O autor no cinema

Imagem: Marco Buti
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ RENATO MARTINS*

Comentário sobre o livro de Jean-Claude Bernardet

Atualmente, falar de cinema implica referir-se, de um modo ou de outro, à ideia de autor. Ela é moeda corrente na mídia, na locução das TVs, nas salas especiais, etc. Assim, a importância do cinema de autor e a atribuição do poder de autoria ao diretor comporta um valor imediato que dispensa apresentação. O livro parte, pois, de uma evidência, porém, para roubar-lhe a naturalidade, expondo-a a um processo investigativo.

Jean-Claude Bernardet estuda a difusão da ideia de autor desde os anos 1950, a partir do grupo de jovens críticos reunidos nos Cahiers du Cinéma, e, que, depois originaria no início dos 1960 a Nouvelle Vague. A “política dos autores” – a doutrina deste grupo – tem como marco inicial a noção de caméra-stylo (literalmente câmera-caneta), concebida por Alexandre Astruc, em artigo para “L’Écran Français”, de 30 de março de 1948  (O primeiro número dos Cahiers é de 01 de abril de 1951).

A intenção de Astruc era dotar o cinema de um estatuto abstrato e intelectual símile ao da escrita. A meta era superar a marca de espetáculo de feira, a origem semicircense do cinema, a fim de torná-lo obra de pensamento e enobrecê-lo como arte; ou, segundo Bernardet, em termos da época, prepará-lo para obras semelhantes “pela complexidade e significação aos romances de um Faulkner ou de um Malraux, aos ensaios de um Sartre ou de um Camus”.

Mais dois elementos de doutrina são difundidos pelo grupo: a apologia da expressão pessoal do diretor e a referência ao cinema norte-americano. O cinema francês da época era combatido pelos Cahiers enquanto impregnado por padrões literários, teatrais etc.

Em suma, estetização e cinefilia, coloquialidade e personalismo objetivando formar o público e forjar novos padrões de consumo, deram os vetores desse projeto de modernização setorial – cujos laços com o pop, evidentes na adesão a padrões narrativos da cultura de massa, como o filme B e os quadrinhos, decorriam, penso, da referência à ideia de consumo, chave para ambos.

No método crítico dos Cahiers, próximo ao da “psicocrítica” de Mauron, e haurido, mediante Bazin, do personalismo ontológico cristão de Mounier, “moral” será um termo-chave. Para além da matriz coletiva e industrial do filme, e da diversidade dos trabalhos de um mesmo diretor, importa decantar as redundâncias e “fazer emergir uma metafísica latente (…) considerando a obra do autor cinematográfico da mesma maneira que a de tal pintor ou poeta esotérico”. Todo autor traz, pois, uma “matriz”, a ser buscada pelo cineasta e pelo crítico, e que condiciona o curso dramático dos filmes, unificando-os numa obra.

Bernardet, em algumas das páginas mais vigorosas do livro, expõe o misticismo desta visão. E registra oposições como a de Sadoul: “O Culto da Personalidade – Autores de Filmes e Filmes de Autores” (“Les Lettres Françaises”, 17.07.58). Drouzy, que concebe o filme como “fruto de um quadro de produção que envolve tanto o diretor quanto o produtor”, conservando “as marcas dessa relação de produção”, também é destacado por Bernardet.

O crítico norte-americano John Hess julgou a Nouvelle Vague “um movimento conservador que tinha como função afastar a realidade social do cinema”. Nessa linha de raciocínio (depois de salientar: “o método que venceu – na época e com profundas repercussões até hoje – é a política dos autores”), Bernardet afirma que a marca “romântica” fica patente na ideia de uma essência do cinema, manifesta nas obras dos grandes autores.

Além do primeiro capítulo, “Domínio Francês – Anos 50”, em que detalha e discute tal ordem de ideias, o livro traz mais dois capítulos, cuja construção – a do segundo mais documental, a do terceiro mais concisa, sem ser vaga – subsidia e desdobra a veia crítica exposta pelo primeiro. Assim, o capítulo 2 compila os efeitos das ideias dos Cahiers na crítica cinematográfica do Brasil, nos anos 1950 e 60. Destacam-se nesse elenco Paulo Emílio e Glauber, pelo poder reflexivo; o primeiro, pela crítica aos “jovens pedantes e direitizantes dos Cahiers; e o segundo, pela reelaboração da ideia de autor, fundido com a história coletiva, como fator político de libertação nacional.

Nos anos 1970, como mostra o capítulo 3, “O declínio do autor”, através de um sumário do debate francês gerado pelas teorias críticas do sujeito, a ideia de autor saiu de cena, alvejada pelos movimentos pós-68 e pelas críticas estruturalistas que vinham, no caso, da revista marxista Cinéthique e também do novo grupo dos Cahiers. Com efeito, quem consulta um bom e abrangente compêndio de teorias do cinema, como O Discurso Cinematográfico – A Opacidade e a Transparência, de Ismail Xavier (Paz e Terra, 1977), nota que passa ao largo da ideia de autor – àquela altura em franco descrédito. E não o faz sem razão, dada a precariedade conceitual da causa autoral, apontada por Bernardet. Como explicar agora sua restauração simbólica no imaginário geral?

O fecho sutil do livro, após afirmar que “uma nova subjetividade surge (que não é aqui o nosso assunto) (…) e parece ceder o passo a uma recuperação de ideias da época gloriosa da política (dos autores)”, aponta, a partir de Barthes, para o autor como “fantasia do espectador”. Considerando-se que o livro inicia com a definição paradigmática de autor do Nouveau Larousse Illustré (“DEUS, aquele que é a causa primeira”), a conclusão de Bernardet situa o autor como construção imaginária, como inversão simétrica abstrata do espectador abstrato.

*Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP). Autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Chicago, Haymarket/ HMBS, 2019).

* Publicado originalmente, sob o título “Quem precisa de autor?”, no Jornal de Resenhas, n. 03, em 05.06.1995.

 

Referência


Jean-Claude Bernardet, O Autor no Cinema – A Política dos Autores: França, Brasil anos 50 e 60. 2ª. Edição. São Paulo, Sesc, 2018.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • O veto à Venezuela nos BRICSMÁQUINAS FOTOGRÁFICAS 19/11/2024 Por GIOVANNI MESQUITA: Qual seria o maior desaforo ao imperialismo, colocar a Venezuela nos BRICS ou criar os BRICS?
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026
  • Donald Trump e o sistema mundialJosé Luís Fiori 21/11/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Se houver um acordo de paz na Ucrânia, o mais provável é que ele seja ponto de partida de uma nova corrida armamentista dentro da própria Europa e entre os EUA e a Rússia
  • Mudanças no modelo de pós-graduaçãobiblioteca universidade 21/11/2024 Por ANTÔNIO DAVID: O doutorado direto não é um demérito, e doutores que realizaram o doutorado direto não são doutores pela metade
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Notas sobre a disputa em São Paulogilberto maringoni 18/11/2024 Por GILBERTO MARINGONI: É preciso recuperar a rebeldia da esquerda. Se alguém chegasse de Marte e fosse acompanhar um debate de TV, seria difícil dizer quem seria o candidato de esquerda, ou de oposição
  • Freud no século XXIcultura peça transversal 24/07/2024 Por GILSON IANNINI: Trecho do livro recém-lançado

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES