Por que não o socialismo?

Claudio Cretti (Jornal de Resenhas)
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Por G. A. COHEN*

Introdução do livro recém-editado.

O preâmbulo de Praga

O verdadeiro título desta conferência é “Por que não o socialismo?”:[1] é assim que eu a nomeio quando tenho que ministrá-la em outros lugares que não sejam Praga. Entretanto, aqui, em Praga, na cidade de Franz Kafka, às vezes disfarces são necessários, e me pareceu sensato não utilizar “Por que não o socialismo?”, o título verdadeiro, e, em vez disso, o título tal como divulgado, “São a igualdade e a comunidade possíveis?”. Na minha opinião, o sentido dos dois títulos é muito parecido, porém a diferença entre eles pode parecer muito maior para vocês do que parece para mim.

Acredito que a maioria dos tchecos e tchecas reagiria ao título “Por que não o socialismo?” com raiva, ou acreditando ser uma brincadeira, ou ambas as coisas. A Tchecoslováquia experienciou uma tirania brutal e crimes monumentais em nome do socialismo. E, o que é ainda pior, do ponto de vista de um ou uma socialista, o país sofreu essa sina em parte como o resultado de uma tentativa absolutamente sincera de construir uma sociedade verdadeiramente socialista.

Durante os anos do comunismo, o nome e o ideal do socialismo foram cinicamente manipulados como forma de obter ganho, poder pessoal e autopromoção, porém também existia, ao lado dessa manipulação – e por obséquio perdoem-me por repetir isso –, existia uma dedicação absolutamente sincera em relação ao ideal socialista. Se o hoje finado experimento não tivesse tido relação alguma com os verdadeiros princípios socialistas, tendo carregado apenas o nome “socialismo”, então nós socialistas – digo “nós” porque eu permaneço socialista – teríamos menos motivos para o desalento causado pelo fato de o experimento ter sido um desastre do que efetivamente temos.

Como uma criança e como um jovem que cresceu em um lar comunista da classe trabalhadora em Montreal, eu era membro do movimento comunista internacional. Era uma das milhões de pessoas que acreditava, com todo o meu espírito, com todo o meu coração, e com tudo de bom e positivo em mim, que a União Soviética e o que então chamávamos de democracias populares e de China popular estavam criando sociedades devotadas à justiça social e ao florescimento humano.

Adquiri essa crença quando tinha cinco ou seis anos de idade, em 1946 ou 1947, como resultado da minha criação em uma família comunista da classe trabalhadora de Montreal. Comecei a perder a crença no começo dos anos 1960, quando nos meus 20 e poucos anos, e a perdi totalmente no máximo em 21 de agosto de 1968, dia no qual disse àquela que na época era minha esposa: “Pela primeira vez em minha vida sou antissoviético”.[2] Com isso, não quero dizer que eu fosse ingênuo sobre a União Soviética e a Europa Oriental antes dos tanques entrarem em ação. Pelo contrário: já naquela época compreendia a mim mesmo como um crítico extremo do comunismo existente.

Porém, até aquele dia ainda existia, ao menos conceitualmente, um “tu” [thou] a quem minhas críticas e minha raiva podiam ser endereçadas. A União Soviética perdeu seu status de “tu” para mim, e se tornou um monstruoso “isso” quando, às 8 horas da manhã, o jornal da BBC noticiou: “Tropas soviéticas, polonesas, alemãs orientais, húngaras e búlgaras entraram essa manhã…”.[3]

Reconheço que aquilo que eu acreditava ser um paraíso, ou o caminho para o paraíso, era, para vocês e para os seus antepassados, uma forma de inferno. Não acredito que eu possa ser culpado por não ter percebido isso, ou por ter pensado o exato oposto. Minha crença errônea era fruto de sentimentos nobres. Porém, racionalmente ou não, sinto que devo, de qualquer modo, oferecer minhas desculpas, e por isso o farei.

Meu alinhamento soviético é oriundo do fato de ter sido criado como um marxista (e um comunista estalinista) do mesmo jeito que outras pessoas são criadas católicas romanas ou muçulmanas. Meus pais, e a maioria dos meus parentes, eram comunistas da classe trabalhadora, e muitos deles, por suas convicções, cumpriram alguns anos de prisão nas cadeias canadenses.

