Por LUIZ RENATO MARTINS*
Considerações sobre o filme clássico de Federico Fellini
Ironia intrínseca
Uma constante estilística que se pode observar em vários níveis da obra de Federico Fellini (1920-93) é a relação entre signo e referente apresentada não como correspondência orgânica, consensual ou pacífica, e sim ao modo de oposição. Em geral os títulos originais dos filmes não fogem a essa tensão interna. A ironia é intrínseca à obra, estruturada à base de antíteses, inversões, negações ou contrapontos variados. Desse modo, os títulos denotam com frequência uma relação cortante, distanciada e negativa ante o objeto de referência: a temática aludida ou a própria obra em questão.
A começar por Luci del Varietà (1950, “Mulheres e Luzes”), que mostra o revés sombrio da magia do palco das variedades. La Dolce Vita (1960, “A Doce Vida”) – título muito discutido – parece aludir aos prazeres dos costumes flexíveis e de consumo supérfluo ou suntuário, franqueados pelo boom econômico na Itália dos anos 1950. Porém, à luz da ironia e ao cabo revela-se o estado de cisão de si; vale dizer, o sentimento da amargura e perda de si ou, enfim, da alienação como travo próprio à vida urbana e moderna na Itália fruto do miracolo (econômico).
Outro título muito aludido, mas pouco entendido, 8 ½ (1963, 8 ½) – que designa o número de filmes então dirigidos por Fellini – denota, além da ironia, abstração de si e alienação. Ao destacar de pronto a quantificação que coisifica o processo de trabalho e suscita uma visão externa do produto, 8 ½ resume parodicamente numa cifra a totalidade das realizações do autor. Traz assim um nome oco, dissociado de qualquer elemento interno à narrativa – ao modo do preço ou valor suposto (sobreposto ao bem), para não falar do salário que, ao precificar o tempo, abstrai o esforço de trabalho convertendo-o em bem para uso de outro. Duvidamos assim de pronto dos aspectos de autenticidade e imediatez inerentes ao relato das confissões e devaneios do protagonista de 8 ½.
Tensões construtivas
Amarcord (1973, “Amarcord”) sucede I Clowns (1970, “Os Palhaços”) e Roma (1971, “Roma de Fellini”), e designa como estes uma nota recorrente, uma marca estandardizada pela mídia do estilo do autor. Em todos esses casos, a ironia é redobrada: opõe-se à obra que anuncia e ao modo corrente de recepção.[i] Desse modo, Amarcord, além de alvejar a ideia de recordação – quase um logotipo do Fellini tido correntemente como memorialista – delimita o movimento de introspecção referido, já que o apresenta e o objetiva. E ao mesmo tempo faz mais: propõe o enlace reflexivo, o diálogo em torno de representações que não são pessoais, mas sociais ou nacionais.
Com efeito, a frase do título (“eu me recordo”, em dialeto romagnolo) – ao invés de propor a introversão via uma “senha mágica”,[ii] uma cifra unilateral ou privada, como o termo “asanisimasa” (sussurrado pelo menino-Guido, em 8 ½); ou como o “rosebud”, de Kane, no filme de Welles (1915-85); ou, enfim, ao invés de funcionar ao modo da célebre madeleine, amálgama das vivências infantis da personagem de Proust (1871-1922) na Recherche (…) – “amarcord” designa uma ação em curso, sublinhada pelo tempo verbal no presente do indicativo. Em suma, “amarcord” põe o horizonte da atualidade como parâmetro comum e alerta para o regime próprio do que vai ser narrado. Logo, propõe a transformação de supostas vivências subjetivas em representações levadas a exame e debate do público.
Amarcord-título abre assim a interlocução e institui a exposição do passado em âmbito plural, para escrutínio coletivo. Desde aí, nada íntimo mas público, o foco narrativo do filme anuncia-se como dialógico. O que é reiterado logo na sequência inicial, rematada com uma imagem de Giudizio, o louco da cidadezinha, que encara a objetiva efetuando uma interpelação direta, análoga à da frase-título.[iii]
Na contramão da recepção
O preâmbulo de Amarcord contrapõe-se assim ao de 8 ½, que, após um título abstrato e impessoal, desfiava o pesadelo de Guido, desdobrado em várias seqüências. Lá, era preciso refletir de modo contraintuitivo e a contrapelo do curso inicial da narração, para se concluir (como o fez Roberto Schwarz[iv]) que o regime narrativo de 8 ½ era no geral distanciado e irônico, em vez de confessional ou subjetivo.
De fato, na época, a recepção do filme – ademais, impulsionada pelo favor então concedido às ideias de cinema de autor e de expressão pessoal difundidas pelo influente núcleo parisiense (Cahiers du Cinéma e da Nouvelle Vague) na órbita do novo cinema do pós-guerra – pendeu majoritariamente para a identificação da figura de Guido, com a de Fellini – que, após a avalanche de interpretações de 8 ½ como obra intimista, deplorou não ter sido mais incisivo no tratamento cômico da trama.[v]
Prevendo e prevenindo possível tendência subjetivizante da recepção, a orientação dialógica de Amarcord é pontuada no correr da narração por vários chamados ao público, de parte do avvocato, de Giudizio, do ambulante Biscein, etc. Mas não só intervenções orais explícitas de uma variedade de narradores complementares, quase ao modo de um Coro, balizam e reiteram a abertura dialógica da narrativa de Amarcord ao público. De fato, a idéia de um eu que se recorda, alegada pelo título, é paralelamente relativizada e negada, na estrutura, de múltiplos modos…
Assim, o foco narrativo nunca atribui às cenas sentido imediato. Antes, elabora um afresco ou mural da vida provinciana, no qual as figuras são identificadas esquemática e repetitivamente pela seleção dos seus traços sócio-culturais, que destacam seu grau hierárquico e apresentam um amálgama de trajes e trejeitos. Resultam estereótipos ante os quais o espectador é levado a diferenciar-se.
A estilização das personagens na narrativa de 8 ½, segundo artifícios de histórias em quadrinhos, foi destacada por Gilda de Mello e Souza (1919-2005).[vi] Italo Calvino (1923-1985) atribuiu tal parentesco a toda a obra de Fellini e apontou o seu teor agressivo e popular.[vii] De fato, tais aspectos salientam-se em Amarcord. É como se tudo e todos fossem vistos do exterior, sumarizados segundo seus interesses e, com evidente sarcasmo. Tem-se só caricaturas. Por que?
O ponto de vista da massa
Walter Benjamin (1892-1940) classificou a caricatura como arte de massa.[viii] Assinalou sua oposição, como fato estético, à valoração do belo, que é fruto de um juízo puro ou desinteressado, exclusivamente contemplativo – o qual é posto desse modo na estética do sujeito transcendental, segundo Kant (1724-1804), como uma das formas de mediação entre o sensível e o suprassensível. Pelo contrário, a caricatura opta quase sempre pelo grotesco e se põe como linguagem de fundo imanente; denota um juízo simplificador e agressivo, contraposto ao poder e à fama. Nesses termos supõe e gera um contexto conflituoso.
A aplicação de tais procedimentos reduz o valor de face das figuras de Amarcord; não favorece a identificação projetiva do público com as personagens, mas induz ao estranhamento ou à distância ante a forma visual. E leva o olhar a efetuar um exame empírico que distingue a diversidade dos traços sociais. Desse modo constitui-se um enfoque, ao invés de subjetivo, coletivo, fator de objetivação e em contraponto crítico às figuras.
O passado em formação (permanente) no presente
Não só na figuração do humano impõe-se a perspectiva de massa, em Amarcord, mas também no tratamento da cenografia e da imagem, que mimetiza técnicas reprodutivas gráficas ao modo dos desenhos animados. Nota-se o emprego de cores fortes, uma iluminação pouco nuançada, o achatamento dos ambientes, ao lado da demarcação da psique rasa das personagens. Mas por que procedimentos tão esquemáticos? Que ideia do passado acha-se aí embutida?
