A nova “objetificação” do negro

Imagem: Özer Özmen
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Por RONALDO TADEU DE SOUZA*

As lutas históricas e muito sérias de negros e negras foram instrumentalizadas, utilizadas, manietadas, administradas

“Por isso digo, e juro, se necessário for, que toda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada[1] […] [por isso] neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de […] dar um aspecto simbólico [ao feito ilustrado] (Machado de Assis, Abolição e liberdade (19/05/1888).

Em um exercício à beira do delírio, imaginemos nós, pela ordem, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Octavio Ianni e mesmo Fernando Henrique Cardoso se ocultando de proferir comentários críticos e até, de certo modo, “defendendo”, o encarceramento em massa de negros e negras no Brasil. Era algo despropositado que esses homens brancos de classe média (exceção feita ao plebeu Florestan, filho de empregada doméstica… e que conheceu a árdua vida do trabalho desde tenra idade), que produziram o que se pode dizer dos primeiros estudos sistemáticos sobre a questão racial,[2] “o problema do negro”, procedessem daquela maneira.

Ainda assim, a eles coube a caracterização de transformar o negro em: tema de pesquisa e/ou objeto de pesquisa. O tirocínio, eminentemente, arguto, de Guerreiro Ramos ao formular os equívocos da intelectualidade branca (paulistana, sobretudo), que transfigurava o negro-vida em negro-tema (negro-objetificado), mesmo com ponderações temporais e epistemológicas a serem feitas, possuía profunda lógica argumentativa interna.

Guerreiro Ramos, um dos mais originais intelectuais que o Brasil já produziu (lembremos que ele foi um dos primeiros a ter contato, ler e estudar os textos do teórico político Eric Voegelin – que hoje é significativamente difundido no debate acadêmico brasileiro), estava, relativamente,[3] correto ao criticar seus pares da sociologia paulistana: faltava àqueles a sensibilidade imanente-existencial para perceber as potencialidades subjetivas do negro, algo já demonstrado pela própria história do país com as insurreições dos Quilombos (tão belamente descritas por Beatriz Nascimento e Clóvis Moura) e várias outras manifestações de resistência.

Entretanto, e insistindo no ponto, é pouco provável que aqueles não se posicionassem, de alguma maneira, caso tivessem que enfrentar um problema nacional de tal magnitude sobre seu tema-objeto. Na história recente da intelectualidade – ou o que resta dela (pois, hoje temos quase que exclusivamente scholars competentes, não-brancos inclusos aí, com agendas de pesquisa séria e que vez por outra emitem opiniões insossas porque não comprometidas com os de baixo, bem-pensante e conformistas), nesse caso nada praticamente (com raríssimas exceções a destacar de um Jones Manoel, de um Vladimir Safatle, de um Jean Tible, de uma Paula Nunes, de um Paulo Galo, de editores e editoras convictos como os/as que estão à frente da Dandara[4], de uma Letícia Parks; de um Douglas Barros; são os e as que me vem proustianamente à memória por agora… o que é sintomático), ao contrário da ditadura que “tudo restou” –, das universidades e da política brasileiras, estamos a presenciar um novo tipo de transfiguração do negro-vida em negro-tema e/ou negro-objeto. Vejamos o argumento em três momentos.

Nova geração

Com avanço das políticas de ação afirmativa nos últimos anos, e por questões peculiares das próprias relações e interações do mundo e da sociedade modernas (é sempre fundamental estar atento ao que Marx conceituou como divisão social do trabalho, o trabalho “prático-físico” e o trabalho intelectual, e as contradições dessa forma de vida), bem como dado a necessidade de resistência, sobrevivência mesmo por assim dizer, algo que sempre foi constitutivo da experiência e horizonte dos de pele preta desde os dias de Palmares, emergiu uma geração aguerrida de negros e negras.

Impulsionados, de certa maneira, pelo evento-Djamila Ribeiro e seu conceito de lugar-de-fala e o prefácio de Mulher, Raça e Classe, de Angela Davis[5] (uma retomada da filósofa e teórica política negra norte-americana imprescindível para entender a constelação de acontecimentos políticos, culturais e simbólicos recentes), esses novos agentes sociais passaram a ter maior presença no debate público, nas discussões acadêmicas e nas querelas políticas.

