A ruína está chegando

Imagem: Matheus Bertelli
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por NOURIEL ROUBINI*

Uma recessão severa é a única coisa que pode moderar a inflação de preços e salários, mas tornará a crise da dívida mais severa

Diante da inflação alta e persistente, dos riscos de recessão e agora de uma iminente crise de insolvência no setor financeiro, bancos centrais como o Federal Reserve dos EUA estão enfrentando um trilema. Incapazes de combater a inflação e, simultaneamente, de fornecerem suporte de liquidez, a única solução restante é uma recessão severa – e, portanto, uma crise de dívida mais ampla.

Em janeiro de 2022, quando os rendimentos dos títulos do Tesouro dos EUA de dez anos ainda eram cerca de 1% e os do banco central alemão eram de -0,5%, alertei que a inflação seria ruim tanto para as ações quanto para os títulos. Uma inflação mais alta levaria a rendimentos mais altos dos títulos, o que, por sua vez, prejudicaria as ações à medida que o fator de desconto para dividendos aumentasse. Mas, ao mesmo tempo, rendimentos mais altos em títulos “seguros” também implicariam uma queda em seu preço, devido à relação inversa entre rendimentos e preços de títulos.

Esse princípio básico – conhecido como “risco de duração” – parece ter sido perdido por muitos banqueiros, investidores de renda fixa e reguladores bancários. Como o aumento da inflação em 2022 levou a rendimentos mais altos dos títulos, os títulos do Tesouro de dez anos perderam mais valor (-20%) do que o S & P 500 (-15%). Ora, qualquer pessoa com ativos de renda fixa de longa duração denominados em dólares ou euros ficou nu em noite fria. As consequências para esses investidores foram severas. Até o final de 2022, as perdas não realizadas dos bancos dos EUA em títulos atingiram US$ 620 bilhões, cerca de 28% de seu capital total (US$ 2,2 trilhões).

Para piorar a situação, taxas de juros mais altas também reduziram o valor de mercado dos outros ativos dos bancos. Se você fizer um empréstimo bancário de dez anos quando as taxas de juros de longo prazo são de 1%, e essas taxas subirem para 3,5%, o verdadeiro valor desse empréstimo (o que outra pessoa no mercado pagaria por ele) cairá. Contabilizar isso implica que as perdas não realizadas dos bancos dos EUA na verdade equivalem a US$ 1,75 trilhão, ou seja, algo em torno de 80% de seu capital.

A natureza “não realizada” dessas perdas é apenas um artefato do atual regime regulatório, que permite que os bancos avaliem títulos e empréstimos pelo seu valor nominal e não pelo seu verdadeiro valor de mercado. De fato, a julgar pela qualidade de seu capital, a maioria dos bancos dos EUA está tecnicamente perto da insolvência e centenas já estão de fato totalmente insolventes.

Com certeza, o aumento da inflação reduz o verdadeiro valor dos passivos dos bancos (depósitos), aumentando sua “franquia de depósitos”, um ativo que não consta em seu balanço. Como os bancos ainda pagam perto de 0% na maioria de seus depósitos, mesmo que as taxas overnight tenham subido para 4% ou mais, o valor desse ativo aumenta quando as taxas de juros são mais altas. De fato, algumas estimativas sugerem que o aumento das taxas de juros aumentou o valor total da franquia de depósitos dos bancos dos EUA em cerca de US$ 1,75 trilhão.

Mas esse ativo só existe se os depósitos permanecerem com os bancos à medida que as taxas sobem. Agora sabemos, devido ao caso do Silicon Valley Bank e pela experiência de outros bancos regionais dos EUA, que tal viscosidade está longe de ser garantida. Se os depositantes fogem, a franquia de depósito evapora e as perdas não realizadas em títulos se tornam realizadas à medida que os bancos os vendem para atender às demandas de retirada. A falência torna-se então inevitável.

