Por RONALDO TADEU DE SOUZA*
A teoria política e pensamento político brasileiro não contemplavam (e não contemplam) boa parte daquilo que definia a ciência política
A teoria política como uma das áreas específicas do conhecimento humano teve seu início no mundo grego antigo. Leo Strauss um dos principais, senão o principal, filósofos políticos do século XX, e que foi um dos fundadores daquela como subcampo ou subárea de estudo no âmbito dos departamentos de ciência política nos Estados Unidos afirmou em The City and Man que foi Aristóteles na Atenas clássica (508-322 a.C.) quem fundou a ciência política.
Malgrado as variações terminológicas entre filosofia, ciência, pensamento e teoria – uma disputa na ordem das epistemes sobre o privilégio legítimo na asserção compreensiva e analítica na investigação da política – o certo é que a preocupação com essa atividade de indivíduos vivendo constitutivamente juntos, enquanto coletividade a fim, remonta à longínqua Ática. Desde então a teoria política enfrentou vicissitudes as mais diversas. Aqui não nos convém elencá-las. É apenas razoável dizermos que nos anos 1950-1960 Peter Laslett na série Philosophy, Politics and Society sentenciou o passamento da teoria política.
Mas como bem comentou Perry Anderson em Renovaciones [New Left Review, nº. 2, 2000] qualquer argumento darwinista ao tratar da história das ideias incorrerá em percepções equivocadas ao traçar, seja voluntaria ou involuntariamente e seja consciente ou inconscientemente, um paralelo entre espécies (animais) que se extinguem e a vitalidade notável dos sistemas de pensamento forjados pela humanidade em geral. A teoria política e o pensamento político brasileiro vêm mostrando sua disposição firme e imaginativa na reflexão dos problemas que perpassam as sociedades humanas – mesmo atravessando momentos breves de incerteza desde o seu início. No Brasil não poderia deixar de ser distinto: sobretudo em um país que possui particularidades que perpassam todos os aspectos da vida social, inclusive as atividades acadêmicas e de pesquisa nas ciências humanas e sociais.
Assim como a norte-americana, mas com características peculiares significativas, a teoria política, se originou, ao menos nas circunstâncias de intensa profissionalização das ciências sociais brasileiras, no domínio da disciplina de ciência política. E dessa maneira enfrentou questões similares à sua congênere estadunidense. Porém diferente daquela, ao longo dos anos passaria a ter como aliada nas contendas institucionais o pensamento político brasileiro enquanto campo de estudos. Com efeito, a teoria política e o pensamento político brasileiro (TPPPB), hoje compõem juntas uma das áreas formativas da disciplina de ciência política no âmbito mais amplo do curso de ciências sociais.
Enquanto a disciplina que a abriga, epistemológica, cognitiva e ontologicamente, foi erguida por figuras chaves entre nós, como Fábio Wanderley Reis, Olavo Brasil Lima, Wanderley Guilherme dos Santos, Bolívar Lamounier e teve uma identidade mais bem delineada e uniforme[1]; a teoria política e o pensamento político brasileiro por sua vez soergueram-se sobre os trabalhos de inúmeros pesquisadores e pesquisadoras que dada sua variedade e abrangência é de difícil nomeação.
Ademais a matéria em si da teoria política e do pensamento político brasileiro é multifacetada e dispersa quanto aos estilos de abordagem. De todo modo sem dúvida houve uma primeira e talvez segunda geração que cumpriram a tarefa de construção das referidas áreas.[2] (Elencar protagonistas na construção de áreas das ciências humanas é sempre deselegante, inconveniente e irrestritamente injusto, e há sempre de algum modo o fato da arbitrariedade, por isso estabeleço tais indicações genéricas e sem nomeação precisa).
Não se trata de conformar um paralelo generalista com a teoria política nos Estados Unidos. Quando chegaram à América, Leo Strauss, Eric Voegelin e Hannah Arendt não foram recebidos com a deferência ao qual são lidos hoje pelos profissionais da teoria política e filosofia política contemporâneas. A asserção hermenêutica, histórica, erudita e estilizada no estudo da política teria de concorrer com a consolidação e autoridade institucional da ciência política; a bem da verdade ciência do governo – uma criação eminentemente estadunidense.
Além disso, era o momento em que os norte-americanos, precisamente sua elite política, estavam apreensivos acerca do fim da Segunda Guerra Mundial, da posição dos Estados Unidos diante do mundo e da “democracia” vista como regime mais adequado para as sociedades ocidentais. A autorreflexão da dinâmica organizacional das instituições, dos atores e o entendimento descritivo da articulação desses adquiria prioridade combativa na ciência política. A obra imponente de David Easton é um emblema desses dias.
No Brasil houve similaridades com o caso nos Estados Unidos, ao menos em se tratando de perspectivas formais de desenvolvimento (não foi sem razão e fortuitamente que João Feres Jr. alertava no início dos anos 2000 sobre o risco da cópia de quando escreveu Aprendendo com o erro dos outros [Revista de Sociologia e Política, nº 15, 2000]); tais similaridades são equilibradas com diferenças específicas. A principal é que a ciência política brasileira, assim a pensou Bolívar Lamounier,[3] um dos seus iniciadores, deveria e foi forjada como instrumento de pesquisa e suporte analítico na construção de nossa democracia no pós-ditadura.
Além disso, a ciência política brasileira teria de lidar, como modalidade peculiar de explicação do país, por um lado com o ensaísmo culto[4] e a ideia de formação dos anos 1930 (Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda), e por outro com o prestígio da sociologia paulista – e o icônico Florestan Fernandes. Ambos, a Ideia de Formação e a Escola Sociológica Paulista nos anos 1980 e 1990, já dispunham do lugar de prestígio enquanto modos de estudo, compreensão e crítica acerca da sociedade brasileira em suas múltiplas esferas. Ainda assim, a ciência política se consolidaria como uma das disciplinas de maior relevância em nossas ciências sociais e humanas; e com presença importante sobre os debates do desenho institucional da democracia brasileira pós-1988.
Ora, erigir um regime democrático e institucionalizá-lo demandaria o conhecimento hipotético das possibilidades de sucesso e fracasso. De modo que a ciência política, epistemologicamente, apresentaria o equipamento mental para tanto – com implicações para ela mesma como tal e que se desdobraram para a área de teoria política-pensamento político brasileiro. Rigor elogiável; sofisticação na linguagem explicativa; consideração da política como fato soberano; tratamento científico das instituições estatais; olhar atento e objetivo sobre os partidos políticos; e detalhamento na explicação dos dados coletados: todas essas são qualidades que ninguém que se diz adepto do conhecimento de excelência pode recusar. Entretanto, as contrapartidas desses atributos são: excesso de cientificismo; matematização do conhecimento; extrapolação do empirismo para toda forma de jogo político; método como fim em si; frieza no trato dos valores; obsessão pela produtivismo-pelo-produtivismo; e por vezes um realismo analítico que legitima o sistema político e o poder.
Com efeito; a teoria política e pensamento político brasileiro não contemplavam (e não contemplam) boa parte daquilo que definia a ciência política; suas dificuldades enquanto área de pesquisa no interior mesmo dessa demonstrar-se-iam, portanto, ao longo dos anos. (É evidente que essa é a percepção histórica, arqueológica e de leituras de quem escreve estas linhas, o que significa afirmar que os que vivenciaram o processo diretamente em seu início podem não ter tido a mesma estrutura de sentimentos: se assim o foi fica a data-venia.)
A profissionalização de nossas ciências sociais passaria a se expressar, dentre outras e inúmeras maneiras, nos encontros disciplinares e de área. No caso específico da ciência política na ANPOCS-Encontro da Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais e na ABCP-Associação Brasileira de Ciência Política, respectivamente ocorridos anualmente e bianualmente. E como não poderia, de certo modo, deixar de ser, tais encontros repercutem a dinâmica relacional das disciplinas e suas áreas, subáreas e campos de pesquisa, bem como a correlação assimétrica das disposições institucionais intradepartamentais. Não se trata de uma rivalidade tola e sem sentido – trata-se isto sim de averiguar que no âmbito dos departamentos de ciência política a teoria política e o pensamento político brasileiro em relação com os estudos de instituições políticas (com sua abordagem empírico-estatística, orientado por uma compreensão positivista e metodológica da política), relações internacionais e hoje de políticas públicas, esteve (e talvez ainda esteja…) em posição desproporcionalmente desvantajosa.
As sutis, mas não menos problemáticas acusações e alcunhas de que – teoria política não é produtiva, que para ensinar Maquiavel, Hobbes, Rousseau ou Marx não é preciso ser especialista, que valores normativos não importam para quem quer descrever estatisticamente processos políticos, que o passado não nos diz nada para a compreensão da política real hoje, que não se faz ciência na teoria política, que o ensaísmo nacional – os clássicos da formação Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. e outros – são meros especuladores sobre o que era o país, sem utilidade de pesquisa prática, e não auxiliam na compreensão da política real, e nada dizem sobre o jogo institucional-partidário são explicitações daquilo.
As consequências subjetivas e objetivas desse processo são variadas e não cabe aqui elencá-las. Uma delas foi o espaço cada vez mais reduzido ao longo dos anos nos encontros da ANPOCS para que a teoria política apresentasse suas reflexões, estudos, textos, ensaios e projetos de pesquisa dos que a constituem. Ainda assim, a teoria política e o pensamento político e social brasileiro demonstraram vigor mesmo em circunstâncias adversas. As agendas de pesquisa se diversificaram; os temas de estudo se tornaram múltiplos; os aportes metodológicos (Cambridge School, História dos Conceitos, Escola Francesa do Político, Marxismo) apresentam maior densidade; o enfoque da política adquiriu pluralidade (teoria normativa, abordagens históricas da teoria política, pensamento brasileiro, teoria crítica e mais recentemente pós-colonialismo e pós-estruturalismo) e a atração de novos e novas teóricos políticos e teóricas políticas e dos/as que pensam o pensamento político brasileiro aumentou.
Chegamos assim, de certo modo, a uma “nova” fase. E a exigência imanente de um espaço “autônomo” de debate, reflexão do próprio campo, interação de pesquisadores, articulação entre instituições e departamentos e a autocompreensão crítica do sentido mesmo de se fazer teoria política e pensamento político brasileiro se tornou candente. (Em linguagem marxista era um mundo que foi se elevando sobre nossas costas na medida mesma em que o íamos fazendo e construindo.)
A experiência dos encontros de teoria política e pensamento político brasileiro
A construção dos Encontros de Teoria Política e Pensamento Político Brasileiro não seria possível sem os fios de continuidade que ligam a geração acima apresentada, com seu esforço, persistência, virtude democrática, espírito público, rigor acadêmico e atenção formativa com seus alunos e alunas, com a geração mais recente de pesquisadores da área de teoria política e pensamento político brasileiro. Foram eles e elas a consentirem (incentivarem e estenderem as mãos) para que se desse início em 2018 aos Encontros…. Que esse ano estará em sua quinta edição – a ocorrer em julho no IESP-UERJ.
A busca por um espaço de reflexão que contemplasse as circunstâncias descritas há pouco e respondesse aos obstáculos institucionais, impulsionou a que diversos recém-ingressos na carreira docente e na de pesquisador em programas de pós-doutoramento dessem início aos Encontros de Teoria Política e Pensamento Político Brasileiro. Pode-se dizer que esse está em vias de consolidação institucional. E o que marca essa nova fase é a pluralidade crítica e séria – verdadeiramente. (É claro que há um caminho a ser percorrido ainda.)
Assim, há pesquisadores e pesquisadoras com trabalhos rigorosos na teoria crítica da sociedade, Escola de Frankfurt para alguns (Rurion S. Melo-USP, Ingrid Cyfer-Unifesp, Ana Cláudia Lopes-UFBA, Ricardo Fabrino-UFMG, Raphael Neves-UNIFESP, Renato Fancisquini-UFBA são os “novos” e “novas” expoentes transitando por autores como Habermas, Seyla Benhabib, Judith Butler, Axel Honneth e temas como comunicação, redes sociais, transição democrática e direitos humanos); há os que se dedicam a escavar o passado com métodos de investigação elaborados com sofisticação (os estudos de Felipe Freller-UFSCAR/EHSS sobre Benjamin Constant e Guizot, o cuidado erudito de Roberta S. Nicolete-UERJ – ex-orientados da professora Eunice Ostrensky do departamento de ciência poítica da USP – ao se debruçar sobre Tocqueville e Olympe de Gouges e a escrita das mulheres na França revolucionária, as investidas de Luís Falcão-UFF em Harrington e Maquiavel, as preocupações com a autonomia e demofilia em perspectiva histórico-conceitual de Thais Aguiar-UFRJ ); a preocupação com uma teoria normativa ganha pujança na compreensão acerca da desigualdade nos estudiosos de John Rawls e sua Uma teoria da justiça (destaque aqui são para ex-orientandos de Álvaro de Vita: San Romanelli, Marcos Paulo L. da Silveira, Júlio Barroso e Renato Francisquini – que mobilizam a filosofia moral rawlsiana e outras para pensar o gênero, a saúde, a mídia e liberdade de expressão); no pensamento político brasileiro, um vigor e um leque de temas, autores, documentos, grupos e intelectuais são inesgotáveis (Paulo Henrique Cassimiro, Leonardo Belinelli, Diego Ambrosini, José Artigas, Pedro Lima Rego e Jorge Chaloub têm trabalhos que cobrem desde a crítica dialética de Roberto Schwarz, passando pelo fascismo e os catolicismos conservadores e progressistas, o coronelismo, Nestor Duarte, o conservadorismo e a direita nos dias atuais, Fernando Henrique Cardoso, populismo, até a formação do direito brasileiro no século XIX).
No último Encontro, o de 2021, abriu-se um diálogo com a teoria política decolonial/pós-colonial (pós-estruturalista), aqui podemos sublinhar a participação de Layla Carvalho da Unilab que vem se dedicando a investigar a relação direito, saúde e justiça reprodutiva da perspectiva feminista e racial e Muryatan Barbosa da UFABC que se dedica à história intelectual da África, o pan-africanismo, e que venceu em 2021, simplesmente, o Prémio Jabuti na categoria de ciências sociais (os dois são pessoas negras). No campo do marxismo especificamente, ainda que área de teoria política (o caso é distinto no pensamento político e social brasileiro dado o peso de nomes importantes de nossa tradição ensaísta) tenha certos distanciamentos, os gramscianos vêm contribuindo com esse tópico, nesse caso a professora de ciência política da UFRJ, Daniela Mussi, tem investigações relevantes.
E há muitos outros e outras que constituem (e constituíram ao longo da história da área) a teoria política e o pensamento político brasileiro nos anos recentes que poderiam ser citados e lembrados[5]. Além disso – os Encontros… marcam uma “nova” fase institucional e intelectual da área; de maior reputação, conquista de respeitabilidade, prestígio acadêmico, autocompreensão disciplinar (os problemas, as virtudes epistemológicas, limites compreensivos da própria política em-si, métodos de investigação, temas e agendas de pesquisa), autoestima e reconhecimento no campo das ciências sociais.
De 2010 a 2022: o que mudou para teoria política e o pensamento político brasileiro
E quanto aos desafios políticos enquanto tais? Houve mudanças na última década de modo a fazer com que a teoria política e o pensamento político brasileiro possam vislumbrar outros registros gerais de interpretação da política e da política brasileira? Quando Cicero Araújo e San Romanelli escreveram o já clássico artigo sobre a teoria política entre nós, “Teoria Política no Brasil Hoje”, para o volume Ciência Política – Horizontes das Ciências Sociais no Brasil (coord. geral Carlos Benedito Martins/coord. de área Renato Lessa, ed. ANPOCS/Discurso Editorial/Barcarolla) em 2010, o mundo estava atravessando um relativo interregno. Era 2010 – e estávamos buscando compreender as consequências políticas da crise do sistema capitalista que explodiu em 2008 nos Estados Unidos e se alastrou pela Europa, chegando às primaveras árabes.
Naquele momento preciso, os dias do “liberalismo político renovado”, que ganhou expressão na obra de John Rawls, e da segunda geração da Teoria Crítica da sociedade, “sintetizada na obra de Jürgen Habermas”, estabeleciam os eixos variados constitutivos da teoria política entre nós. O esforço de compreender, aperfeiçoar e avançar a democracia organizava em linhas gerais os arranjos substantivos, epistemológicos e cognitivos da teoria política a partir dos dois eventos (Rawls e Habermas). Havia um certo universalismo ponderado em “Teoria Política no Brasil Hoje”. Mas as coordenadas da história mundial alteraram-se profundamente; aqui a crise de 2008 demonstrava seus traços mais bem delineados.
Assim, com o esgotamento das democracias liberais-representativas, o enfraquecimento do discurso teórico ancorado nas virtudes da sociedade civil, a desesperança com importância decisiva dos partidos políticos como agentes, dos desencantos com os predicados da participação-deliberação como controle (adicional) do jogo eleitoral e a desconfiança das políticas do consenso, do consentimento, da razão pública – a teoria política (e o pensamento político brasileiro), mas, sobretudo o primeiro iria ser impactado. (Vale dizer – os materiais de interpretação da teoria política tinham, e têm, se alterado profunda e drasticamente.)
Não é possível no espaço dessa intervenção pontual e contingente detalhar as transformações políticas, sociais, culturais e das ideias desde que o Leman Brothers, o Morgan Stanley, o JP Morgan Chase, Golden Sachs e o Merril Lynch anunciaram a crise da ordem econômica mundial vigente. Entretanto, parte das implicações desse cenário irrompeu com a Primavera Árabe, as revoltas na Grécia, o Occupy Wall Street, Black Lives Matter, os Indignados na Espanha e as jornadas de junho de 2013 no Brasil. A resposta a essas “sublevações” (moleculares como sustentam Rodrigo Nunes e Vladimir Safatle[6]) foram duas: a primeira configurou-se no que Susan Watkins[7] (New Left Review) nomeou de novas sociais democracias; e a segunda, a trágica ascensão da direita intransigente por todo o mundo. Trump e Erdogan, Duterte e Boris Johnson, Orban e Jair Bolsonaro, Marie Le Pen e Macri, Mateo Salvini e Sebastian Pinera acompanhados pelas elites e os grupos financeiros que os apoiam e sustentam – os dois registros histórico-políticos passaram a dar as coordenadas da política pelo fim da primeira década e inícios da segunda do século XX.[8]
Assim, os primeiros movimentos de “mudanças” conteudísticas, por assim dizer, na área de teoria política entre nós afloraram. Temas sepultados; conceitos tidos como irrelevantes; autores “ultrapassados”; ideias já inusuais tornaram a serem revistas e trazidas para o debate e agendas de pesquisa. Mas, sobretudo, ideias novas, autores e autoras solapados pelas “convenções” e modelos consagrados e arranjos epistemológicos plurais adviriam à teoria política e ao pensamento político brasileiro.
Três exemplos precípuos disso são: no plano de estudo de autores e autoras a descoberta ou redescoberta das escritoras e revolucionárias Mary Wollstonecraft e Olympe de Gouges (por Eunice Ostrensky, professora de teoria política moderna no departamento de ciência política da USP e Roberta Nicolete do departamento das ciências sociais da UERJ) e que repercute as exigências do tempo presente em pensar o (grupo) feminino na teoria política; no que concerne ao plano epistemológico-disciplinar por assim dizer, iniciamos o debate com a teoria política pós-colonial, decolonial e pós-estruturalista, aqui o artigo de Luciana Ballestrin, “América Latina e o Giro Decolonial” publicado na Revista Brasileira de Ciência Política é indicativo de certas mudanças (e no próximo encontro, o quinto, a ocorrer entre os dias 6,7 e 8 de julho próximo no IESP-UERJ, teremos um grupo de trabalho específico sobre pós-colonialismo, descolonialidade e pós-estruturalismo); e no âmbito do pensamento político brasileiro combinado com a pesquisa a partir de temas, os estudos sobre o fascismo nacional expressado no pensamento católico dos anos 1930 e a investigação sobre o conceito de teoria da dependência vis-à-vis a Escola Sociológica Paulista, respectivamente de Paulo Cassimiro (ciência política-UERJ) e Leonardo Belinelli (ciência política-USP/CEDEC). Importa nesse contexto atentar para os avanços na linha de estudos sobre raça e política – a ponto de se constituir uma nova área temática encontros da ABCP-Associação Brasileira de Ciência Política. É a própria realidade política e social do mundo após 2008 e do Brasil após junho de 2013 com a ascensão da direita intransigente, que teve seu ápice na eleição do governo de Jair Bolsonaro-Paulo Guedes-Hamilton Mourão e seu projeto de devastação do país (objetivando adequar a sociedade brasileira, ou o que sobrar dela, no regime de acumulação de capital do neoliberalismo atualmente), que repercute na área – é algo inequívoco para uma modalidade de estudo das coisas humanas tão sensível e crítica como o são a teoria política[9] e pensamento brasileiro.[10] É nossa vocação, como disse certa vez Sheldon Wolin,[11] sermos afetados, ao contrário do que dizem muitos, pela materialidade da existência dos indivíduos e pelos momentos mais intensos da contingência política, social e cultural.
Com essa história, reconstruída ligeira e imprecisamente, do passado, do presente e do horizonte que se abre, quais são os desafios da teoria política e pensamento político brasileiro? Sugiro algumas em caráter tópico. A rigor: (1) é preciso pensar estrategicamente os modos de financiamento da área (que malgrado os avanços descritos há pouco, ainda atravessa pontos nebulosos de localização intradepartamental) em um momento de restrição orçamentária do Estado brasileiro, particularmente para a educação e para a pesquisa nas humanidades; (2) a consolidação efetiva e “consistente” dos Encontros, aqui os passos a serem dados são mais curtos, pois já estamos no 5º Encontro tendo em vista todas as dificuldades do período de pandemia; (3) a combinação de pluralização-diversificação epistêmica e grupal, é certo que a área de teoria política e pensamento político brasileiro, diferente das outras áreas da ciência política, no último período foi e está sendo muito sensível nesse aspecto e respondendo institucionalmente ao espírito do tempo [zeitgeist], mais avanços, no entanto, podem ser feitos com a entrada nas universidades públicas de novos e novas – não tão novos assim – personagens, fica a questão de como romper o muro da fusão entre a busca angustiante da autocompreensão subjetiva, investigação científica e a tendência ao impulso de intervenção política e social; (4) os temas e objetos de pesquisa e investigação têm de pautar-se pelo equilíbrio, ponderação e razoabilidade, não podemos por um lado, entender a área como exclusivamente a leitura erudita dos cânones, bem como pelo normativismo e crítica (teoria crítica) ingênuos, por outro lado, a ampliação dos objetos com uma teoria política mais “aplicada”, que concentre-se nos problemas, que orienta o olhar para o empírico, que seja modelos (práticos) para políticas públicas não deve soterrar nossa disposição intelectual, predestinação no sentido weberiano; (5) a relação com outras disciplinas das ciências humanas (antropologia e filosofia política, crítica literária e sociologia, teoria social e psicanálise, economia e história, direito e artes plásticas) tanto do ponto de vista do debate teórico propriamente dito como do ponto de vista dos laços programático-institucionais; (6) no contexto político de crise da sociedade brasileira qual o papel do teórico político e da teórica política e dos e das que pensam o pensamento político brasileiro? Por outras palavras qual nosso estatuto intelectual e público? Temos que ser premidos por isso ou não?
De minha parte acredito que a teoria política e o pensamento político brasileiro podem, nos termos de Wendy Brown, fazer questões não feitas e provocar a imaginação política e social.) E por fim; 7) nossa relação com as outras áreas que constituem a disciplina de ciência política sempre apresenta inconvenientes, temos de melhorá-la. Que venham os próximos anos, desafios e Encontros…
*Ronaldo Tadeu de Souza é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.
Notas
[1] Nomes importantes e decisivos estiveram na construção da ciência política brasileiro: Francisco Weffort, Maria do Carmo Campello, Argelina Figueiredo, Lucia Avelar, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Maria Teresa Sadek, José Álvaro Moises, Charles Pessanha, Gláucio Soares.
[2] Neste aspecto e com os devidos cuidados quatro nomes são importantes: Marcelo Jasmin, Cícero Araujo, Álvaro de Vita e Gildo Marçal Brandão (com o projeto temático linhagens do pensamento político brasileiro no âmbito do Cedec). E em um momento mais distante é possível lembrar os nomes de Celia Galvão Quirino e Oliveiros Ferreira e respectivamente seus estudos sobre Tocqueville e Gramsci.
[3] Ver Bolívar Lamounier – Redemocratização e Estudo das Instituições Políticas no Brasil. Sérgio Miceli (Org.) Temas e Problemas da Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo/Rio de Janeiro. Sumaré/Fapesp/Fundação Ford
[4] Bolívar Lamounier e Wanderley Guilherme dos Santos sugeririam que a tradição do ensaísmo dos anos 1920 e 1930 foram importantes para a conformação da disciplina de ciência política entre nós.
[5] Nesse aspecto importa salientar, que em termos institucionais e de localização o centro irradiador da “nova” fase da teoria política e pensamento político brasileiro é o IESP-UERJ no Rio de janeiro; seguido pelo departamento de ciências sociais da UNIFESP, o departamento de ciência política da USP, o ambos em São Paulo, além do departamento de ciência política da UFRJ, também no Rio de Janeiro.
[6] Ver Rodrigo Nunes – Dez anos depois, vírus do Occupy Wall Street segue em mutação explosiva, Folha de São Paulo/Ilustríssima, 17/09/2021 e Vladimir Safatle – A dinâmica do levante popular, A Terra é Redonda [https://aterraeredonda.com.br/a-dinamica-do-levante-popular/].
[7] Ver Susan Watkins – Nuevas Oposiciones, New Left Review, nº 98, 2016.
[8] Há uma literatura vasta sobre isso. Seria exaustivo apresentá-la aqui. Indico apenas para o leitor interessado os trabalhos de Susan Watkins e Wolfgang Streeck nas páginas da New Left Review.
[9] No caso específico da teoria política herdamos a tradição que remonta os dias do Aristóteles da Ética a Nicômaco e a teorização acerca da razão prática no âmbito do contingente.
[10] O pensamento político e social brasileiro neste aspecto ecoa o incomodo histórico e político do que Antonio Candido chamou de classe media radical, que teve seus inícios com a posição de Joaquim Nabuco e a luta abolicionista. Sobre o pensamento político brasileiro especificamente o leitor interessado pode ler aqui pelo a Terra é Redondo o artigo de Bernardo Ricupero – Desafios Atuais do Pensamento Político Brasileiro [https://aterraeredonda.com.br/desafios-atuais-do-pensamento-politico-brasileiro/].
[11] Ver Sheldon Wolin – Political Theory as a Vocation. The American Political Science Review, v. 63, nº 4, 1969.