Cérebros podres como Meta

Imagem: Muffin Land
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Por ARTHUR COELHO BEZERRA*

Para os bilhões de indivíduos que usam as redes sociais de Zuckerberg, a consequência esperada é o aumento da podridão cerebral

Brain rot foi a “palavra do ano” de 2024, segundo a tradicional eleição anual da Oxford University Press, a maior editora universitária do mundo. Podendo ser traduzido por “podridão cerebral”, brain rot nomeia a deterioração do estado mental ou intelectual de uma pessoa, especialmente vista como resultado do consumo excessivo de material considerado banal ou pouco desafiador. O aumento de 230% na frequência do uso do termo entre 2023 e 2024, segundo a Oxford,[i] reflete preocupações da sociedade a respeito dos possíveis impactos do uso prolongado de tecnologia digital para consumo de conteúdos irrelevantes, nada críticos e de baixa qualidade. Mais especificamente, essa inquietação aflige pais e responsáveis por crianças e adolescentes que acessam redes sociais digitais em idade cada vez mais precoce e de forma cada vez mais viciante.

Um sintoma dessa aflição parental está no fenômeno de vendas, no Brasil e no exterior, do livro A geração ansiosa: Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais, de Jonathan Haidt. O psicólogo social integra o grupo de pesquisadores que têm destacado a estreita relação entre a exploração comercial de plataformas de comunicação digital e o aumento de taxas de depressão, ansiedade e outros transtornos mentais nos últimos 15 anos – justamente o período em que se nota um acelerado desenvolvimento da inteligência artificial, das redes neurais e do aprendizado de máquina.

Essas avançadas técnicas que engendram a produção e circulação de informação em formato digital têm sido utilizadas pelos principais conglomerados de tecnologia para estimular a produção intermitente de dados pessoais por parte dos usuários de seus serviços.

Como já se sabe, em praticamente todos os modelos de negócios estruturados em torno de plataformas digitais, os dados produzidos pelos usuários da internet representam hoje um insumo indispensável, sejam esses dados de geolocalização (fundamentais para plataformas de transporte como Uber ou de entregas como iFood), de gostos e preferências (como os usados pela Amazon,  YouTube e Netflix para sugerir mercadorias e recomendar conteúdo audiovisual), ou tudo isso junto e misturado com dados sobre curtidas, comentários e compartilhamentos, como sói ocorrer em redes sociais como Facebook, X, Instagram e Tik Tok. Quanto mais tempo um usuário estiver interagindo em uma plataforma, mais dados pessoais irá produzir.

No afã de prender a atenção, o conteúdo apresentado em redes sociais e páginas de notícias muitas vezes apela para a reação emocional, não mediada pela racionalidade, que se comunica com o inconsciente e com o não domesticado, para capturar o olhar, dilatar pupilas e mobilizar polegares e indicadores, ainda que por um momento fugaz. A arquitetura das plataformas também é pensada com esse objetivo, como se vê no scrolling infinito das redes sociais, uma espécie de gamificação inspirada nos caça-níqueis dos cassinos e das biroscas, que estimula dedos nervosos à viciante caça por níqueis informacionais.[ii]

O revés da economia da atenção, como disse o economista Herbert Alexander Simon, é a riqueza de informação resultar na pobreza de atenção. Eis a atual condição de hiperinformação que causa nos indivíduos desatenção, incapacidade de concentração, compulsão e ansiedade. Uma vez que as pessoas são constantemente lembradas, notificadas e cutucadas por dispositivos eletrônicos que trazem informação a granel e muitas vezes fatiada em pequenos espasmos de texto, vídeo ou meme, se torna cada vez mais difícil manter o foco em atividades que requerem concentração, como ler um livro ou mesmo assistir a um filme ou espetáculo musical.