Além disso, o argumento da “franquia de depósito” pressupõe que a maioria dos depositantes manterá seu dinheiro em contas com juros próximos a 0%, quando poderiam estar ganhando 4% ou mais em fundos do mercado monetário totalmente seguros que investem em títulos do Tesouro de curto prazo. Mas, mais uma vez, agora sabemos que os depositantes não são tão complacentes. A fuga atual, aparentemente persistente, de depósitos não segurados – e até mesmo segurados – provavelmente está sendo impulsionada tanto pela busca dos depositantes por retornos mais altos quanto por suas preocupações com a segurança de seus depósitos.

Em suma, depois de não ser um fator nos últimos 15 anos – desde que a política e as taxas de juros de curto prazo caíram para quase zero após a crise financeira global de 2008 – a sensibilidade dos depósitos às taxas de juros voltou à tona. Os bancos assumiram um risco de duração altamente previsível porque queriam engordar as suas margens de juro líquidas. Aproveitaram o fato de que, embora os encargos de capital sobre obrigações do Estado e títulos garantidos por hipotecas fossem nulos, as perdas sobre esses ativos não estavam avaliadas pelo mercado. Para adicionar insulto à injúria, os reguladores nem sequer submeteram os bancos a testes de estresse para ver como eles se sairiam em um cenário de aumento acentuado das taxas de juros.

Agora que este castelo de cartas está a entrar em colapso, a crise de crédito causada pelo stress bancário de hoje criará uma aterragem mais difícil para a economia real, devido ao papel fundamental que os bancos regionais desempenham no financiamento das pequenas e médias empresas e das famílias. Os bancos centrais, portanto, enfrentam não apenas um dilema, mas um trilema. Devido aos recentes choques negativos de oferta agregada – como a pandemia e a guerra na Ucrânia – alcançar a estabilidade de preços por meio de aumentos das taxas de juro estava fadado a aumentar o risco de um pouso forçado (uma recessão e um desemprego mais elevado). Mas, como venho argumentando há mais de um ano, essa troca vexatória também apresenta o risco adicional de grave instabilidade financeira.

Os mutuários estão enfrentando taxas crescentes – e, portanto, custos de capital muito mais altos – em novos empréstimos e em passivos existentes que venceram e precisam ser rolados. Mas o aumento das taxas de longo prazo também está levando a perdas maciças para os credores que detêm ativos de longa duração. Como resultado, a economia está caindo em uma “armadilha da dívida”, com altos déficits públicos e dívida causando “dominância fiscal” sobre a política monetária, e altas dívidas privadas causando “domínio financeiro” sobre as autoridades monetárias e reguladoras.

Como tenho alertado há muito tempo, os bancos centrais que enfrentam esse trilema provavelmente desaparecerão (reduzindo a normalização da política monetária) para evitar um colapso econômico e financeiro com auto-reforço. Ora, o cenário estará preparado para uma perda de âncora das expectativas de inflação ao longo do tempo. Os bancos centrais não devem iludir-se pensando que ainda podem alcançar a estabilidade financeira e de preços por meio de algum tipo de princípio de separação (aumentar as taxas para combater a inflação e, ao mesmo tempo, usar o apoio à liquidez para manter a estabilidade financeira). Numa armadilha da dívida, taxas de juros providas pela política mais elevadas alimentarão crises sistêmicas da dívida que o apoio à liquidez será insuficiente para resolver.

Os bancos centrais também não devem assumir que a próxima crise de crédito matará a inflação ao conter a demanda agregada. Afinal, os choques negativos de oferta agregada persistem e os mercados de trabalho permanecem muito apertados. Uma recessão severa é a única coisa que pode moderar a inflação de preços e salários, mas tornará a crise da dívida mais severa, e isso, por sua vez, retroalimentará uma recessão econômica ainda mais profunda. Uma vez que o apoio à liquidez não pode impedir este ciclo de desgraça sistémica, todos devem estar a preparar-se para a próxima crise da dívida estagflacionária.

