A campanha de Guilherme Boulos

Imagem: Joel Alencar
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Por DIOGO FAGUNDES*

Boulos tem e seguirá tendo imensas dificuldades em sua campanha pelo modo como ela vem sendo conduzida. Se a linha política não mudar, o risco de não vencer é concreto

Permitam-me alguns palpites, enquanto observador externo, a respeito da campanha de Guilherme Boulos.

Ao contrário de outras campanhas municipais das quais participei ativamente (em tarefas de ruas, comunicação etc.), mesmo que longe de tarefas de direção — como na campanha de Fernando Haddad em 2012, minha primeira experiência política —, não estou por dentro da campanha do Guilherme Boulos, o que gera grandes limitações para uma análise decente. Mas, na figura de observador externo, fico um tanto preocupado com o que vejo até agora.

1.

Primeiramente, para desfazer confusões: Boulos não é um candidato ruim. Era o nome mais competitivo que a esquerda poderia ter, pois apesar de ter alta rejeição, já é conhecido — foi para o segundo turno em 2020 e foi nosso deputado federal mais votado – e já tem o aval e a benção de Lula e Marta Suplicy (que foi uma grande prefeita, especialmente lembrada nas periferias). A prova disso foi seu desempenho no Roda Viva: calmo, tranquilo, sem cair em nenhuma casca de banana e mostrando muito preparo. Criar um candidato do zero tornaria a situação muito mais difícil.

2.

Desde a pré-campanha, as iniciativas e declarações do candidato parecem ter como objetivo a redução da rejeição alta. Isso faz sentido, já que é o que costuma decidir o segundo turno.

No entanto, o modo como essa tarefa necessária foi internalizada e executada pela campanha não foi muito sutil, me parece. O marketing mais tedioso e comum acabou prevalecendo sobre a política, o que levou a duas consequências colaterais nefastas:

i) um certo salto alto, um “oba oba” (“estamos em primeiro nas pesquisas!”, isso era celebrado nas redes enquanto Marçal criava um movimento ascendente vigoroso), que considerou que o candidato poderia ficar passivo pois já estaria garantido no segundo turno. Com a passividade, perdeu a capacidade de pautar a agenda das eleições, engolida inteiramente pelo Marçal.

ii) uma pasteurização insossa do candidato, agora muito mais parecido aos outros, um enlatado sem grandes diferenciais. Se em 2020, Boulos representava uma energia rebelde e descontente – mas canalizada de forma positiva, ao contrário do Marçal -, indignada com o “mais do mesmo”, valendo-se de sua autenticidade (o Celtinha como símbolo) e da sua biografia combativa, agora soa como um político mais comum.

3.

Outro fator a pesar contra o êxito da campanha até agora vem sendo uma espécie de infantilização deliberada do ex-líder de movimento de moradia (algo bem pouco bobo ou infantil), que chegou até a virar chacota nas redes sociais pelos memes de tiozão da Sukita. É uma combinação da lógica ultra-marqueteira com certo estilo de comunicação abobalhado que marca, para mim, o pior do que eu vi no movimento estudantil universitário. É certo que a crítica ao “identitarismo woke”, nos moldes tradicionais como é feita, é muito reacionária, mas é preciso também admitir que a esquerda “oficial” internalizou certos cacoetes típicos dos aspectos menos gloriosos da esquerda universitária. O hino brasileiro cantado em “linguagem neutra” é uma caricatura máxima disto.

4.

Ao lado da passividade e da infantilização, outra marca até agora foi a ausência de… marcas! Talvez a fim de evitar comprar muitas brigas — de novo, pensando em diminuir rejeição -, optou-se por um esvaziamento programático grande, com poucas propostas cativantes e capazes de criar uma simbologia forte (como foi o “arco do futuro” do Haddad em 2012, ou o “muda mais” da Dilma em 2014). Sem ideias-forças que canalizem a insatisfação do eleitorado em uma visão afirmativa e esperançosa de futuro (algo que Marçal consegue fazer, a despeito do ridículo de suas propostas, no que vemos que não se trata de mera “técnica”) é difícil criar um movimento cultural e participativo forte. E a esquerda só ganha assim: quando consegue criar esse movimento de esperança, capaz de engajar muitas pessoas de forma voluntária.

