Por GILBERTO LOPES*
Comentários sobre acontecimentos recentes na política internacional
Já são 68 milhões de casos no mundo todo, quase 700.000 novos casos de coronavírus todos os dias; mais de 1,5 milhão de mortos e quase 13.000 num dia na semana passada. Embora a pandemia tenha recomeçado na Europa, com Itália e Alemanha com mais de 23.000 casos por dia, ou na Rússia, ou mesmo Turquia, é novamente nos Estados Unidos que ela atingiu os números mais altos, com mais de 235.000 casos e quase 3.000 mortes num dia. O avanço do coronavírus nos Estados Unidos continua sem controle e é difícil encontrar alguém que espere uma redução em seu ritmo nas semanas que antecedem o Natal, lia-se, na última quinta-feira, na BBC World.
Está claro, a esta altura, que o legado de Trump será bem mais do que os 300.000 mortos da pandemia quando ele deixar o poder no próximo dia 20 de janeiro. Há dez meses, em março passado, quando tudo estava começando, Trump falava em cem mil mortos como hipótese e exemplo de que as coisas iriam ser muito bem feitas. Mas o número de infecções continua crescendo à medida que as férias de Natal se aproximam. Os próximos três meses – dezembro, janeiro e fevereiro – “serão o período mais difícil da história da saúde pública neste país”, disse Robert Redfield, diretor dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos.
Na América Latina, o Brasil atingiu na semana passada 50 mil casos diários e mais de 650 mortes em um dia. Na Ásia, a Índia registrou quase 40 mil casos diários. Com os Estados Unidos, os três ultrapassam 31 milhões de casos e 600 mil mortes. A Rússia atingiu quase 29.000 casos no sábado passado, um novo recorde. A França, com quase 13.000, reverteu uma tendência de queda que vinha registrando desde o mês passado. Com variações, a pandemia persiste enquanto cresce a pressão para começar a testar novas vacinas. A Rússia estava entregando a Sputinik V a clínicas em Moscou. É a primeira tentativa de imunização em larga escala contra o vírus numa cidade.
A primeira ministra da Escócia, Nicola Sturgeon, anunciou o início de uma vacinação em massa a partir de terça-feira dia 8 de dezembro. A rápida aprovação da vacina Pfizer/BioNTech na Grã-Bretanha, no entanto, tem atraído críticas de especialistas. A Agência Europeia de Medicamentos advertiu que eram necessários mais estudos sobre sua eficácia do que os realizados até agora. Nos Estados Unidos, as expectativas são altas para a Moderna Inc., que tem mostrado resultados perecidos com os da Pfizer, de acordo com as autoridades americanas. Cuba também está acelerando as pesquisas sobre suas vacinas, Soberana I e Soberana II. “Estamos mais próximos da desejada vacina”, disse Vicente Vérez, diretor do Instituto de Vacinas Finlay em Havana, no último fim de semana. Com cinco fórmulas da Soberana I aplicadas a mais de 100 pessoas, Vérez espera que antes do final do ano seja possível definir qual das cinco oferece uma resposta imune mais eficaz.
Um mundo diferente
Mas a pressão está aumentando e os governos procuram uma resposta, cada vez mais urgente à medida que as férias de Natal e Ano Novo se aproximam. Na Espanha, o toque de recolher na véspera de Natal e no dia de Ano Novo será cancelado até 1h30 da manhã. Algum alívio para uma sociedade cansada e um comércio em dificuldades. As imagens desses dias são impressionantes. Milhares de carros fazendo fila para deixar Madri ou Barcelona na véspera do “Puente de la Puríssima”.
A pandemia deixará para trás um mundo muito diferente daquele que tivemos há um ano, escreveu o prefeito de Barcelona, Ada Colau, na semana passada. Milhares de pessoas morreram, indústrias inteiras foram levadas à beira do abismo, o estado social está ameaçado. O cenário é conhecido. Mas menos se sabe sobre as saídas. Nos próximos anos, diz Colau, “o maior desafio para os líderes públicos será traçar um caminho para a recuperação, em meio à devastação humana, social e econômica que a Covid 19 deixou em nossas sociedades”.
Mas – adverte – em vez de insistir no “mundo frágil da era pré-pandêmica, devemos aproveitar a oportunidade para construir um mundo mais justo, equilibrado e sustentável”. Para Colau, as cidades poderiam ser um cenário privilegiado para a era da reconstrução. Ele dá o exemplo de sua Barcelona: mudar a matriz energética, ampliar os parques públicos e as áreas livres de automóveis. Nada similar havia sido tentado desde que a Revolução Industrial encheu a atmosfera com carbono e os mares com plásticos, um “Acordo Verde” europeu, como propôs a presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen. O “Green Deal” com o qual alguns na Europa sonham. Países com pegadas de carbono reduzidas, ar mais limpo e água de melhor qualidade, mais saúde e melhores condições de vida.
Caem todas as apostas
Para dezenas de milhões de europeus, o sofrimento econômico continua, diz Adam Tooze, professor de história na Universidade de Columbia. Parece, em todo caso, que as bases para a recuperação estão sendo lançadas. A Europa aprovou um enorme pacote de 8,5 bilhões de euros para combater o desemprego, que foi recebido com entusiasmo pelo mercado europeu, o que resultou em juros negativos: para cada 102 euros de empréstimo, haveria, no final, apenas 100 euros para pagar. Poderíamos estar chegando a um ponto de inflexão. Mas… e se não acontecer?, pergunta Tooze; e se isto for apenas um interregno entre uma crise e outra? Em 2020, a economia europeia tem necessitado de suportes vitais. Milhares de empregos têm sido mantidos por um esquema de trabalhos de curta duração financiados pelo Estado; garantias de crédito têm sido fornecidas para montantes impressionantes, disse Tooze.
Em 2020, os empréstimos às pequenas e médias empresas foram sustentados por garantias públicas e moratórias sobre seu vencimento. A economia doméstica tem sido mantida por estes empregos de curta duração, “a grande novidade do estado de bem-estar nesta crise”, afirma ele. Isto naturalmente tem um impacto sobre o déficit e a dívida, que aumentaria em cerca de 15% do PIB na zona do euro. O que aconteceria se o apoio a tais medidas terminasse mais cedo do que o necessário? Sem crédito, disse Tooze, a zona do euro pararia de funcionar. O desemprego aumentaria, a economia continuaria a se contrair, os créditos se tornariam impagáveis e o sistema financeiro entraria em colapso. Este ano, o Banco Central Europeu (BCE) tem mantido esse apoio. Um pacote para a recuperação econômica forneceria 150 bilhões de euros por ano entre 2021 e 2026. Em todo caso, o que mantém o interesse dos investidores é a promessa de apoio do BCE. Todo o edifício depende da decisão do banco de apoiar o mercado de dívida soberana de cada país. Porque, como sabemos, embora o euro seja a moeda de todos, um título do governo alemão não tem as mesmas garantias que um da Grécia, Itália ou Portugal. Se a promessa for colocada em dúvida, apesar da prudência e sofisticação desta política, diz Tooze, “caem todas as apostas”.
Ajustes imensos
A revista conservadora The Economist tem outros receios: que a resposta da Europa à pandemia acabe ossificando sua economia em vez de ajustá-la. Em cinco de seus principais países, 5% da força de trabalho (na Inglaterra o número é o dobro) permanece no trabalho graças a empregos de curta duração, subsidiados pelo governo, enquanto esperam pelo retorno dos empregos como anteriormente, ou por mais horas de trabalho que, no entanto, podem nunca mais voltar. Num artigo publicado em 8 de outubro, The Economist argumentava sobre a razão. Ela comparou a política europeia de combate ao desemprego com a dos Estados Unidos.
Em abril, dizia, “mais de 26 milhões de pessoas na Inglaterra, França, Alemanha e Espanha estavam trabalhando sob o regime de subsídios públicos, o equivalente a um quinto da força de trabalho. Nessas condições, o desemprego permaneceu relativamente estável, especialmente na Inglaterra e na Alemanha. Mas cinco meses depois, onze milhões de pessoas ainda trabalhavam sob o esquema de subsídios para empregos de curta duração, enquanto nos Estados Unidos, onde a política é fornecer subsídios para impedir o desemprego, este tipo subiu de 3% em fevereiro, antes do início da pandemia, para 14,7% em abril passado. Para The Economist, o esquema europeu tem consequências negativas: quanto mais tempo durar, menos incentivos os trabalhadores terão para procurar trabalho e menos probabilidade de voltar ao normal.
Os Estados Unidos tomaram o caminho certo, diz a revista. Criou-se uma generosa rede de segurança para os desempregados, e permitiu-se – sabiamente, dizem – que o mercado de trabalho se ajustasse, mostrando menos inclinação do que a Europa para salvar empresas em risco de desaparecer à medida que a economia se reajustava. Em parte graças a isso, segundo a revista, muitos novos empregos estão sendo criados nos Estados Unidos. Mas também quanto a isso, as perspectivas não são totalmente otimistas. A pandemia, diz The Economist, “acentuou as disparidades econômicas”. Isso fez com que os gastos dos consumidores despencassem e as empresas fechassem, enquanto 500.000 empregos em tempo integral desapareciam da noite para o dia. A reorientação da economia exigirá, nos Estados Unidos, um acordo político para redesenhar uma rede de segurança social e controlar o déficit. Mas não há acordo.
Na quarta-feira passada, dia 2, foi anunciada a proposta de um grupo bipartidário, no qual republicanos e democratas acordaram um plano de estímulo econômico de 908 bilhões de dólares, distribuídos principalmente em ajuda ao desemprego (300 dólares semanais) e 288 bilhões de dólares em apoio às pequenas empresas. O acordo deverá ser aprovado pelo congresso, o que nem o líder da maioria no senado, o republicano Mitch McConnell, vê com simpatia; nem os líderes democratas no congresso, que esperavam um programa muito mais generoso de 2,4 trilhões de dólares. Os programas de estímulo de 2,2 trilhões de dólares, aprovados em março passado, estão prestes a expirar. Mas a crise continua. A Reserva Federal prevê uma contração econômica de 3,7% este ano, com uma taxa de desemprego de 7,6%. O presidente eleito Joe Biden defendeu um pacote “robusto” de apoio fiscal às empresas e aos desempregados, enquanto o presidente da Reserva Federal da Filadélfia, Patrick Harker, advertiu que a economia já está dando sinais de estagnação. Para a candidata à chefia do Tesouro, Janet Yellen, “a inação poderia causar ainda mais devastação”.
O mundo segue adiante
The Economist vê um mundo mais desigual como resultado da pandemia, com economias menos globalizadas, mais digitalizadas e mais desiguais. Os desequilíbrios “serão imensos”. De acordo com o quadro que se esboça, os trabalhadores de baixa renda terão que procurar trabalho nos subúrbios. Com taxas de juros baixas, os preços das ações permanecerão altos. A conclusão é que Wall Street se afastará ainda mais da Main Street, ou, em outras palavras, as pessoas dos negócios das pessoas na rua. A economia norte-americana, de acordo com a OCDE, terminará este ano com o mesmo tamanho do ano passado. Mas a chinesa será 10% maior. A Europa ficará para trás. América Latina também.
Falta pouco mais de um mês para a mudança de governo em Washington. Antes disso, em 5 de janeiro, a eleição de dois senadores no estado da Geórgia determinará quem fica com o senado, que, nas eleições de novembro, ficou conformado por 50 republicanos e 48 democratas. Mas faltam dois, ambos da Geórgia. As pesquisas dão uma pequena vantagem aos candidatos democratas. Mas tudo dentro da margem de erro. Os democratas teriam que ganhar os dois assentos para empatar. Eles teriam então a vantagem, já que quem define e desempata uma votação no senado é o vice-presidente da República. Neste caso, a vice-presidente Kamala Harris. Algo que tornaria a administração Biden muito mais fluida.
Trump também sabe o que está em jogo, e ele fez campanha na Geórgia na semana passada. Mas sua campanha ainda é sobre denúncias de fraude. Fraude que todos sabem que não existiu. Ele também. Mas ele insiste nisso porque é assim que ele pode manter suas fileiras mobilizadas, olhando para 2024. Mas essa campanha tem riscos. Gabriel Sterling, um alto funcionário do escritório do secretário de estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, pronunciou duras palavras contra Trump e os senadores conservadores David Perdue e Kelly Loeffler numa coletiva de imprensa. Alguém vai se machucar se essa campanha continuar, advertiu ele. “Alguém vai ser baleado, alguém vai ser assassinado”. Michael Flynn, ex-assessor de segurança nacional recentemente indultado por Trump diante da ameaça de sanções legais por mentir ao FBI sobre seus contatos com as autoridades russas, retuitou um anúncio de página inteira publicado no conservador The Washington Times por um grupo conservador em Ohio, We the People Convention. Eles pediram ações executivas imediatas para evitar uma guerra civil iminente: lei marcial, suspensão da constituição e repetição de eleições sob supervisão militar.
Flynn sonha com um golpe nos Estados Unidos. Na Espanha, um general de reserva, Francisco Beca, envia uma mensagem de seu telefone celular. Ele anuncia que leu um livro, “Mitos da Guerra Civil”, do ex-comunista Pío Moa, que escreveu extensivamente sobre o assunto. Se o que ele diz é verdade, diz Beca, “não há outra escolha senão começar a fuzilar 26 milhões de filhos da puta”. Seu colega, o capitão aposentado José Molina, envia outra mensagem: “Acordei esta manhã totalmente convencido. Não quero que estes malandros percam a eleição. Não. Quero que todos eles morram e toda a sua linhagem. Isso é o que eu quero. É pedir muito?” Beca responde: “Mas, meu caro, para isso são necessárias 26 milhões de balas!
A França está enfrentando novos grandes protestos. Seu muito conservador ministro do interior, Gérard Darmanin, acredita que o câncer da sociedade é a falta de respeito pela autoridade. E o congresso está tentando impor uma lei que pune a imprensa se ela publicar fotos de policiais em atos de repressão. Milhares vão para as ruas. A França está sitiada e golpeada, escreve, no The Atlantic, Mira Kamdar, uma moradora dos subúrbios parisienses. O desemprego em massa, a frustração com o fechamento devido à Covid-19 e o medo de novos ataques terroristas exacerbaram a agitação e a divisão. Mas o professor EJ Dionne Jr. da Escola de Políticas Públicas McCourt da Universidade de Georgetown está otimista. A derrota de Trump nas últimas eleições “trouxe alívio e uma sensação de esperança ao mundo inteiro”. Particularmente na Europa, afirma. Ele sonha em reconstruir o que chama de centro-esquerda, o que não seria nem o retorno à “terceira via” de Blair, Schröder ou Clinton, nem a política de “meio caminho” de Obama, mas um aumento do poder de negociação dos trabalhadores.
Assange
Assim que se inicie o próximo ano, em 4 de janeiro de 2021, teremos a notícia sobre a extradição de Julian Assange, o jornalista encarregado das denúncias explosivas sobre as atrocidades militares norte-americanas no Iraque e no Afeganistão. “Os tribunais britânicos decidirão em breve o destino do jornalista Julian Assange, um homem que foi injustamente acusado como um criminoso. Assange não cometeu nenhum crime. Ele é um campeão da causa da liberdade”, publicou o ex-presidente brasileiro Luis Inácio Lula da Silva, em setembro passado, no jornal britânico The Guardian. “Todos sabemos que o governo americano quer vingança contra Assange”, disse ele. Com seu destino nas mãos dos tribunais britânicos, seria uma surpresa se esse governo não obtivesse sucesso. Uma surpresa trágica. Numa Inglaterra que amanhecerá em 1º de janeiro fora da União Europeia, enquanto negociações de última hora para evitar um Brexit sem acordo continuam numa atmosfera de pouco otimismo.
*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR).
Tradução: Fernando Lima das Neves.