Por MARCELO SIANO LIMA*
A velha prática da conciliação irá prevalecer, ao menos quanto ao ex-presidente, pois se teme a convulsão que possa provocar sua prisão
Não acredito na prisão do ex-presidente, pelo menos no tempo de média duração. Apesar de os inúmeros indícios de crimes cometidos por ele – e por seus aliados do “partido militar”, do grande capital, de setores do Judiciário e do Ministério Público, bem como de outros, difusos e/ou organizados – serem de uma gravidade sem igual na história brasileira.
Acredito que, sim, esses aliados possam vir a ser condenados e presos, mas não ele, a maior liderança de extrema direita de nossa história, capaz de galvanizar um movimento que catalisou os mais variados, difusos e vis sentimentos de nosso povo. Ele deu voz e materialidade ao que de mais conservador, autoritário e reacionário há, desde 1500, em nossa sociedade, daí resultando sua liderança e seu capital político.
O ex-presidente não foi apenas mais uma decorrência do processo de desestabilização política do país operado com brutalidade a partir de 2013. Ele foi a própria encarnação do “anjo vingador” dos interesses e pessoas que a ele se juntaram na construção, desde 2016, de um projeto de aprofundamento dos institutos neoliberais sob um viés autoritário e reacionário.
O erro das forças políticas democráticas foi o de subestimar o potencial eleitoral desses grupos, não percebendo como os interesses externos dos países do Norte viram em Jair Bolsonaro a oportunidade de, valendo-se de seu notório autoritarismo e desprezo pela república, pela Constituição e pela democracia, avançarem na realização do projeto de uma sociedade neoliberal, mesmo que isso representasse a falência de todos os marcos civilizatórios duramente construídos ao longo de nossa história, especialmente após 1985, com o fim do governo civil-militar.
O “estado de exceção” e o processo de desestabilização vividos pelo Brasil desde 2013 nos legou uma institucionalidade trincada, uma sociedade dominada pelas ideias, discursos e práticas de intolerância e ódio, banalizados e elevados a políticas de Estado. Isso resultou na morte de milhares de brasileiros – pela pandemia, pelo genocídio de populações e pelo aumento brutal e legitimado da letalidade dos órgãos de segurança. Isso culminou na subversão de todo o devido processo legal e em ações que, no ápice, desembocaram na desorganização institucional e na tentativa de golpe de estado do dia 8 de janeiro de 2023, que fracassou, mas cujas forças motrizes permanecem atuando às claras.
A covardia e aderência de setores do Judiciário e do Ministério Público, o aparelhamento pelo extremismo neofascista das agências de segurança e informação, tornaram, nos últimos seis anos, assaz complexo o enfrentamento desse movimento que, no limite, almeja reformar a República, revogar a Constituição de 1988 e definir um modelo de (anti)democracia pautado na exclusão, na negação de direitos, na invisibilidade da maioria do povo brasileiro, no desprezo pela vida e na imposição de uma única ética pautada na tríade “deus, pátria, família”.
Investigar, processar e punir os responsáveis pelos milhares de crimes cometidos é uma condição imperiosa para a reconciliação do Brasil. As forças democráticas, vitoriosas nas eleições presidenciais de outubro de 2022, precisam entender a monstruosidade e o caráter perverso do inimigo que a ataca: o extremismo de direita, o neofascismo. Ele não busca diálogo, ele se move pela confrontação e pelo descrédito das instituições que desejam assaltar e aparelhar.
A velha prática da conciliação irá prevalecer, ao menos quanto ao ex-presidente, pois se teme a convulsão que possa provocar sua prisão, ainda que temporária. A esperança é que tal conciliação não se aplique, também, aos membros desse condomínio terrorista que jogou o Brasil em um emaranhado de crises, todas destinadas a fazer tábula rasa de nossa história.
Por fim, e de forma dolorosa, sou obrigado a assumir que, enquanto forças democráticas, estamos desde sempre a demonstrar nossa fraqueza diante da pujança desse inimigo. Nossa capacidade de entendermos os novos tempos, as novas mídias, está muito aquém daquela dos extremistas, o que lhes proporciona, ainda, o domínio das narrativas que constroem “realidades paralelas”, desprovidas de base realística, mas legitimadas de forma insana no imaginário social de milhões de brasileiros.
Esse é o nosso maior desafio enquanto defensores da democracia, o de retomarmos a luta pela verdade e pela defesa dos grandes interesses do Brasil, pela reconstrução dos marcos civilizatórios, isolando e anulando os extremistas e suas propostas de destruição deste país.
*Marcelo Siano Lima, historiador, é doutorando em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV).
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