Se a forma ostenta a marca atual na configuração do passado, é que a atualização prepondera no ato de recordar sobre a ideia mítica do resgate intemporal de vivências – que valia em 8 ½, para Guido, e estava no foco da Recherche… de Proust.[ix] No caso de Amarcord, observam-se, em síntese, tensão e heterogeneidade entre conteúdo e forma da recordação; a marca do condicionamento atual e a forma resultante prevalecem sobre o conteúdo da memória. Logo, os temas mnêmicos não trazem valor em si ou moto próprio: é no âmbito da recepção, que o sentido irá se configurar.
Como explicar o primado do presente na formação do passado e em quê a ideia de memória, em Amarcord, afasta-se daquela de 8 ½? No filme de 1963, o conflito entre as séries temporais dava-se na alma de Guido – contrapunha-se ao ideal de unidade do eu – e tendia a sujeitar o presente ao passado. Enquanto em Amarcord, realizado cerca de dez anos depois, a possível premissa (nunca do autor, mas do espectador desavisado) de um monólogo interior cede lugar à reelaboração coletiva dos conteúdos mnêmicos. Enfim, a disputa de avaliações entre presente e passado em Amarcord trava-se no âmbito dialógico da linguagem, perde imediatez e é objetivada historicamente.
Desse modo, o conteúdo arcaico das experiências no vilarejo, de raízes remotas sublinhadas pelo avvocato (um dos narradores complementares), tem seu sentido de origem modificado pela nova forma sumária e irônica das imagens mnêmicas; o público de Amarcord, contagiado pelo vigor atual do traçado que prefere a caricatura, distancia-se das vivências arcaicas pontuadas com senso teatral pelo avvocato (a despeito da irrupção de estrepitosas pernàcchie, desferidas por um anônimo atrás das janelas). Em suma, a cisão das épocas avulta; em curso, uma crítica histórica.
Contrastes entre Amarcord e 8 ½
Logo, enquanto os temores e as limitações individuais de toda espécie agigantavam-se em 8 ½ à luz da subjetividade de Guido – já, em Amarcord, ao invés, esses fantasmas sofrem, por sua vez, redução e classificação mediante um conjunto de fatores que operam como práticas de protocolos laboratoriais: a opção de caricaturar que induz à objetivação; o reposicionamento da representação mnêmica à distância de si pela inversão ou pertença à perspectiva democrática antifascista – crítica ante os valores rememorados – e outros adiante comentados.
A tônica objetiva e sarcástica da narrativa de Amarcord revela-se, nas cenas escolares, na apresentação detalhada dos professores e colegas de Titta e ainda pelo recurso desta ao humor cru, típico dos ambientes coletivos. Inversamente, em 8 ½, os vultos dos colegas mal se notavam, sob as imagens fortes e comoventes dos fantasmas infantis. Lá, tudo salientava uma verdade imediata, íntima e irradiadora, que transcendia cada evento como índice maior da existência singular, idiossincrática e supracircunstancial, de Guido. Logo, os mundos do menino-Guido e do cineasta-Guido (personagem) espelhavam-se. A lei oculta de tal semelhança era a cifra do roteiro em esboço por Guido, embora contestado por outros, a começar pelo severo e erudito colaborador crítico que atormentava o cineasta, dado à introspecção e ao devaneio como privilégios e faculdades autorais. De fato, criação, realização e descoberta de si conjugavam-se no ideário produtivo do cineasta-Guido. O que não impedia que a obra de Fellini propusesse outra posição – irônica – ante a indecisão contumaz e o credo ensimesmado do protagonista.
O contraste entre os dois filmes na reconstrução das cenas de família é análogo. Em 8 ½, a atmosfera íntima e grave das relações familiares dotava-as de um sentido transcendente que impregnava os dilemas atuais do protagonista. Já em Amarcord a distância e a ironia delimitam as questões de família. Os genitores ostentam comportamento histriônico, próprio ao circo ou ao teatro popular. O recorte visual de tais cenas sugere um cenário de teatro e supõe o corte entre palco e plateia. Resulta uma representação esquemática, deliberadamente genérica ante o cotidiano do período em questão.
O contraste entre as cenas de confissão dos dois filmes é de mesma ordem. Demonstra que as premissas unificadoras, de imediatez e transparência – ou valor originário da subjetividade –, professadas pelo protagonista de 8 ½, cedem, em Amarcord, a uma redefinição da relação a si ou da memória pessoal, nos termos da alteridade intersubjetiva e segundo condicionantes históricos e gerais.
Assim as figuras femininas, em Amarcord, surgem da memória, não de modo íntimo e imediato, mas sim intermediadas, tal como vistas pelo grupo de adolescentes. Logo, longe de configurarem uma representação inaugural, carregada e fantástica, do erotismo, como a Saraghina, na infância de Guido, as formas eróticas, de Amarcord, refletem valores de grupo e da época.
Por conseguinte, enquanto produtos circunstanciados tais formas trazem, todas elas, sua sensualidade vinculada a qualidades psicossociais e as marcas históricas nítidas. Constam desse elenco ou catálogo semântico da “feminilidade” (da perspectiva dos escolares em iniciação), desde o mármore alegórico, incluindo um nu neoclássico, em homenagem à vitória, às figuras femininas mais emblemáticas no vilarejo, vistas (pelos adolescentes) como alegorias variadas do mito, distinguidas conjugadamente às suas atividades (a manicura Gradisca; Volpina, duplo feminino e deambulatório de Giudizio; as camponesas, a professora de álgebra, a comerciante de produtos de tabaco etc.) Enfim, de tão esquemáticas, como estereótipos de padrões biotipológicos e comportamentais, pode-se dizer delas que aparecem, nos “recitativos” à moda da turma de Titta, como contrapartidas satíricas das alegorias das artes e ofícios que ornamentavam, com clichês neoclássicos a gosto do século XIX, esquinas, ângulos e fachadas dos prédios e logradouros públicos.
Em resumo, em Amarcord, os produtos da memória mostram-se “dessubjetivados” ou sem imediatez e sob ironia. O efeito subjetivo de plenitude ou de reencontro de si da reminiscência proustiana, que fascinava o protagonista idiossincrático de 8 ½, evidentemente não influi aqui. O corte com o passado é constitutivo; a “memória involuntária”[x] – com função fundamental no roteiro de Guido – não tem lugar em Amarcord, visto que cabe à “memória da inteligência”, “voluntária” ou interessada – exercitada no jogo dialógico com o ponto de vista do outro –, realizar a seleção dos alvos segundo sua significação geral, ou seja, ao modo da prática crítica e metódica do historiador.
De acordo com tal paradigma, a comicidade em Amarcord do quadro da confissão, em meio de afazeres e interesses prosaicos do sacerdote, deriva do ponto de vista contrassubjetivo que ordena a narrativa. Assim, enquanto em 8 ½ a confissão compulsória do menino era redimida na forma também confessional do roteiro, esboçado por Guido, já em Amarcord ela é só exemplo de um código normativo e, por cima, parodiado, que constitui então uma forma esvaziada. Também nos moldes prosaicos do anedotário infanto-juvenil, a comicidade da cena de onanismo coletivo no calhambeque estacionado no cenário arcaico e rural do celeiro, evoca e parodia a mímica de Chaplin (1889-1977) da fragmentação repetitiva dos gestos para o trabalho fabril (e febril), que originalmente tinha sentido lírico, no ambiente industrial estilizado de modo um tanto futurista de Modern Times (1936).
A objetividade crítica, histórica e política de Amarcord
Em síntese, a premissa da espontaneidade natural do indivíduo – antes, com função central na obra de Fellini como contraponto crítico à hegemonia do paradigma neorrealista no período do pós-guerra –, ao invés, em Amarcord, submete-se ao processo de revisão geral da cultura italiana tardiamente rural, clerical e patriarcal, tendo em mira determinar as raízes do fascismo. Na subsunção ao coletivo, Amarcord comprova-se uma obra visceralmente política, conforme salientado por Fellini.[xi]
Enfim, Amarcord está longe de operar como um desdobramento, dez anos depois, do roteiro monologado e intimista de Guido. Observa‑se, agora, um retrato do cotidiano no fascismo, focado no exame satírico da formação da subjetividade que padece a modernização, entre acelerada e tardia, inerente à dependência.
