Bento Gonçalves – polo bolsonarista

Imagem: Joey Kyber
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Por LUIZ MARQUES*

Seria um erro crasso responsabilizar pela ignomínia a base da pirâmide social. Em uma sociedade hierárquica os responsáveis acham-se sempre no topo

A existência de trabalho análogo a escravo, na cidade serrana que leva o nome do patriarca da Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul, Bento Gonçalves, envolveu uma empresa terceirizada (Fênix Serviços e Oliveira & Santana) e três importantes e renomadas vinícolas (Salton, Aurora e Cooperativa Garibaldi). Depois que alguns neoescravizados conseguiram fugir em busca de auxílio das autoridades, mais de duzentos trabalhadores foram libertados de ambientes degradantes em que eram monitorados por câmeras nos cubículos de uma pousada, alimentados com comida estragada, submetidos a choques elétricos, sprays de pimenta e espancamentos para cumprir uma jornada de labuta exaustiva, com até 16 horas, sem receber salários.

A empresa contratada recusou um acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT) para pagar R$ 600 mil de indenização pelo moderno escravismo, e vai recorrer à Justiça. Rejeita a acusação de trabalho forçado, apesar das evidências e dos testemunhos. Sob a ótica patronal, parece que tudo se afigurava “normal”, mesmo em desacordo com a legislação trabalhista. O MPT, ao que se sabe, ainda não arrolou as incumbências das vinícolas sobre as sevícias que afetaram os empregados para a colheita da uva, nos parreirais.

Os vinicultores imaginam talvez se safar com notas de indignação tardias, como se nada tivessem a ver com as fartas violações à Declaração Universal dos Direitos Humanos, das Nações Unidas. Melhor cair na real, e co-indenizar o sofrimento das mulheres e dos homens arregimentados a dois mil quilômetros, na Bahia. É o que fizeram as vinícolas, ao subscrever um Termo de Ajuste de Conduta (TCA), comprometendo-se a pagar uma indenização de R$ 7 milhões para um fundo de combate ao trabalho neoescravo.

O Centro de Indústria, Comércio e Serviços bento-gonçalvense tentou justificar a situação com um sofisma rasteiro. Acusou as políticas sociais, a exemplo do Bolsa Família, de retirar do mercado a população ativa que teria passado a sobreviver à sombra dos programas governamentais. A ginástica mental dos representantes do Produto Interno Bruto (PIB) local, se insulta o senso comum, ilustra o contexto político social e cultural em que sucederam os tristes acontecimentos de barbárie. A Serra tornou-se um polo bolsonarista. Nas últimas eleições presidenciais, o falso messias venceu em 47 das 49 municipalidades. Como em São Paulo, os percentuais de votação no interior da província não espelharam o resultado obtido na capital gaúcha e arredores.

O segundo turno das mais populosas cidades da região foi emblemático. Em Caxias do Sul, Jair Bolsonaro fez 66,43% dos votos contra 33, 57% de Lula da Silva. Em Bento Gonçalves, fez 75,89% contra 24,20% respectivamente. Em Nova Pádua, o recorde: 92,96% chancelaram o genocida. As urnas captaram o preconceito antipolítica de tendências neofascistas (xenófobas), neoconservadoras (discriminatórias) e neoliberais (aporofóbicas). As intimidações e as agressões a cidadãos baianos, com a vexatória participação de policiais militares, assim como o discurso infame de capitão-do-mato do vereador que condenou os oprimidos, em episódios outrora experimentados por pobres de etnias europeias e asiáticas (portugueses, italianos, alemães, chineses, japoneses), seguiram normas não escritas de naturalização de um sentimento de superioridade.

É reconfortante crer que os rumos da coletividade são traçados “de baixo para cima”. Mas seria um erro crasso responsabilizar pela ignomínia a base da pirâmide social. Em uma sociedade hierárquica os responsáveis acham-se sempre no topo. A extinção, pelo desgoverno nacional, do Ministério do Trabalho após 88 anos de atividades e o desmonte das equipes de fiscalização sobre as condições de empregabilidade, está na origem da escalada para o terror. Voltaremos ao tema. O bolsonarismo celebrou o “Brasil profundo”, ao enaltecer os sujeitos da dominação remanescentes da acumulação primitiva do capital (torturadores, milicianos, supremacistas). Porém, o espírito de emancipação do colono-imigrante de priscas eras revive na juventude, confrontando o totalitarismo da mercadoria. A prova é a unção de três guerreiros pretos (um rapaz, duas moças), de esquerda, para a Câmara de Vereadores caxiense. Uma elegeu-se deputada federal, em outubro.