5.

O erro de fundo parte, portanto, da forma manjada e óbvia como lêem a necessidade de diminuir rejeição. Ampliar é preciso, mas como? Focar logo no primeiro turno mais em encontros no mercado financeiro (que, aliás, parece, segundo a imprensa, entusiasmado com Pablo Marçal… Para a surpresa apenas daqueles que apostam demais na razoabilidade nas nossas “elites”, a despeito de tudo que vimos em 2018) e com o Secovi do que em dar sinalizações claras para sua base já existente e consolidada? É como se Boulos tivesse realizado a operação do “Lulinha paz e amor” (2003, um outro país) sem nenhuma mediação ou cuidado, achando que a repetição abrupta (Lula fez isso em um longo processo de muitos anos, mantendo e ampliando sua base social e partidária), em uma variação ainda mais marqueteira e despolitizada, daria conta. Marcelo Freixo fez o mesmo, com os resultados de “sucesso” que conhecemos.

Ao ficar sem tempero, surgem dificuldades de conquistar mais intensivamente uma militância voluntária. E sem esta militância engajada, ativa e confiante, a tendência é a campanha murchar. No primeiro turno, a tarefa principal deveria ser falar nitidamente aos seus apoiadores, distribuindo tarefas precisas e claras a eles, a fim de criar movimento, gerar onda ascendente, criar campanha de rua. No final de contas, quando se visa exclusivamente diluição ideológica (isto é, ficar mais sem graça), o resultado não é menos rejeição, mas menos visibilidade, destaque e autoconfiança. Vira uma campanha medrosa, que não inspira as pessoas — olha como Marçal é justamente o anti-medo (aliás, nome de um dos seus livros charlatões), a confiança pura! Desta forma, abre-se brecha para que outros candidatos cresçam ao cumprir a tarefa que deveria naturalmente pertencer ao Boulos: polarizar, combater, ter firmeza e gravidade.

É o papel que Tábata Amaral, candidata ideológica do “centro democrático” neo-tucano, vem cumprindo em seus ótimos vídeos detonando a fraude Marçal, provavelmente roubando eleitores do Boulos no processo – ainda não sabemos o resultado que seus vídeos com dezenas de milhões de visualizações gerarão nas pesquisas, mas ela estava com tendência de alta mesmo antes disso na pesquisa da FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo). O grande espaço que a campanha de Boulos deu para o alavancamento de Tabata, alguém que teria poucas chances de crescer, espremida que estava, indica já uma tática um tanto manca por parte da campanha do ex-líder do MTST.

6.

No final das contas, a esquerda, ao menosprezar Pablo Marçal, agiu em 2024 como em 2018. Tal como os Bourbon, não aprendem nada com a História. Aqueles que tentavam alertar para o perigo e a urgência de centrar fogo, por todos os meios possíveis, incluindo jurídicos (no que Tabata novamente teve o mérito da iniciativa), no coach inescrupuloso eram taxados de “impressionistas” – estavam reféns dos nichos e bolhas das redes…—, de não entenderem que a “direita real” iria de Nunes pois supostamente detesta lúmpens aventureiros (tal como Alckmin era mais forte que Bolsonaro em 2018 por ter apoio da Globo, da grande burguesia, etc.), de não enxergarem que o segundo turno entre Nunes e Boulos já estava bem definido, de não entenderem que a base bolsonarista era fiel ao seu líder e não abandonaria o candidato indicado por ele – como se o bolsonarismo tivesse qualquer coisa a ver ideologicamente com um cara tão abertamente do “sistema” quanto Nunes. Essas convicções todas, firmes como um prego na areia, desmancharam-se rapidamente com a ascensão meteórica de Marçal. Infelizmente, alguns ainda parecem não ter entendido até agora e preferem ignorar que o Marçal hoje é O fenômeno da eleição, que não sai da boca de ninguém, na lógica do “fale bem ou fale mal” que é muito útil à extrema-direita nas redes.

Esses analistas ainda não entenderam a mudança drástica da lógica das eleições pós-bolsonarismo: fatores tradicionais, como tempo de televisão e amplo arco de alianças, não são o que há de mais decisivo. Lembram-se de Rodrigo Garcia, em 2022, com sua máquina gigantesca? Quando perceberam que não era o mais viável, seus aliados focaram em suas campanhas individuais e não se desgastaram combatendo um candidato que provavelmente viraria governador – o Tarcísio. Quando será que este tipo de teimosia, este apego obsessivo a um tipo de quadro eleitoral que não existe mais, cessará entre nós? Ainda ouviremos essas vozes da sabedoria por quantas eleições ainda, a nos desarmar e impedir de agir com antecedência e urgência necessária frente ao tamanho do perigo?

7.

Por fim, apesar de indícios da candidatura ter acordado para o que está em jogo, ainda que forma de confusa, pois não hierarquiza com nitidez o inimigo principal, optou-se, pelo visto, por uma tentativa de reedição da lógica nacional de 2022 na campanha, na linha “civilização x barbárie”, ampla unidade contra o fascismo, etc. Isso fez o candidato repetir a aposta no “amor” (“faz o coração”) que caracterizou tanto a campanha fracassada de 2018 quanto a vitoriosa (mas no sufoco) de 2022. Há dois problemas.

O primeiro: a prefeitura mal aprovada de Nunes não é associada aos vícios do Bolsonaro. Bolsonaro gerou muita rejeição enquanto presidente ao adotar uma postura absurda na pandemia, quando soou completamente indiferente ao drama dos concidadãos cuja vida ele deveria proteger. A visão que se consolidou na mente de grande parte da população era a de um bronco agressivo e perigoso, que estimulava a violência de variadas formas, indiferente até mesmo ao drama do genocídio ianomani ou à destruição da Amazônia. Isso permitiu que Lula soasse como o nome empático e solidário, a mobilizar afetos anti-bolsonaristas.

O caso de São Paulo é diferente: é uma cidade largada, abandonada, sem comando. As pessoas não têm rechaço ao Nunes porque ele é bolsonarista – até porque ele é bem tímido nessa vinculação, prefere se manter longe, não à toa está perdendo esta base -, mas porque ele é um inútil apagado, que parece não dirigir o município para nenhuma orientação clara. Os afetos a serem mobilizados contra o Nunes, primeiramente, deveriam ser não um genérico “amor” (ninguém acha o Nunes um vilão sádico de desenho animado, como pensam justamente a respeito do Bolsonaro), mas vigor, energia, pulso firme e confiança em uma alternativa à mesmice. Afetos que o Marçal mobiliza muito bem.

O segundo problema é que Marçal, apesar de expressar valores que dialogam profundamente com a base bolsonarista e, em certo sentido, ser um hiper-bolsonarista, não se resume a isto. O chamariz dele, com apelo inclusive popular, está em ser o antissistema agressivo, claro – o que implica em ser anticomunista, antipetista, já que tudo isso virou, de certa forma, o “sistema” -, mas também em dialogar profundamente com anseios dos “batalhadores”, dos trabalhadores por conta própria, pequenos proprietários que vivem do suor de seu trabalho, autônomos, jovens sem perspectiva de emprego formal, etc. que visam ascender socialmente. É a cultura do “se vira”, do “faz seu corre”, transmutada em um símbolo poderoso a servir de emblema mobilizador: vamos ficar ricos, vamos ficar fortes e másculos, o céu é o limite pra quem se esforça e tem a mentalidade certa.

Veja o grande foco dado ao tema da “educação empreendedora”, por exemplo, ou a denúncia contundente às favelas (“campos de concentração”), que dão um apelo “social” maior a ele frente ao bolsonarismo tradicional, quase sempre cego ao drama dos mais pobres. Perguntado qual era seu maior inimigo (presumindo-se um adversário eleitoral), na entrevista para a CNN, ele responde na lata: a miséria e a pobreza. Fala que quer transformar nossos jovens em atletas olímpicos, compara o desenvolvimento do Brasil negativamente frente à China, apela para sentimentos de vontade de construir uma grande cidade. É um discurso confiante, assertivo e voltado pro futuro, por mais megalomaníacas ou estapafúrdias que sejam as propostas, e elas são.