Logo, se Amarcord apresenta alguma continuidade efetiva com 8 ½, esta consiste principalmente no prolongamento do ponto de vista sóbrio, irônico e reflexivo; quer dizer, trocando em miúdos, no desdobramento potenciado da decisão, de 8 ½, de inscrever um modelo simulado de autobiografia encenada num “filme de autor”, como objeto de ironia, para explicitar, em contrapartida, uma possibilidade oposta, crítica e dialógica, de recepção – como, aliás, notou agudamente Schwarz em leitura precursora e à contracorrente – acerca de 8 ½, como história crítica e dialética de um capítulo de modernização tardia.
Amarcord constitui, em síntese, um vigoroso movimento de negação e diferenciação do passado, em que a memória não restaura figuras perdidas ou formas originárias, mas apresenta objetos de ironia ante os quais a crítica psicossocial, política e histórica, modulada pelo diálogo com o público, constrói a perspectiva da pluralidade própria à dialética antitética da democracia, que revisa criticamente, com espírito etiológico, o regime totalitário pregresso.
Em tal processo, a revisão do passado implica também a reinterpretação do presente. Logo, a investigação da origem do fascismo, conforme Amarcord, implica o exame simultâneo de outras duas colunas mestras do regime, que, mesmo após a queda militar do regime, continuaram de pé e a irradiar ativamente práticas e modelos pró-fascistas na vida social: a família patriarcal e a cultura de massa – desta última, por sinal, o cinema do regime opera como o protótipo essencial. Persistem, pois, fatores e bases, aponta Amarcord, mediantes os quais um híbrido pode se erguer. Como impedir?
Pulo do gato: fascismo vernáculo
Amarcord inova e surpreende no exame do fascismo ao mostrá-lo em sua dimensão vernacular e original, independente do nazismo. Nas obras do pós-guerra, de Rossellini (1906-1977)[xii] e do cinema italiano de modo geral, o fascismo surgia entremeado quase filialmente ao nazismo; em resumo, praticamente como um intruso, sem raízes locais.
A visão da Itália ocupada e do momento bélico do fascismo – de fato, a mais corrente nas telas – favorece a percepção do fascismo como derivação do nazismo, pois era notória a dependência militar do primeiro ante o segundo; de fato, cristalizou-se a relação de dependência política do fascismo ante o nazismo, escorada na militar, no período da república-fantoche de Salò (23.09.1943 – 29.04.1945) Porém, esquece-se assim não só a incômoda questão da gênese do fascismo, efetivamente italiana, como sua originalidade na criação de modelos políticos e de psicologia de massa que antecederam em mais de uma década ao nazismo e ao franquismo.[xiii]
Nesse sentido, em Roma (1971), um trecho, extraído por Fellini do jornal cinematográfico fascista Luce, apresentara o fascismo como fenômeno de autenticidade comparável à do “pão e do queijo italianos”. Amarcord vem aprofundar a caracterização do fascismo vernáculo, bem como também intensifica o exame de sua relação orgânica com o cinema.
Assim, Amarcord apresenta e disseca o Patacca (Lallo), tio de Titta, como um fascista de marca. Este e os amigos são parte da categoria dos vitelloni, formada por jovens ociosos e imaturos de classe média, que moram com a família e foram tantas vezes perscrutados pelas lentes de Fellini, inclusive em Amarcord, que sublinha os laços da turma do Patacca com o fascismo.
Ao salientar os elos desse grupo social com o fascismo, Amarcord deflagra outro movimento crítico-reflexivo: leva ao reexame de obras precedentes do autor, como I Vitelloni (1953), e vem recarregá-las de sentido político, como observações prévias das bases sociais do fascismo.
O Patacca é caracterizado como um tipo comum e que, sabe-se bem, sobreviverá ao regime (como os vitelloni, de resto) Sua adesão ao fascismo segue também o padrão geral. Na cidade, segundo é anunciado na cena do desfile, 99% da população estava inscrita no Partido. Exceção notória só o Sr. Aurélio, trabalhador da construção civil, mestre de obras e homem de esquerda, delatado pelo seu cunhado Lallo (o Patacca), por conta da instalação do gramofone no campanário a soar a L’Internationale (1871), estragando a festa fascista.
