Trajetórias do marxismo europeu

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RICARDO MUSSE*

Apresentação do livro recém-lançado

Há muitas, algumas excelentes, histórias do marxismo. A maioria delas concentra-se na descrição da incorporação da doutrina de Marx e Engels por organizações da classe trabalhadora e seu impacto na ação política de partidos, sindicatos e movimentos sociais.

O propósito deste livro é diverso. Trata-se de expor teorias que, por conta de sua originalidade e disseminação, se consagraram como formulações paradigmáticas na constituição do marxismo como tradição intelectual.

O quadro referencial deste trabalho não destoa das listas que indicam os expoentes políticos e intelectuais do marxismo. Na intenção de diminuir a aleatoriedade e o arbítrio inerentes à escolha de alguns poucos, numa vastidão de nomes importantes, adotou-se como critério de seleção um ponto preciso: a relevância da contribuição de cada um em modificações na autocompreensão do marxismo.

As demarcações que possibilitam agrupar políticos e teóricos no movimento, temporalmente desdobrado e etiquetado como “marxismo”, sempre estiveram e ainda se encontram sujeitas a intermináveis controvérsias. Uma delimitação menos polêmica, que talvez corra o risco de ser inócua, consiste em apresentá-lo como uma tradição formada pelo acréscimo, ao legado de Marx, da contribuição intelectual e política de seus seguidores, ou do arsenal prático-teórico desenvolvido por diversas organizações e partidos.

Uma determinação precisa desse conceito exige, no entanto, o esclarecimento de seus elementos característicos. Sem dúvida, no terreno da política, trata-se de uma tarefa hercúlea. Quando se considera apenas a vertente do marxismo como tradição intelectual, esse esforço torna-se menos árduo.

Karl Marx afirmou o caráter histórico dos modos de produção, buscando tornar inteligível a transição entre as diversas formações sociais. Destacou também o percurso histórico interno ao capitalismo, cuja dinâmica altera velozmente as formas de produção e as relações sociais. Ante isso, seu legado, base inconteste do marxismo, carece periodicamente de atualizações que acompanhem as modificações cristalizadas em diagnósticos distintos do “presente histórico”.

O repertório dessas “atualizações” do marxismo congrega muitas dimensões. Certamente, a principal delas concentra as formulações que acompanham e explicitam os desdobramentos na economia, na política e na cultura, fornecendo sustentação à determinação do presente histórico como inflexão relevante na trajetória do capitalismo.

Os procedimentos inerentes à satisfação da demanda por atualização periódica geram modificações significativas também na autorrepresentação do marxismo. A identificação da mudança histórica, com bastante frequência, é acompanhada de novas interpretações do pensamento de Marx que redimensionam seu legado e a própria sistematização do materialismo histórico. O mapeamento de uma nova situação histórica abre caminho para o preenchimento dos brancos e lacunas da obra de Marx ou para o desbravamento de áreas que permaneceram intocadas.

As coordenadas próprias à linhagem do marxismo, sobretudo aquelas que definem a autocompreensão que se tem (e se modifica) em momentos históricos distintos, foram determinadas, em larga medida, pela obra do “último” Engels. Pode-se discernir aí, retrospectivamente, em meio ao emaranhado de preocupações conjunturais e práticas, um princípio organizador: a sistematização das principais providências que possibilitaram ao marxismo constituir-se como uma tradição teórica e prática após a morte de seus fundadores. O conjunto de textos e livros produzidos por Friedrich Engels, em seus últimos anos de vida, estabeleceu o modelo formal que, com maior ou menor variação, foi seguido pelos principais teóricos do marxismo no decorrer do século XX.

Neste livro, Friedrich Engels é apresentado, pelos motivos expostos acima, como o primeiro marxista, e sua obra final como a certidão de nascimento dessa linhagem. Uma análise de Anti-Dühring (1878) constitui o ponto de partida temporal da tarefa aqui esboçada: o acompanhamento da gênese e consolidação do marxismo como tradição intelectual e das transformações em sua autocompreensão.

Ao longo do livro, procura-se desentranhar, em função desses propósitos, as concepções de marxismo como teoria (e inevitavelmente como prática), presentes em uma série de autores, aos quais se dedicaram espaços díspares: Eduard Bernstein, Karl Kautsky, Gueórgui Plekhánov, Rudolf Hilferding, Rosa Luxemburg, Vladimir Ilitch Lênin, Karl Korsch, Georg Lukács e Max Horkheimer.

Esse percurso encerra-se com a análise do artigo “Teoria Tradicional e Teoria Crítica” (1937), de Max Horkheimer. Nele se encontra o desenvolvimento de princípios teóricos – apresentados, sobretudo, em História e consciência de classe – que esclarecem por que cada modificação relevante na trajetória do capitalismo proporciona atualizações, pautadas por mudanças na tríade sujeito, teoria e objeto. Ali também foram expostos os elementos que possibilitam, para além de suas determinações gerais, a compreensão da história do marxismo como tradição intelectual. À maneira do último Engels, Max Horkheimer sistematizou as coordenadas formais seguidas doravante pela vertente denominada como marxismo ocidental.

O primeiro capítulo procura mostrar como a metodologia do marxismo tornou-se um tópico decisivo em sua determinação. Os contemporâneos solicitaram, com certa insistência, que Marx explicitasse seu método. Ele, no entanto, permaneceu reticente, talvez fiel à concepção de que o método constitui um tópico que não pode ser exposto separadamente da prática teórica. Os marxistas consideraram, porém, essa ausência como uma lacuna a ser preenchida. O capítulo contempla, com mais vagar, a controvérsia entre Eduard Bernstein e György Lukács acerca do lugar da dialética no marxismo e o modo polêmico como se posicionaram ante a exposição do método apresentada por Friedrich Engels.

O segundo capítulo debruça-se sobre as oscilações que fizeram com que o marxismo se autocompreendesse ora como ciência, ora como filosofia. Friedrich Engels definiu peremptoriamente o marxismo como “socialismo científico”. Alguns expoentes da primeira geração dessa linhagem, em especial Gueórgui Plekhánov e Antonio Labriola, encontraram elementos na obra de Engels que tornaram possível considerar o materialismo histórico como uma forma de filosofia. Marxismo e filosofia, de Karl Korsch, pode ser considerado como a justificação melhor fundamentada dessa hipótese. Essa ambivalência marcou a autocompreensão do marxismo-leninismo – com a dualidade “materialismo histórico” e “materialismo dialético” – e a autorrepresentação dessa tradição pelos marxistas ocidentais.

O terceiro e quarto capítulos, de maior extensão, apresentam a gênese do marxismo, seu enraizamento nos partidos de massa criados no último quartel do século XIX e seus desdobramentos até às vésperas da Segunda Guerra mundial.

O primeiro bloco intitula-se “De Friedrich Engels a Rosa Luxemburg”. Concentra-se no acompanhamento e comentário de episódios marcantes da trajetória do marxismo como a querela do revisionismo; a tripartição em correntes distintas do então poderoso partido da socialdemocracia alemã, cristalizada a partir de recepções díspares da Revolução Russa de 1905 na Alemanha; o fim da II Internacional com a votação, em 1914, dos créditos de guerra; a polêmica acerca do significado da Revolução Russa de 1917 e o surgimento da Terceira Internacional.

O outro bloco, “De Lukács a Horkheimer” começa mostrando como e por que História e consciência de classe, de György Lukács e Marxismo e filosofia, de Karl Korsch, ambos de 1923, foram contestados em congressos da Segunda e da Terceira Internacional. Em um texto de 1929, “A situação atual do problema (anticrítica)”, Karl Korsch delimita, pela primeira vez, as coordenadas de um emergente “marxismo ocidental”. Por fim, aborda-se a constituição da Teoria Crítica, destacando determinações que se tornaram paradigmáticas no desenvolvimento do marxismo ocidental.

As exposições do terceiro e quarto capítulos, a seleção desses fatos e de uma gama de autores considerados representativos nas inflexões da trajetória do marxismo, adotam por eixo delimitações, a cada momento, de compreensões diferentes desse movimento. Em um curto espaço de tempo, a autorrepresentação do marxismo concebeu-o, entre outros, como “socialismo científico”, “ideologia do partido”, “teoria revolucionária” e “tradição intelectual”.

Um excurso, inserido no final do livro, aborda o marxismo ocidental, uma das correntes mais importantes do marxismo no século XX, ao lado da Segunda e da Terceira Internacional. Seu arcabouço teórico e consequências políticas são apreendidos, de forma indireta, a partir de comentários que problematizam as análises de destacados historiadores dessa vertente.

Ricardo Musse é professor no Departamento de Sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de Émile Durkheim: Fato social e divisão do trabalho (Ática).

Referência


Ricardo Musse. Trajetórias do marxismo europeu. Campinas, Ed. Unicamp, 2023, 220 págs.
https://amzn.to/3R7K8wt


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O veto à Venezuela nos BRICSMÁQUINAS FOTOGRÁFICAS 19/11/2024 Por GIOVANNI MESQUITA: Qual seria o maior desaforo ao imperialismo, colocar a Venezuela nos BRICS ou criar os BRICS?
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Notas sobre a disputa em São Paulogilberto maringoni 18/11/2024 Por GILBERTO MARINGONI: É preciso recuperar a rebeldia da esquerda. Se alguém chegasse de Marte e fosse acompanhar um debate de TV, seria difícil dizer quem seria o candidato de esquerda, ou de oposição
  • O perde-ganha eleitoralJean-Marc-von-der-Weid3 17/11/2024 Por JEAN MARC VON DER WEID: Quem acreditou numa vitória da esquerda nas eleições de 2024 estava vivendo no mundo das fadas e dos elfos

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES