas, nos campos, assentamentos e acampamentos, às beiras dos mananciais, no emaranhado urbano e noutras situações de vida. E se os povos do Brasil quiserem permanecer nos seus campos de vida, devem permanecer e construir uma cultura educacional de qualidade, pois o país não pode ser feito privilégios. É feito de geografia físico-humana. Ajude-nos Milton Santos.

As Diretrizes Curriculares Nacionais do CNE, estudadas e escritas desde a criação da LDB/1996, já deram a régua e o compasso para as Políticas de Educação/Cultura, mas aquele legado colônia-imperial negou sua evidência, pertinência e efetividade. O capital nunca perde. E capital cultural é um viés desnecessário. Existe e se move a cultura, as culturas do povo, cuja riqueza semântica ainda reage àquela violência secular.

A rigor, não se encontra hoje, (repita-se, em razão da geleia geral da campanha e seu salvacionismo) uma única proposta que se constitua em política matricial de educação, a qual se abraça à cultura, constituinte essencial do aprendizado, indução metodológica única a construir cidadãos e cidadãs. O cidadão é feitura de natureza e cultura. A educação solda esse processo constitutivo.

Será que no momento posterior à vitória da verdade e do encantamento (breve!) será possível de fato formular políticas plenas e necessárias de educação cultural e cultura educativa para o Brasil profundo? Oxalá!

*Luiz Roberto Alves é professor-pesquisador sênior da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Autor, entre outros livros, de Administrar via cultura: revolução educativo-cultural na ex-pauliceia desvairada, 1935-1938 (Alameda).

 

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