Ousados e ousadas; com denodo; mais autoconfiantes de quem procederam[6]; com sólida formação intelectual e acadêmica – eles transformaram-se em sujeitos de ação, em sentido amplo e variado. Com efeito; ocorreu a partir de então, um output literário, cultural, “moral” e universitário, bem como político e estatal: passávamos, então, a uma circulação de obras, autoras e autores, agendas de pesquisa, noções (epistemicídio, decolonialidade, branquitude, empatia, o emplasto racismo estrutural, privilégio branco) e posições táticas e políticas mais heterodoxas e imaginativas (é o caso dos mandatos coletivos). Vivenciávamos e vivenciamos, assim, um momento singular das lutas contra o racismo entre nós.

Desfaçatez e bolsonarismo

Com as transformações das ciências humanas (filosofia, sociologia, ciência política, história, antropologia, arte, literatura) cada vez mais da perspectiva abrangente para as especialidades – a figura do/a intelectual, praticamente desapareceu. Hoje, temos pesquisadores e pesquisadoras treinados, com competência é bem verdade, que focam seus esforços na agenda de pesquisa que desenvolvem e na vivência cotidiana do mundo campi). É um sistema que Russell Jacoby, no contexto norte-americano já descreveu em Os últimos intelectuais.

Vale dizer, portanto, que a perspectiva de encontrarmos espíritos críticos, críticos de esquerda, intelectuais públicos, engajados no sentido que Sartre deu é incomum. Além disso, invariavelmente são oriundos das classes médias: possuem um acúmulo considerável de capital cultural para falar com Pierre Bourdieu – mas pouco senso de humanismo revolucionário (Sartre, novamente).

Ocorre que no Brasil, parte do debate acadêmico com essa diferenciação tem impacto decisivo na composição e conformação mental da esquerda – e/ou nos setores ditos progressistas. (Safatle e Manoel vêm insistindo nessa observação no período que estamos atravessando de incertezas de reorganização da esquerda.) Os modos de ser da universidade chegam até a política (os ensinamentos arcanos chegam aos cavalheiros).

Esse setor amplo – nosso sistema de pensamento público – pode bem ser lido, também e precipuamente, na chave do que Roberto Schwarz analisando o personagem Brás Cubas, de Machado, nomeou de “desfaçatez de classe”. O crítico diz: Brás possuía as “inquietações de um cavalheiro ilustrado”, quer dizer, se lançava no proscênio da existência nacional como homem de forte pendor reflexivo, moderno, “virtuoso” (esse era o indumento, o fardão…, que o personagem deseja ser visto). Mas o defunto de Machado e Roberto, justamente por ser defunto-ilustrado, é, no ambiente (nacional-escravocrata), insolente.

Mas “insolência” e meditação são constitutivas do funcionamento social por aqui. Na verdade, é nossa ideologia, Brás buscou sempre a “satisfação maligna da superioridade” – não importando a ele se quer, no mesmo movimento de oscilação, de ser esclarecido e fazer a defesa da escravidão. É memorável a citação de Roberto Schwarz de um político (e por que não acadêmico?) brascubaniano; “sim a civilização brasileira de lá veio”, era preciso (e hoje também) para se ser iluminado admitir e dizer que a “África civilizou o Brasil”.

Ora, é uma dimensão exibicionista e manipulativa: uma espécie de manha (que por vezes se torna violenta). Brás – e seus herdeiros e herdeiras de hoje, possuíam atrevimento de espírito, são inteligentes (no jargão intramuros do mundo campi: fulano ou fulana é bom ou boa…), com “abrangência de vistas, domínio da matéria, capacidade analítica, de ordenação [são scholars], de formulação precisa”; além disso, Brás e os seus e suas eram e são empáticos às questões do sofrimento do povo. Mas Schwarz afirma via Machado de Assis – tudo “em versão apalhaçada”.

