Por LUIZ MARQUES*
A erosão das condições de vida dos trabalhadores e as iniquidades estruturais da humilhação espalham a frustração com os valores da democracia
As redes sociais se mostraram ativas na ascensão da extrema direita, nos hemisférios Norte e Sul. O teatro cibernético é um influencer digital poderoso, conforme a pesquisa DataFolha sobre as vendas de joias sauditas recebidas pelo inelegível, no mandato que foi tarde. Para 68% dos entrevistados, Jair Bolsonaro sabia das vendas, e 52% acreditam que cometeu um delito. Mas 38% avaliam que o inelegível não cometeu crime, e 17% confiam que não tinha conhecimento. O percentual dos que, com o escudo do fanatismo e da ignorância, rechaçam as provas em contrário é significativo.
Anda à solta o espírito do terrorista já condenado que rugia em um vídeo: “Supremo é o povo. Os caras cagam tanto no Brasil. Acho que vou cagar no Senado. Tem um espelho d’água lá, vou nadar lá. Aquilo é meu”. Somos ainda uma nação marcada pelo colonialismo e pelo patriarcado, que por séculos naturalizou o racismo e a misoginia. Não surpreende a sub representação política dos negros e das mulheres. Entre nós, a república é uma miragem separada da realidade por um muro de proteção a privilégios que remontam às capitanias hereditárias. A distinção entre o público e o privado é uma mera sugestão na Terra brasilis. A cultura do patrimonialismo embaça as lentes.
Evidentemente o fato de algo se situar no espaço comum não confere sua propriedade a ninguém. No entanto, mais de um terço das pessoas raciocinam à maneira do ressentido que, ora, pena atrás das grades. Supõem que, se os presentes eram da União, podiam render dividendos ao mandatário. A massa de manobra de interesses ocultos ignora os mentores intelectuais e os financiadores do caos em 8 de janeiro, para justificar uma intervenção militar com vistas à anulação das eleições. Sequer classificam de “golpe” as agressões violentas contra a Constituição e a soberania popular.
Ao evitar as prisões de pseudopatriotas defronte os quartéis, durante a madrugada do day after, o comandante da 11° Região Militar do Exército ganhou tempo na expectativa de que a inusitada demonstração de força, metabolizada pela vontade geral, mobilizasse os Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs), além dos zumbis tradicionais para derrubar o governo eleito. Contudo, as ruas silenciaram em favor do Estado de direito democrático. O presidente da República, do Supremo Tribunal Federal (STF), da Câmara dos Deputados e do Senado cerraram fileiras com a legalidade. O Alto Comando das Forças Armadas captou a mensagem, somou-a à desautorização da potência imperial em recados reiterados de Joe Biden – e, com o coração partido, puxou o freio de mão.
A estratégia previa um banho de sangue, a exemplo do atentado planejado no aeroporto de Brasília. Não seria a primeira vez que as Forças Armadas violariam o seu compromisso constitucional. Tampouco a dos empresários que conspiraram para instalar o Estado de exceção, aos moldes da ditadura civil-militar de 1964. O ajuste de contas, que não ocorreu na redemocratização a partir de 1985, revelou o erro do centro político (MDB), à época, ao aceitar a transição “por cima” sem julgar os usurpadores do poder. Para Joaquim Nabuco, fazer a Abolição foi fácil; difícil é tirar a propensão escravista d’alma das “elites”. A geração da Escola Militar de Agulhas Negras, sob o regime antidemocrático de antanho, compõe o generalato atual – cujas estrelas equiparam o país a uma loja de conveniência.
A expulsão do outro
As redes sociais recuperam o que Byung-Chul Han denomina de “terror do igual”, em A expulsão do outro: sociedade, percepção e comunicação hoje. Ampliando o escopo do ensaio, é possível afirmar que a positividade do mesmo virou inimiga da negatividade do outro. “A proliferação do igual constitui as transformações patológicas do corpo social”. Assim, a “sobrecomunicação” e o “sobreconsumo” geraram a “depressão” e a “permissividade” contemporâneas. A comunicação deixou de ser comunicativa para ser cumulativa e, o consumo, predatório. Já os consumidores se entopem de filmes e séries, sem limitação temporal. Os algoritmos garantem o que corresponde ao gosto dos fregueses, percebidos como gado para a engorda com o sempre igual, quando se percebe que a estruturação das narrativas obedece a um padrão que se repete à exaustão, dia e noite.