Dois princípios básicos

O principal insight dos professores de ciência política da Universidade de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em Como as democracias morrem, remete ao fato de instituições isoladas não bastarem para inibir ataques dos autocratas eleitos para implodir os alicerces do regime democrático. “Constituições têm que ser defendidas por partidos políticos e cidadãos organizados, também por normas democráticas. Sem normas robustas, os freios e contrafreios constitucionais não servem como os bastiões da democracia… As democracias funcionam melhor e sobrevivem por mais tempo onde as constituições são reforçadas por normas democráticas não escritas”. Debruçam-se sobre o caso dos Estados Unidos, e as lições de alhures.

A potência imperialista logrou introjetar no corpo social dois princípios básicos: (a) a “tolerância mútua”, a compreensão de que os concorrentes perfazem rivais legítimos e; (b) o “comedimento”, para que os políticos se contenham ao fazer uso de prerrogativas institucionais. Para Levitsky e Ziblatt, essas normativas estabilizaram a democracia dos EUA ao longo no século XX. Os líderes dos Republicanos e dos Democratas se reconheceram com legitimidade recíproca, e controlaram a tentação do poder temporário para extrair o máximo de vantagens para os correligionários. As guias de tolerância e comedimento ajudaram a evitar as lutas sectárias que destruíram a democracia na Europa na década de 1930 e na América Latina nos anos 1960-70. Mas o conselho pertence à ordem moral, mais do que à ordem política. Não implica a domesticação das propostas de mudanças, de interesse dos países dependentes na semiperiferia do capitalismo.

As instituições são mais que uma coleção de regras abstratas. São uma construção dialógica, não de engenharia. Seu aço é temperado pelo consenso. A restrição aos poderes tóxicos depende dos sutis arranjos entre as lideranças (por imperfeitas que sejam) e da capacidade para contrabalançarem ou neutralizarem as ambições. Os partidos e as normas não escritas a eles associadas são a chave para o equilíbrio da institucionalidade. Ranços tecnocráticos às indicações partidárias no aparelho estatal exalam o apoliticismo ingênuo. Políticos humanizam os técnicos.

Os autores do best-seller admitem que as grades de proteção estão enfraquecidas. O demagogo Donald Trump estampou o retrocesso em um mandato pautado pela pós-verdade, ao repudiar os veículos tradicionais de informação em prol do Twitter e do Instagram – e recusar a derrota eleitoral na saída da Casa Branca. Qualquer semelhança com o tiranete corrupto das propinas em joias, num país tropical, não é coincidência. Contudo, a erosão da democracia remonta aos anos 1980-90, com a ascensão do ideário neoliberal. O sectarismo desde então invadiu não apenas as esferas social e política, senão que se estendeu para os conflitos de raça e cultura. O esforço pela igualdade racial correu paralelo com a diversificação da sociedade. Nesta acepção, o aguçamento das polarizações foi uma resposta (com o fígado) à complexidade dos processos em trânsito. Se há uma coisa que a história das nações ensina é que polarizações extremadas podem matar as democracias, e o colapso não é um destino irreversível. O desejo de suplantar o caos, conta.

No Brasil, a chapa da Frente da Esperança (Lula-Alckmin) sinalizou a superação de diferenças secundárias, comparadas aos riscos embutidos na reeleição de um projeto iliberal, alinhado com a extrema-direita internacional. Impôs-se lamber as feridas provocadas entre si para evitar o colapso. Diante do mal absoluto, a conjuntura forçou as decisões dos antigos adversários a um pragmatismo, em um momento em que a democracia recua no planeta inteiro. A “recessão democrática” se nota na Nicarágua, Tailândia, Turquia, Hungria, Polônia, Ucrânia, Rússia. Felizmente, uma Colômbia, uma Sri Lanka, uma Tunísia fazem-lhes o contraponto. Para acalmar os nervos, as democracias em outras geografias prosseguem intactas e seguras, sem o rumor de tanques nas ruas. Muito embora as pressões autoritárias e os golpes reciclados com a estética das pantomimas jurídicas, lawfare, fake news, imprensa dominada pelas finanças e entreguismo patrimonial.