Sendo a cultura uma dimensão que pressupõe a possibilidade de uma atenção profunda e contemplativa do ser humano, o filósofo Byung-Chul Han argumenta que o excesso de estímulos, informações e impulsos das tecnologias de informação, aliado à cobrança por desempenho (tanto no trabalho quanto na vida pessoal que se compartilha nas redes sociais), tende a deslocar a atenção profunda para uma forma de “hiperatenção”, ou seja, uma atenção dispersa que muda rapidamente o foco entre diversas atividades e fontes de informação.[iii]

Além de afetar a saúde mental e a capacidade de concentração dos indivíduos, a livre e desregulada circulação de desinformação e negacionismo científico e ambiental nas redes digitais dá palco a extremismos de caráter fascista, insufla movimentos antivacina e cria um ambiente de poluição informacional que prejudica o combate ao aquecimento global, aos discursos de ódio contra grupos vulneráveis e até mesmo a doenças e pandemias.

O uso político do que Marco Schneider chama de desinformação digital em rede,[iv] com o direcionamento em escala macro de notícias falsas no intuito de manipular a opinião pública e interferir em pleitos eleitorais, pôde ser acompanhado na atuação da empresa Cambridge Analytica durante as campanhas de Donald Trump, nos Estados Unidos, e do Brexit, no Reino Unido, ambas em 2016.

Revelado em 2018 pelo ex-funcionário Christopher Wylie, o escândalo da Cambridge Analytica envolveu a extração de dados pessoais de mais de 80 milhões de usuários do Facebook, o que obrigou o dono da plataforma, Mark Zuckerberg, a comparecer a uma sabatina de cinco horas diante do Senado norte-americano. O caso foi tão grave que o interrogatório do bilionário foi transmitido ao vivo pela TV, e a Mark Zuckerberg foi cobrado um maior empenho e investimento no combate à desinformação na moderação do discurso de ódio no ecossistema digital – sua empresa, a Meta, hoje controla quatro grandes plataformas de comunicação (Facebook, Instagram, Whatsapp e Threads), e só o Facebook possui mais de 3 bilhões de acessos diários.

No interregno das administrações de Donald Trump, cuja conta do Facebook chegou a ser bloqueada por Mark Zuckerberg na ressaca da invasão do Capitólio, o magnata das redes se gabava de trabalhar com mais de 100 organizações em 60 idiomas para combater a desinformação em suas plataformas.

Agora, com Donald Trump de volta ao poder, o dono da Meta vem a público – exatamente quatro anos após ter banido o extremista republicano da rede azul – dizer que irá “trabalhar com o presidente Donald Trump para combater os governos ao redor do mundo que estão atacando empresas americanas e pressionando-as por mais censura”, e declara que irá se livrar dos fact checkers e abrandar os filtros que fazem a moderação de conteúdo no Facebook, Instagram e Threads, para “garantir que as pessoas possam manifestar suas crenças e experiências”.

Para Mark Zuckerberg e os acionistas da Meta, a medida significa não apenas uma economia imediata de bilhões de dólares que deixarão de ser gastos com moderação de conteúdo, mas também um potencial aumento dos lucros mediante o acirramento dos embates políticos que geram “engajamento” nas redes. O efeito previsível dessa medida é uma maior permeabilidade da rede para a circulação de desinformação e discursos de ódio, especialmente direcionados à comunidade LGBTQIAPN+, como fica evidente na permissão para que usuários, com base em suas convicções políticas ou religiosas, possam compartilhar alegações de doença mental ou anormalidade quando baseadas em gênero ou orientação sexual.[v]

E para os bilhões de indivíduos que usam as redes sociais de Zuckerberg, a consequência esperada é o aumento da podridão cerebral discutida neste texto, acompanhada de transtornos obsessivo-compulsivos, agitação, depressão, irritabilidade, insensibilidade empática e toda sorte de perturbações psicossomáticas. Resta saber se povos e governos ao redor do mundo estão de acordo com essa Meta.

*Arthur Coelho Bezerra é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do IBICT-UFRJ. Autor do livro Miséria da informação: dilemas éticos da era digital (Garamond).

Notas


[i] https://corp.oup.com/news/brain-rot-named-oxford-word-of-the-year-2024/

[ii] Bezerra, A. C. Miséria da informação: dilemas éticos da era digital. Rio de Janeiro: Garamond, 2024, p. 71.

[iii] Han, B. C. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 31.

[iv] Schneider, M. A era da desinformação. Rio de Janeiro: Garamond, 2022.

[v] https://www.nytimes.com/live/2025/01/07/business/meta-fact-checking


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