Um colchão por domicílio

Imagem: Lisa
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Por EUGÊNIO BUCCI*

66 mil paulistanos não têm casa para morar e 19 milhões de cidadãos passam fome no Brasil. Como explicar nosso desprezo cruel pelo sofrimento alheio?

O casal mora lá, embaixo de uma longa marquise pintada de verde, a poucos minutos do cruzamento entre a Rebouças e a Faria Lima. Naquele mesmo endereço já funcionou um supermercado de luzes escassas, com ares mofados de entreposto comercial. Hoje, com suas portas de metal bem trancadas, o imóvel não tem mais nenhuma função social ou mercantil. Só a calçada, apenas ela, encontrou uma utilidade: virou dormitório popular. Foi lá que o jovem casal fixou residência, em pacífica vizinhança com outros moradores. Os colchões perfilados, mudos e discretos se organizaram para não incomodar ninguém: tiveram o cuidado de deixar livre uma boa faixa do calçamento para que os pedestres trafeguem, sem virar a cabeça.

A moça é alta, bonita. Dos seus olhos grandes e claros, realçados pelo tom bronzeado do rosto, escorre uma sensação de paz que às vezes alcança quem passa por ali. O nariz descreve um arco pronunciado, numa ponte fina entre a testa e os lábios. Elegante e delgado, o nariz denota personalidade, mas não arrivismo. Quando ela se espreguiça sobre o cobertor bem esticado, no meio da tarde, deixa ver que está feliz. Temos algo a aprender com ela.

A moça, o marido e os vizinhos às vezes almoçam no mesmo lugar em que dormem. Conversam sobre isso e aquilo. Malas puídas fazem as vezes de mesinhas de cabeceira. Caixas de papelão desmontadas e dispostas ao lado, como divisórias, ajudam a cortar o vento e a demarcar os domínios da privacidade de cada um dos lares enfileirados.

Um dia desses estava lá, estacionada ao lado, uma viatura do Samu. Um profissional de saúde examinava a cidadã dos olhos calmos, que, naquela hora, se apertavam numa expressão de dor. Ela estava sentada na beirada de seu endereço, com os pés descalços sobre o piso público. Com as duas mãos, apertava o lado esquerdo do ventre. Duas tardes depois estava lá outra vez, com aquele ar de plenitude que só os seres humanos a quem não falta nada conseguem experimentar. Sim, temos algo a aprender com ela.

E com tantos mais. Os moradores de rua se multiplicaram por São Paulo. Na Amaral Gurgel, sob o Minhocão, há barracas reforçadas com camadas adicionais de lona plástica, ao lado de leitos ao relento. Na ligação entre a Avenida Paulista e a Doutor Arnaldo, naquele túnel avarandado que cruza por baixo a cabeceira da Consolação, as barraquinhas-dormitórios se proliferaram como numa florada. Quem passa por ali vê as rodas de conversa, que lembram as cadeiras na calçada das pequenas cidades do interior. Emoldurada pelas luzinhas de Natal que eclodem nas fachadas das instituições financeiras, a nova ocupação urbana faz a gente pensar em presépios vivos. A metáfora é piegas, bem se sabe, mas é impositiva.

Nós somos uma cidade que gera desabrigados em escala superindustrial. Nós somos uma cidade que produz pobreza, fome e desamparo, mas não sabemos o que somos e o que fazemos. Não vemos a segregação que fabricamos. Somos uma cidade que fecha os olhos para os presépios de carne e osso e faz orações pungentes diante dos presépios de mentirinha – alguns deles caríssimos, financiados pelos bancos sobre o pavimento da Paulista.

Os moradores de rua se multiplicam na mesma proporção que os lucros dos financistas. Em 2019, o Censo da População em Situação de Rua contabilizou 24,3 mil sem-teto em São Paulo. Agora, as estimativas dão conta de 66 mil paulistanos sem casa para morar. A pandemia piorou o quadro. Dizem as estatísticas que 19 milhões de cidadãos passam fome no Brasil. As estatísticas não têm nem rosto nem coração, mas o mais perturbador é que nós, nós mesmos, os presunçosos aqui que nos gabamos de saber ler as estatísticas, parecemos não ter nem rosto, nem coração, nem responsabilidade. É como se não fosse com a gente.

Nós somos a metrópole que morrerá de insensibilidade. Nós somos a nação que morrerá de meritocracia, sem saber que os famintos e os degredados formam conosco um só corpo. Nós nunca entendemos o que isso significa, encastelados no alto de nossas petulâncias patéticas. Nós ainda estamos longe de saber que pior do que ter um colchão por domicílio é ter a ostentação como ideal de gozo.

Mas não há de ser nada, sejamos otimistas. É Natal, você sabe, então sejamos confiantes no tal do futuro melhor. Imaginemos que a cidade de São Paulo e o Brasil conseguirão atravessar este desfiladeiro de vergonha e horror e que, lá adiante, a gente possa ver o tempo que terá passado em fotografias nos livros de História. Isso na perspectiva otimista, é claro. Imaginemos a retórica que teremos de inventar para explicar o nosso desprezo cruel pelo sofrimento dos nossos iguais. Por que não fizemos nada quando podíamos ter feito tudo?

No futuro, se houver futuro, os retratos dos padecimentos que fabricamos nas ruas e nas periferias do Brasil serão tão chocantes quanto as cenas que hoje guardamos do gueto de Varsóvia. Diremos o quê? Que a culpa não era nossa? Enquanto isso, a moça bonita e seu marido talvez passem o Natal sob a marquise. Contentes, a seu modo. Sem máscara.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.

 

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