Lei das terceirizações

O golpismo sintetizado na posse de Michel Temer (2016) e condessado no documento teve, por objetivo, legitimar a volta ao laissez-faire do século XIX, sem garantias legais às massas laboriosas. Intolerante e descomedida, a tal “Ponte para o futuro” jogou uma pá de cal na Nova República pós-democratização. A escravidão clássica foi reatualizada, estimulada e agravada com a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei das Terceirizações (2017). O atentado aos direitos trabalhistas foi homologado pelo Supremo Tribunal Federal (STF, 2018), sem dó.

Segundo Luís Roberto Barroso, no artigo “Judicialização da vida”, inserido na obra comemorativa 130 anos: em busca da República, organizada por Edmar Bacha et alli: “(i) o direito do trabalho e o sistema sindical precisam se adequar às transformações no mercado de trabalho e na sociedade; (ii) a terceirização não enseja, por si só, precarização do trabalho, violação da dignidade do trabalhador ou desrespeito a direitos previdenciários. O exercício abusivo da sua contratação é que pode produzir tais violações, existindo meios de prevenir e de reprimir tal comportamento”. O solo histórico desmente a tese. Lembrar as datas refresca a memória.

O texto do ministro foi publicado em junho de 2019, seis meses após a predatória abolição do Ministério do Trabalho e do sucateamento da atuação dos órgãos de controle: as Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego (SRTE) e Gerências Regionais do Trabalho e Emprego (GRTE). Unidades de atendimento nos estados encarregadas pela execução, supervisão e monitoramento de ações relacionadas a políticas públicas de trabalho e emprego. Abusos eram previsíveis, quando se permitiu que a raposa se instalasse no galinheiro. Não à toa, os problemas triplicaram no “garrão da pátria”. Em 2021, os auditores fiscais do trabalho resgataram 69 vítimas no RS. Em 2022, foram 156. Em 2023, já são 208. E recém estamos nas águas de março.

As digitais do Executivo, do Legislativo e do Judiciário estão na cena do crime, para a vida “se adequar às transformações no mercado de trabalho e da sociedade”. Não ocorre nunca aos doutos a preocupação com se adaptar às exigências para a criação de um Estado de Bem-Estar, com justiça social e ambiental, livre dos penduricalhos indecentes e indecorosos em determinadas carreiras. Não percebem o nexo causal ou agravante entre as premissas legalizadas e a conclusão na prática. Como no velho e sábio ditado, “pimenta nos olhos dos outros é colírio”.

A tempestade desumanizante não parou por aí. A contrarreforma do ensino médio consagrou no currículo das escolas a divisão de trabalho vigente na sociedade. O desemprego se disseminou na escala de várias dezenas de milhões. A falta de moradia perdeu o guarda-chuva do Minha Casa, Minha Vida. A precarização mostrou-se um sinônimo perverso de achatamento salarial. O período de labor foi dilatado para afastar as aposentadorias. A perspectiva de mobilidade social cresceu como rabo de cavalo. A pobreza trouxe a fome e o desalento. Acirraram-se os ressentimentos que, por sua vez, conduziram às polarizações perigosas, de soma zero. O sonho que parecia sólido de uma governabilidade e sociabilidade cidadãs com liberdade, igualdade e solidariedade desmanchou no ar. O ódio sistêmico mirou nossos avanços civilizacionais.

Os novos governantes têm pela frente desafios que, para ser enfrentados, demandam engajamento e mobilização do “mundo do trabalho” (centrais sindicais, associações, movimentos sociais, entidades comunitárias). Em contrapartida, as iniciativas governamentais devem interpelar o coração e a mente dos trabalhadores. Elogiadas no hemisfério Norte, as normas de convívio não escritas valem para o Sul global. Tolerância e comedimento não se confundem com atitudes de passividade ou com o pessimismo da vontade. Tampouco rimam com anistia. Avante.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

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