Golpe de Estado ao vivo

Imagem: Manifesto Coletivo
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Por CHICO WHITAKER

A tentativa de golpe tornou possível uma grande frente pela democracia, unindo os Três Poderes de República e a sociedade civil

O espetáculo oferecido ao mundo no dia 8 de janeiro de 2023 foi surpreendente: na paisagem de cartão postal de conjunto arquitetônico monumental de Brasília, capital do Brasil, milhares de pessoas vestidas com suas cores e bandeira começavam a invadir, sem que nada as contivesse – à distância parecia uma enorme chusma de formigas – os edifícios-sede dos três Poderes da República. Quem a conhecia logo percebeu que estava em curso, televisionado ao vivo, um novo tipo de golpe de Estado, protagonizado diretamente pelo povo. Mostrava-se também imagens do início da invasão: uma densa e longa coluna de pessoas marchando rumo à praça, aparentemente escoltadas por policiais.

Horas depois começaram a surgir, naquele mesmo cenário, policiais e militares vestidos de preto, que não se percebia de onde vinham, lançando bombas de gás lacrimogênio e jatos de água para acuar e expulsar os invasores dos palácios, da praça e das esplanadas para onde fugiam, até seu esvaziamento já tarde da noite. Soube-se depois que muitos invasores tinham sido detidos dentro dos palácios. Mas só no dia seguinte se teve notícia dos estragos que lá fizeram e de que tinham chegado a Brasília nos dias anteriores. Eram apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, vindos dos mais diversos rincões do país, com passagem, alojamento e alimentação gratuitos, em mais de cem ônibus fretados ou por outros meios de transporte.

Sem dúvida era uma operação política ousada, com esses apoiadores usados como carne de canhão. Certamente poucos dos que a seguiam pela televisão terão conseguido desligá-la antes que chegasse a seu final feliz, com o golpe abortado, e sem vítimas de tiros que poderiam ter sido disparados.

Nós brasileiros também fomos surpreendidos. O que vivi deve ter ocorrido em muitos lares do Brasil. Dia 8 era o domingo seguinte à posse de Lula. Eu participava de um almoço familiar tranquilo, na casa de uma filha que estivera em Brasília no domingo anterior, para participar da festa da posse, com seu marido e filhos e dezenas de milhares de pessoas de todo o Brasil, que tinham lotado a Praça dos Três Poderes e as esplanadas dos ministérios. E nos falavam da alegria que compartilharam: era o fim de um pesadelo de quatro anos. De repente, foram interrompidos por alguém que abrira seu celular e dissera: “vejam só o que está acontecendo em Brasília”. Levantamos imediatamente da mesa e sentamos todos na frente da televisão. E de lá não saímos, durante muitas horas, até que fossem afastados do cenário os últimos que resistiam à pressão policial. Tínhamos visto uma tentativa de golpe enquanto ela ocorria, uma curta semana após a posse do Presidente eleito. Que visara não somente a ele, mas as cúpulas de todo o poder político do país, atacadas concomitantemente de forma direta.

O espaço desta nota não me permite apresentar as origens e propósitos desse golpe frustrado e as tentativas anteriores de quebra da democracia pelos mesmos atores, nem como se conseguiu abortá-lo. Menos ainda as tensões vividas nos dois meses do segundo turno à posse de Lula, com atentados e ameaças, nem os muitos dados já disponíveis sobre as cumplicidades e omissões que tornaram possível a invasão dos Palácios.

Seria importante, no entanto, contar o que aconteceu no dia seguinte, segunda feira dia 9, não tão televisionado, mas extremamente significativo: houve quase automaticamente uma enorme reação de repúdio ao ocorrido em Brasília, da sociedade e das instituições políticas brasileiras. Milhares de cidadãos e cidadãs fizeram grandes manifestações de rua nas capitais do país, convocadas pelos movimentos da sociedade civil; e, a convite do Presidente Lula, realizou-se uma grande reunião numa sala do Palácio não alcançada pelos depredadores, em que todos os presentes assumiram um solene compromisso coletivo de defender a democracia. Dessa reunião participaram todos os ministros do governo, os governadores dos 27 Estados do país, os Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, a Presidente da Suprema Corte e seus Ministros presentes em Brasília.

Ao seu término todos participaram de um gesto altamente simbólico: seguiram em uma caminhada a pé do Palácio até o edifício do Supremo Tribunal Federal, o mais atingido pelo vandalismo, do outro lado da Praça dos Três Poderes, para lhe prestar solidariedade como Poder.

Continua bastante preocupante o que poderá ainda acontecer, ainda que alguns dias depois pesquisas de opinião indicassem que 93% dos brasileiros e brasileiras desaprovaram o que foi feito em 8 de janeiro em Brasília. Jair Bolsonaro dividiu o país, incutindo ódio em boa parte da população, acenando até para uma guerra civil. Durante seu governo, o número de armas de fogo adquiridas pelos civis aumentou sete vezes. No dia da posse, até o último minuto não se tinha decidido se, para ser empossado no Congresso, Lula deveria se deslocar em carro aberto ou em carro blindado. É certo, no entanto, que se tornou possível construir uma grande frente pela democracia, unindo os Três Poderes de República e a sociedade civil em torno do slogan Reconstrução e União. Que tenhamos sucesso.[1]

*Chico Whitaker é arquiteto e ativista social. Foi vereador em São Paulo. Atualmente é consultor da Comissão Brasileira Justiça e Paz.

Nota


[1] Artigo redigido como resposta a um pedido de informação da Comissão Justiça e Paz da França.

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