*Nouriel Roubini é professor de economia na Stern School of Business da Universidade de Nova York. Autor, entre outros livros, de  MegaThreats: ten dangerous trends that imperil our future, and how to survive them (Little, Brown and Company).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Publicado originalmente no portal Project Syndicate.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marcos Silva Paulo Fernandes Silveira Jean Pierre Chauvin Antonio Martins Claudio Katz Mariarosaria Fabris João Feres Júnior Leda Maria Paulani Luciano Nascimento Leonardo Boff Marcelo Guimarães Lima Jorge Branco Henry Burnett Annateresa Fabris Gabriel Cohn Boaventura de Sousa Santos Valerio Arcary Denilson Cordeiro Marcos Aurélio da Silva João Sette Whitaker Ferreira Vinício Carrilho Martinez José Raimundo Trindade Sandra Bitencourt Eduardo Borges Salem Nasser Michael Löwy Atilio A. Boron Eliziário Andrade Alexandre de Freitas Barbosa Vladimir Safatle Leonardo Avritzer José Geraldo Couto Ronaldo Tadeu de Souza Ladislau Dowbor Antônio Sales Rios Neto Luís Fernando Vitagliano Celso Favaretto Afrânio Catani Bruno Machado Juarez Guimarães José Costa Júnior João Adolfo Hansen Dênis de Moraes Chico Whitaker Walnice Nogueira Galvão Érico Andrade Luiz Carlos Bresser-Pereira Armando Boito Airton Paschoa Ricardo Musse Jean Marc Von Der Weid Berenice Bento Gilberto Maringoni Igor Felippe Santos Benicio Viero Schmidt Matheus Silveira de Souza Renato Dagnino Leonardo Sacramento José Luís Fiori Yuri Martins-Fontes Liszt Vieira Otaviano Helene Tarso Genro Eleutério F. S. Prado Ari Marcelo Solon Samuel Kilsztajn Paulo Sérgio Pinheiro Francisco Pereira de Farias José Micaelson Lacerda Morais Rubens Pinto Lyra Gerson Almeida Flávio Aguiar Dennis Oliveira Tales Ab'Sáber Andrés del Río Alysson Leandro Mascaro Manuel Domingos Neto Luiz Werneck Vianna Eugênio Bucci André Singer Paulo Capel Narvai João Carlos Loebens Michel Goulart da Silva Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Eduardo Soares Osvaldo Coggiola Tadeu Valadares Manchetômetro Lorenzo Vitral Francisco de Oliveira Barros Júnior Jorge Luiz Souto Maior Plínio de Arruda Sampaio Jr. Slavoj Žižek Rafael R. Ioris Caio Bugiato Ricardo Fabbrini Fernão Pessoa Ramos Remy José Fontana Bernardo Ricupero Thomas Piketty Carlos Tautz Marcus Ianoni Marjorie C. Marona José Machado Moita Neto André Márcio Neves Soares João Carlos Salles Antonino Infranca Henri Acselrad Daniel Brazil Ricardo Antunes Lucas Fiaschetti Estevez Fernando Nogueira da Costa Ronald León Núñez Marcelo Módolo João Lanari Bo Valerio Arcary Kátia Gerab Baggio Lincoln Secco Elias Jabbour Maria Rita Kehl Marilena Chauí Milton Pinheiro Ricardo Abramovay Alexandre de Lima Castro Tranjan Daniel Afonso da Silva Flávio R. Kothe Luis Felipe Miguel Bento Prado Jr. Vanderlei Tenório Ronald Rocha Francisco Fernandes Ladeira Paulo Nogueira Batista Jr Paulo Martins Eugênio Trivinho Eleonora Albano Carla Teixeira Celso Frederico Everaldo de Oliveira Andrade Rodrigo de Faria Bruno Fabricio Alcebino da Silva Daniel Costa Luiz Roberto Alves Priscila Figueiredo Luiz Renato Martins Julian Rodrigues Luiz Bernardo Pericás Anselm Jappe Luiz Marques Sergio Amadeu da Silveira Heraldo Campos Andrew Korybko Mário Maestri Michael Roberts Alexandre Aragão de Albuquerque Marilia Pacheco Fiorillo Fábio Konder Comparato João Paulo Ayub Fonseca José Dirceu Gilberto Lopes Chico Alencar

NOVAS PUBLICAÇÕES