Uma das pessoas que haviam sido presas era o meu tio Normand: ele era casado com a irmã do meu pai, Jenny, que, posso lhes garantir, dançou certa vez com Josef Stálin. Em agosto de 1964, eu passei duas semanas na Tchecoslováquia, em Praga, na rua Lermontova, em Podbaba, onde, na época, ficava a casa de Norman e Jenny. Eles moravam lá porque Norman era o editor da World Marxist Review, a hoje extinta revista teórica sediada em Praga do também hoje extinto movimento comunista internacional.

Durante o dia, eu perambulava por Praga conversando com quem quer que quisesse conversar comigo. Eu falava um pouco de russo e um pouco de alemão, e Norman e Jenny estavam muito ocupados, de tal forma que eu tinha muito tempo livre para perambular por esta cidade gloriosa e conversar com as pessoas e, ao entardecer, discutir com Jenny e Norman sobre o que eu pensava ter descoberto.

Ao sair e passear pela cidade, não encontrei ninguém que pudesse me dizer coisas boas sobre o regime. No primeiro dia, retornei para casa e disse isso ao tio Norman, talvez de um modo ligeiramente sádico. Eu o estava punindo pela minha decepção: não seria a sua total identificação com o regime algo que o tornava um alvo justificado dessa punição? Norman, porém, tinha uma resposta. “Puxa vida”, exclamou, “você deve ter conhecido pessoas muito estranhas!”.

Assim parti novamente no dia seguinte, e, após minha pesquisa de opinião produzir o mesmo resultado, eu a apresentei ao tio Norman mais uma vez. Agora sua resposta foi mais séria. “Você tem que entender que, antes da revolução, existia uma classe média considerável que perdeu muito com a revolução dos trabalhadores.” A resposta para os achados do terceiro dia foi: “Você tem que entender, Praga tinha uma classe média enorme.” Depois do terceiro dia, deixei de buscar esclarecimentos vindos do tio Norman: eu não queria escutar que a classe média tinha sido ainda maior do que enorme.

O que eu pensava a respeito da Tchecoslováquia antes dos meus deslocamentos e pesquisas, cujos frutos apresentei para Norman naquelas tardes de agosto de 1964? Eu acreditava que a Tchecoslováquia estava indo toleravelmente bem no quesito provisão material, mas que sofria uma perda injustificada de liberdade de expressão e outras liberdades civis. Menciono a liberdade de expressão em particular porque essa questão está no cerne da maior lição que aprendi em Praga em agosto de 1964. Antes de explicar qual foi essa lição, um pouco de contexto se faz necessário.

Os comunistas e as comunistas da minha infância costumavam responder de três modos diferentes à acusação segundo a qual os países comunistas cerceavam a liberdade de expressão, e essas três respostas podiam ser elencadas em graus distintos de sofisticação. A primeira, e a mais grosseira delas, consistia em simplesmente negar que existiam restrições à liberdade de expressão: explicarei em um instante como era possível para as pessoas acreditar em tamanha falsidade.

A segunda resposta, um pouco mais sofisticada, reconhecia a existência de restrições com uma expressão de pesar, seguida de uma justificação das restrições com base nos inimigos externos e internos: lastimavelmente, não poderia haver liberdade de expressão, porque o mundo capitalista exploraria essa liberdade para propósitos contrarrevolucionários. Muitas eram as variantes dessa resposta. Você poderia oferecê-la sem deixar de pensar, por exemplo, que as autoridades tinham ido longe demais.

Você também poderia pensar que algumas restrições da liberdade de expressão eram justificáveis, mas que as restrições que efetivamente eram adotadas eram mais amplas do que as que poderiam ser justificadas: e com isso você podia exibir para as pessoas o quão crítico, o quão livre você era ao dizer essas coisas.