Frente a isto, apelar simplesmente para “defesa da democracia” pode soar abstrato e pouco convincente. Aliás, pode dar uma aura de embate do “sistema” contra o outsider, catapultando ainda mais seu apelo. Por estas razões, é preciso, a fim de combater Marçal, mais do que apelar para fantasmagorias um tanto estéreis (a questão da luta democrática contra Bolsonaro soava concreta, mas Marçal ameaça a democracia em qual sentido exatamente? Ele nem defende a ditadura militar, fica difícil para a nossa comunicação ficar didática), ter uma linha que demonstre claramente que, em vez de empreendedor bondoso (ele diz inclusive não ser um capitalista por não ser explorador!), é um estelionatário perigoso e que vive de enganar as pessoas, sendo incapaz, portanto, de ter soluções reais para educação, saúde, emprego, renda, transporte urbano, moradia, etc. e, que, o Boulos, sim, é mais comprometido e tem as melhores ideias sobre os temas que mais mexem com o dia a dia dos habitantes. Para usar um slogan maoísta – desculpa, não consigo escrever um texto de política sem prestar homenagem às minhas referências -, devemos “contar com as nossas próprias forças”, isto é, ter mais confiança em nós próprios, assim como mais audácia e ousadia (“ousar lutar, ousar vencer”). Talvez sirva este outro também: o “primado das causas internas”. Não adianta fugir dos problemas reais e efetivos enfrentados pela grande maioria dos paulistanos em nome de causas que pouco dizem respeito à vida cotidiana das pessoas (como a luta pela democracia contra a extrema-direita mundial).

8.

Haveria outras questões a serem discutidas, como o uso de artistas, intelectuais e “personalidades” – até agora bem pouco exploradas -, e a organização dos jovens, mas deixemos isto para lá, pois não me sinto muito capacitado, com o nível de informação que tenho, a ser tão contundente na crítica neste ponto como fui em relação aos outros.

Não quero ser derrotista nem transmitir desânimo. Ao contrário do que muitos acham — há gente que torce até contra, baseada em ressentimento, principalmente no PT, com o fato de Boulos ter virado o nome maior da esquerda paulistana, graças, em grande parte, ao harakiri que o PT cometeu em 2020 com a candidatura desastrosa de Jilmar Tatto e que vem cometendo até hoje, com a posição ambígua da maior parte de seus vereadores (para pegar leve…) frente à gestão Nunes —, eu acredito que é possível ganhar. No entanto, sendo franco, não acho que seja possível com esta linha política, com o modo como a campanha vem sendo conduzida até aqui. Ou há um chacoalhão geral e uma mudança de rota para ontem ou poderemos ter resultados pouco animadores, com grande risco de catástrofe, em sintonia com o clima gélido que impera atualmente na cidade.

(Boa parte deste texto contém ideias elaboradas com maior clareza pela primeira vez por Marco Aurélio Purini, um amigo com quem compartilho uma avaliação de cenário de São Paulo idêntica em praticamente 100%. A propósito, conheci-o na campanha municipal de 2012, quando ele coordenava o “Estudantes com Haddad”, organizando e mobilizando muitos jovens (como eu) de forma inteligente e exitosa. Essa campanha me fez lembrar uma coisa: ao contrário do triunfalismo e do espírito auto-celebratório acrítico, Haddad destacava que o Brasil, com os governos petistas, havia melhorado muito, mas apenas da porta para dentro, não da porta para fora — em uma avaliação muito condizente com os protestos que iriam estourar em 2013, ao quais ele não soube responder, nem de longe —, e portanto, era tarefa do prefeito focar em transporte público, mobilidade urbana, serviços públicos de qualidade etc. Isso na época em que Dilma era bem avaliada e o PT tinha auge de popularidade! Talvez precisamos retomar algo desse espírito menos fanfarrão.)

*Diogo Fagundes é mestrando em Direito e graduando em Filosofia na USP.


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