Foi esse figurino que, de certo modo, jamais se reconheceu no seu representante verdadeiro; encontrar o real neste caso os chocou. Como Jair Messias Bolsonaro poderia ser a expressão da democracia dos defuntos? A “vontade de agradar” quando lhes conviesse (a demonstração do arbítrio) é desfeita – Machado percebeu esse exercício de abuso transfigurado em método. O rir em ver as brincadeiras de ser “rei, ministro ou general” encontrou um desmancha prazer. Ora, o “capricho despótico” [grifo meu] tinha de ser reposto; a malignidade da libração recuperada.

O ex-chefe (não-ilustrado) precisava ser vencido, para que a “superioridade que consiste em não se dar […] por achado, a olhos alheios ou aos próprios”, o processo de “desindentificação sistemática” – em uma sociedade de identidade escravocrata, nosso “sistema escravista e clientelista” –, pudesse voltar à normalização.

Neo-objetificação

Daí que setores das universidades de excelência, editoras, publishers e institutos de cultura, partidos políticos, judiciário passaram ao antirracismo como instrumento de “delírio de superioridade” – se apropriaram dele enquanto “interesse prático […] de uma classe social”. (Uma “acomodação […] vantajosa” de Brás – dos e das Brás’s –, diria Roberto Schwarz.) Assim, o debate racial adentrou aos espaços acima referidos. Debates sobre mulheres negras são promovidos; mesas organizadas para se discutir filosofia africana; obras do norte… são traduzidas a toda semana; seminários incontáveis são realizados para se debater desigualdade racial; documentários; exposições; reportagens etc, etc: tutti quanti.

De modo que, estamos presenciando a objetificação do negro, mas diferente da que criticou Guerreiro Ramos. Há, com efeito – um novo tipo de objetificação. Se antes éramos tema – ainda que um tema com certa carnadura, mas sem história, sem cultura e sem subjetividade – hoje somos os “temas” de segundo grau. Isso em três sentidos. Antes de enunciá-los um comentário se faz necessário.

Não se quer, de maneira nenhuma, enlaçar, a todos e todas não-negros, no argumento aqui sugerido. Há combatentes “verdadeiros” e “honestos” (sem conotação moral por óbvio) da causa em várias modalidades de ação e tomada de atitudes; pessoas brancas que se empenham em luta diária, heroica até, para extirpar o racismo do Brasil; que se dispõem, de fato, à reflexão prática (a “conviver”) dos dramas de negros e negras; que alçam a voz branca para travar luta contra o odioso preconceito de cor e suas implicações: esses e essas por vezes não latem alto…, a carapuça não serve a eles e elas. Voltando aos três sentidos da nova objetificação do negro.

O primeiro sentido é o que o teórico político negro norte-americano, Adolph Reed, diga-se de passagem um marxista, chama de a voz moral da consciência branca, hoje o debate racial no Brasil, sobretudo para os herdeiros de Brás…, se tornou muito mais a purificação cínica da alma daqueles setores acima descritos, do que um combate real, concreto mesmo, toma-se as questões do racismo de classe violento como se fosse o programa burocrático-institucional de alguma instituição pública ou o código de conduta de algum grande banco ou conglomerado empresarial sobre responsabilidade social.

Daí que o desdobramento disso seja o prazer em dizer que se está lendo este ou aquele autor negro (autora estadunidense é o padrão preferido), de criticar este ou aquele filósofo branco de algum dos séculos constitutivos da era moderna (o XVI, XVII, XVIII, XIX), da exibição de si bem pensada e calculada por vezes com pessoas pretas, a defesa irrisória de certas representatividades necessárias, de reservar aos de pele preta seu lugar de enunciação natural como se diversidade fosse.

O segundo sentido é o que podemos chamar de peças da engrenagem do processo de acumulação de capital econômico e cultural (a lá Bourdieu), não é preciso dizer quanto ao econômico, a torrente de títulos a adentrar no nosso mercado de livros estimulando uma demanda significativa (enquanto, por outro lado, o espaço “nobre” de publicação de autores e autoras nacionais não-brancos continua o mesmo dos dias em que Guerreiro Ramos fazia suas críticas à sociologia paulista), outrora erámos o tema-objeto, hoje somos o tema-objeto via o objeto-do-objeto-tema (ou se se preferir de segundo grau), é no capital cultural, contudo, o ponto a se destacar, pois, os debates bem-pensantes na universidade, em setores progressistas e grupos da esquerda liberal-social transfigurou-se em um sistema de distinção de “classe”.

O terceiro sentido é, de certa maneira, a síntese desses dois sentidos e se configurou no último período de disputa com as forças da direita intransigente com Jair Bolsonaro lhe dando o nome (na feliz formulação de Rodrigo Nunes no Do transe à vertigem), as lutas históricas e muito sérias de negros e negras foram instrumentalizadas, utilizadas, manietadas, administradas; foram mobilizadas de sorte a tornarem-se utensílio de disputa e distinção aos não-ilustrados (no sentido machadiano) do bolsonarismo (a face “real” deles) – a reversão sutil (o querer “não se dar por achado…”) disso, em alguns setores, já é “notada” pelas manifestações que alcunham certas resistências à ordem social racista, patriarcal, patrimonial, capitalista e hierárquica de identitarismo; e certas mentes férteis (que chegam ao nojo…) conseguem do alto de sua erudição enciclopédica comparar “identitarismo” com bolsonarismo. (A apalhaçada foi esfuziante: com a subida na rampa do Palácio do Planalto em 01 de janeiro de 2023.)

Poderia haver tal “apalhaçada”, também, no debate acerca da privatização dos presídios, do racista novo teto de gastos e da situação vexatória do corpo docente das universidades públicas[7] e outras coisas mais…[8]

*Ronaldo Tadeu de Souza é professor de ciência política no Departamento de Ciências Sociais da UFSCar.

Notas


[1] O “nada” machadiano no trecho é de autolouvação (do personagem), e não de pouco significado social.

[2] De passagem convém e é necessário mencionar os estudos em psicologia social de Virgínia Leone Bicudo (mulher negra) no âmbito da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. De fato, foi ela a publicar a primeira pesquisa científica e sistemática sobre a questão racial no Brasil. Seu legado necessita ser defendido.

[3] É ou seria importante nos perguntar se é factível da perspectiva epistemológica a não transformação do que estudamos em tema e/ou objeto.

[4] Esses estão empreendendo um trabalho histórico de reedição das obras de Clóvis Moura, destinando a ele, o lugar que sempre deveria ter tido no panteão dos (e das) principais intérpretes do Brasil e na área de pesquisa hoje conhecida como pensamento social e político brasileiro.

[5] O gigantismo do feito de Djamila Ribeiro já está na história das ideias brasileiras. Sua guinada nos últimos anos em direção a uma acomodação à ordem social vigente ainda passará pela apreciação da crítica, sobretudo daqueles que são de sua cor de pele; o respeito à sua obra grandiosa será o próprio exercício dessa crítica. Como dizia os ancestrais que ela tanto admira e cita: a César o que é de César – a Deus o que é de Deus.

[6] Esse trecho está estilizado; é óbvio que os/as que nos antecederam possuíam, ao seu modo, autoconfiança: é desnecessário, exibicionista e jactancioso (o que este texto pretende se opor) enunciar a mais uma repetição a ação gloriosa de Abdias, Lélia, Moura, Minervino, MNU, Beatriz, Frente Negra, Milton Barbosa, Sueli Carneiro etc., etc. Não fazemos história a partir de nossa livre vontade – herdamos situações passadas.

[7] A ordem de prioridades político-histórico é exatamente como está exposto. Não se deve eximir de responsabilidade um setor da elite negra brasileiro hoje. Há um intimismo à sombra do poder (Lukács) que precisa ser debatido, e com urgência.

[8] As passagens de Roberto Schwarz estão em “Uma Desfaçatez de Classe”. Novos Estudos Cebrap, nº. 11, 1985. Sobre a formulação de Adolph Reed, ver Benjamin Wallace-Wells – The Marxista who Antagonizes Liberals and Left, The New Yorker, 31/01/2022. Reed é professor de ciência política na Universidade da Pensilvânia.


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