E, finalmente, existia a resposta mais sofisticada de todas, que era aquela em que eu acreditava, qual seja, a de que, ao contrário da primeira resposta, existia uma restrição enorme à liberdade de expressão e que, diferentemente da segunda, (praticamente) nenhuma delas era justificada, mas quem era de fato afetado por isso eram apenas, ou majoritariamente, os intelectuais, e que não devíamos avaliar a questão por essa perspectiva. A falta de liberdade era má, mas era um mal limitado: precisávamos ter cuidado para não concluir que isso fosse um mal maior do que de fato era.[4]

E, em agosto de 1964, aprendi que a minha crença era uma visão paternalista, porque a falta de liberdade de expressão alija todas as pessoas da verdade. Se tudo aquilo a que temos acesso é o Rudé právo, e sabemos que ele mente, não podemos realmente saber o que está acontecendo no mundo ao nosso redor, e sabemos que nossa informação é controlada por mentirosos, mesmo que não tenhamos desejo nenhum de expressar alguma coisa nós mesmos.[5]

A liberdade de expressão é um imperativo não apenas porque nenhum ser humano tem o direito de silenciar o outro, mas porque, além disso, não apenas os seres humanos têm o direito de expressar a si mesmos, como têm o direito de ter acesso às visões das outras pessoas e à verdade, direitos esses que vão muito além do direito de não termos uma intervenção arbitrária em nossa liberdade (o que inclui o direito à liberdade de expressão), direitos que são mais positivos, porém não menos urgentes por causa disso. Na ausência da liberdade de expressão, não apenas quem fala usa mordaça, mas todas as pessoas vivem em uma prisão.

Dito isso, eu tinha prometido abordar o problema de como era possível para alguém acreditar que o comunismo europeu estava realizando os ideais socialistas. Como era possível, por exemplo, que alguém acreditasse na primeira resposta grosseira contra a acusação de que a liberdade de expressão estava sendo suprimida, uma resposta que simplesmente negava isso? Como uma pessoa podia fechar seus olhos para uma coisa tão evidente? Não seriam crenças como essas o reflexo de interesses egoístas ou, pelo menos, de uma análise permeada pelo desejo?

Ora, sem dúvida era isso que as pessoas que acreditavam nela queriam acreditar. Porém, isso nos diz por que elas eram motivadas a acreditar, e não como isso era possível para elas. Eu posso estar motivado a acreditar que minha esposa é fiel, mas não poderia acreditar nisso caso a encontrasse nos braços de outra pessoa.

Aqui precisamos estabelecer uma distinção entre quem havia visitado a União Soviética, ou algum outro país comunista, e quem não havia. Considerarei apenas a grande maioria que não os havia visitado. Como nós[6] podíamos simplesmente desacreditar do que a imprensa reportava, e do que a grande maioria das pessoas ao nosso redor acreditava? Bem, acreditávamos que a grande maioria das pessoas obtinha suas opiniões na imprensa burguesa, de tal forma que o que realmente precisamos explicar é por que não acreditávamos na imprensa.

E a resposta para isso é que nós sabíamos – eu disse sabíamos, e não acreditávamos – que a imprensa burguesa mentia. Não quero dizer com isso que ela mentia sobre as condições de vida na União Soviética, já que, no mais das vezes, ela não mentia sobre isso, porque ela não precisava fazê-lo. Quero dizer que sabíamos que ela mentia sobre o capitalismo, que ela, por exemplo, distorcia as greves, que encobertava a pobreza. Os capitalistas eram os donos da imprensa e ela reportava o que reportava do ponto de vista capitalista.

Ela era motivada a mentir sobre o Quebec capitalista e o Canadá capitalista, e sabíamos que ela o fazia, então por que ela não deveria mentir também sobre a sociedade socialista rival, exatamente pelas mesmas razões? Como podíamos saber que ela não tinha necessidade alguma de mentir sobre o socialismo realmente existente para pintá-lo com aquelas cores tão sombrias?

Pensávamos que a igualdade e a comunidade eram um bem, tentamos alcançá-las, e produzimos um desastre. Devemos concluir que aquilo que pensamos ser um bem, a igualdade e a comunidade, não são, de fato, um bem? Essa conclusão, tão comumente inferida, é tolice. As uvas podem ser verdes de fato, mas não é o fracasso da raposa em alcançá-las que nos demonstra que elas o sejam.[7]

Devemos concluir que qualquer tentativa de produzir esses bens necessariamente falharão? Esse é o caso apenas se acreditamos ou que essa é a única maneira possível de produzi-los, ou que aquilo que fez com que essa tentativa falhasse fará com que todas as tentativas semelhantes falhem, ou ainda que, por alguma outra razão, qualquer tentativa necessariamente falhará. Acredito que não podemos afirmar nenhuma dessas coisas. Na minha visão, a conclusão correta a ser inferida disso é a de que devemos tentar diferentemente – nos diferentes graus e sentidos de “diferentemente” – e que devemos ser muito mais cautelosos. É nesse espírito de obstinada, porém prevenida, dedicação que o texto Por que não o socialismo?, aos quais essas anotações constituem um preâmbulo, foi escrito.[8]

*G. A. Cohen (1941-2009) foi professor do All Souls College da Universidade de Oxford. Autor, entre outros livros, de On the currency of egalitarian justice, and other essays in political philosophy (Princeton University Press).

Referência

G. A. Cohen. Por que não o socialismo? Tradução: Lucas Petroni. São Paulo, Unesp, 2023, 128 págs. [https://amzn.to/41uGkJ0]

Notas

[1] Texto publicado pela primeira vez como o Capítulo 2 de Finding Onself in the Other, de G. A. Cohen (organizado por Michael Otsuka), Princeton University Press, 2013, foi originalmente preparado na forma de notas introdutórias a uma conferência sobre socialismo intitulada “São a igualdade e a comunidade possíveis?”, que seria ministrada pelo autor na cidade de Praga, atual capital da República Tcheca e antiga capital da República Socialista da Tchecoslováquia, em 2001. O preâmbulo, contudo, não chegou a ser apresentado devido a dificuldades técnicas envolvendo o visto de entrada de Cohen no país. (N. T.)

[2] Cohen refere-se ao dia da ocupação da então Tchecoslováquia pelas forças do pacto de Varsóvia, liderada pela União Soviética, pondo fim à Primavera de Praga, o experimento de liberalização política e democratização do regime tchecoslovaco iniciado cerca de um ano antes pelo líder reformista Alexander Dubček. (N. T.)

[3] O autor alude, nessa passagem, à distinção estabelecida por Martin Buber entre dois modos diferentes de existência. Relações interpessoais, nas quais as partes se reconhecem como iguais em reivindicações morais, “Eu-Tu” [Ich – Du], e relações epistêmicas, ou técnicas, do tipo “Eu-Isso” [Ich-Es], no qual uma das partes, o “isso”, é tomada como um dado da realidade. Ver Martin Buber, Eu e tu (tradução de Newton Von Zuben), Centauro Editora, 2009. (N. T.)

[4] Muito provavelmente o tio Norman acreditava inconsistentemente nas três respostas. Quanto a isso, posso apenas especular. Porém, posso relatar que, a respeito dos críticos simpatizantes do comunismo, ele dizia de modo contumaz que “eles fazem da liberdade um fetiche” – seja qual for a interpretação que se dê a essa frase.

[5] Rudé právo, ou “Justiça Vermelha” em tcheco, era o órgão de imprensa do regime equivalente ao Pravda da União Soviética. (N. T.)

[6] Como explicado anteriormente, eu acreditava que havia restrições consideráveis à expressão, porém existem outras tantas coisas que eu acreditava, ou desacreditava, que surpreenderiam vocês.

[7] Alusão à parábola “A raposa e as uvas”, de Esopo (reescrita por La Fontaine), na qual uma raposa, diante do fracasso em alcançar belas uvas penduradas na videira, convence-se irracionalmente de que elas estariam, na verdade, verdes ou azedas. No ensaio “O futuro de uma desilusão”, Cohen emprega o problema das “uvas verdes” – ou sour grapes, em inglês – como uma ilustração do mecanismo de preferências adaptadas e para compreender o futuro do socialismo após o fracasso da experiência soviética. O ensaio foi publicado na New Left Review 190 (nov./dez. 1991) e republicado como Capítulo 11 do livro Self-Ownership, Freedom and Equality, Cambridge University Press, 1995. (N. T.)

[8] Agradeço a Michèle Cohen pela interlocução atenciosa.

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