Vive-se a era da “biopolítica” anunciada por Michel Foucault no curso Nascimento da biopolítica, do Collège de France (1978-1979), onde o pensador francês analisa o expansionismo da ideologia neoliberal que – mais do que um modelo econômico – universalizou o sujeito “empreendedor de si mesmo”, com critérios empresariais: rentabilidade, produtividade. O apelo à “autenticidade” reforça a compulsão para a individuação. Adoecemos terminalmente de neoliberalismo, “em um Estado sob a vigilância do mercado, em vez de um mercado sob a vigilância do Estado” (aula de 07/02/1979).
Byung-Chul Han destaca as subjetividades reificadas, as quais evocam a mercantilização de tudo e todos. Para pagar a pequena dívida com Vigiar e punir, Foucault é citado na página 83. Semelhante aos pássaros que cantam longe do ninho para não denunciar a sua localização, muita gente boa sofre da amnésia de citação sobre a obra do predecessor a quem mais deve, na academia. E la nave va.
A expulsão do diferente acarreta um processo de destruição da alteridade. Na internet, falta a tensão dialética do outro; sobra a unidade insípida da uniformidade. O terror do igual abrange múltiplas esferas da existência. O neofascismo também se alimenta da dinâmica que orbita as próprias ideias, no emaranhado do eu. A conexão digital entre iguais substitui o encontro presencial com o outro, o que leva a um estreitamento do nosso horizonte de experiências existenciais.
A essência da relação com o outro é a dor pelo deslocamento do centro de gravidade de cada um. “A dor dá lugar, agora, ao ‘curtir’ que propaga o igual”, para contornar a dor de ser e estar. O cálculo reproduz o conhecido. Na arquitetura, o igualitarismo mercadológico é visível nos shopping centers sem janelas para o exterior, feito um sistema fechado para excluir os indesejáveis e, idem, os críticos antissistêmicos.
A sociedade do medo e a sociedade do ódio se condicionam mutuamente, ensina a filosofia política. Um nacionalismo de fachada entrega à iniciativa privada o patrimônio estratégico do país. No desgoverno o entreguismo atingiu a Eletrobras, a Petrobras, o pré-sal e a Base de Alcântara para uso comercial do centro de lançamento de foguetes e satélites. O acordo com os Estados Unidos foi assinado pelo hipócrita que amava o slogan “Brasil acima de tudo”, ma non troppo (mas não muito). E pregava “Deus acima de todos”, meno dei venditori del tempio (menos para os vendilhões do templo).
Sem propostas que estimulem a solidariedade institucional do Estado e o sentido do comum, para uma superação vital-política do Consenso de Washington, segmentos desinformados são cooptados pela demagogia da extrema direita para canalizar a insatisfação com o status quo.
Um breve balanço
A erosão das condições de vida dos trabalhadores e as iniquidades estruturais da humilhação espalham a frustração com os valores da democracia. A autonomização da economia em face da política mina a organização social fundada nos partidos. A falsa independência do Banco Central confirma o controle do mercado, no caso, de capitais sobre a política monetária nacional. Segundo o Global Wealth Report 2023, 58,7% da população brasileira padece de insegurança alimentar (leve, moderada ou grave), enquanto metade da riqueza (48,4%) está de posse de 1% de chupacabras. É preciso erradicar do mapa do Brasil tamanha vergonha. A taxação dos ricos é uma questão moral, de solidária empatia com os esforços de desconcentração da renda e implementação da justiça fiscal.
O saldo do “governo da esperança” é positivo. No cenário-local, a correlação de forças políticas está mais equalizada, e os efeitos se refletem nas dimensões social, ambiental, cultural e econômica. No cenário-mundo, as viagens do presidente Lula da Silva movimentam peças fundamentais no xadrez da luta de classes, em escala internacional.
A agenda mundial incorpora consensos para resolver os inadiáveis problemas climáticos, atacar as desigualdades, garantir a paz, fortalecer a democracia e reformar as instituições responsáveis pela governança global, sintetiza o estadista brasileiro (Discurso de Abertura na Assembleia Geral da ONU, 19/09). Já balançam os pilares ideológicos do neoliberalismo. O igualitarismo mercadológico perdeu o prazo de validade.
*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.
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