A normalização do fascismo assim encaminhada, longe de comportar condescendência, é estratégica e combativa; implica uma crítica aguda das matrizes socioculturais do fascismo.[xiv] Pois a questão das origens do fenômeno traz também a da sua persistência, bem como a do seu retorno ao governo italiano. E, se a gravidade do problema não era evidente à ocasião do lançamento de Amarcord, no início de 1974 – quando o PCI parecia a muitos rumar para a hegemonia –, a questão acentuou-se, vinte anos depois [1994], com o triunfo eleitoral do fascismo associado a Berlusconi (n. 1936) [sem falar da ascensão, na esteira deste, das variantes posteriores, G. Fini (n. 1952), M. Salvini (n. 1973) etc.].
Fisiologia e psicogênese do fascismo
Foram escassas as referências diretas ao fascismo na obra de Fellini ao longo dos anos 1950 e 1960; quando ocorreram, vinham de modo breve e alusivo, compondo traços de personagens e ambientes. Porém, a partir de I Clowns (1970) e Roma (1971), a questão do fascismo assoma ao primeiro plano da análise psicossocial e comportamental por Fellini dos condicionantes da modernização italiana.
Distingue-se então o cunho próprio da sua estratégia crítica. Esta renova notavelmente o enfoque da ação totalitária do fascismo na vida coletiva: detecta-o à flor da pele, como padrão patológico de raízes domésticas, projetado no coletivo. A começar pelo exibicionismo inerente ao narcisismo, vários signos demarcam tal extração: os trejeitos infantis no desfile; a reiteração dos comportamentos caprichosos e vaidosos; a paixão pela indumentária, pela coreografia e pela simetria ou de modo geral pelas formas espelhadas; a carência histérica dos líderes; o apelo escatológico traduzido na tortura mediante a ingestão de laxativo, etc.
Nesses termos, o fascismo põe-se como discurso articulado à infância, segundo Fellini, em dois graus: quanto à origem, como histeria ou retórica própria ao estado infantil e também, quanto à finalidade, como conjunto de técnicas associadas organicamente ao adestramento escolar. Desse modo, se extravasa e alcança aplicação social, é porque o todo social reproduz extensamente um estado atávico de menoridade ou de infantilismo. Pondo-se como pedagogia de matrizes e parâmetros infantis, o fascismo exige a subsunção da heterogeneidade social e política, naturalmente conflituosa, pela linguagem organicista e homogeneizante do horizonte doméstico.
O amor de exibição, inerente à infância, obtém a sua realização social na monumentalidade cênica e coreográfica. Logo, além da infantilidade, a espetaculosidade é o outro lado do fascismo, ressaltado por Amarcord. Nas intervenções de massa, o fascismo agiganta-se sobre a cidade mediante cenografias imensas, que incutem o culto do grandioso inerente à fantasmagoria patriarcal, duplo invertido do infantilismo.
Portanto, a equiparação do estúdio ao mundo, tão decantada como mania de Fellini, longe de traço estilístico ou autoral, mira, sim, o cerne da estratégia fascista. É parte de um programa estético crítico que caricatura e desconstrói o império do espetáculo pelo qual, como se sabe segundo Benjamin, a massa “tem a ilusão de expressar a sua ‘natureza’, mas certamente não os seus direitos”[xv] – aliás, como o Ciccio que imagina a união com Aldina, seu ideal amoroso, sendo celebrada por uma mescla cenográfica de Duce e sumo pontífice.
Fascismo e cinema: verso e reverso
A coincidência do espetaculoso e do infantil na caracterização do fascismo evidencia a correlação entre o cinema e o fascismo. De fato, Cinecittà foi uma criação do regime, concebida à imagem de Hollywood e sob a liderança de Vittorio Mussolini (1916-1997), filho do ditador.[xvi] Inaugurada em abril de 1937 pelo próprio Duce (como se fazia intitular), Cineccittà produziu, até a queda do fascismo (25.07.1943), duzentos e setenta e nove filmes, quase quatro por mês.
O mundo do cinema integrava o núcleo do regime e vários membros da família Mussolini voltaram-se para atividades na área; muitas divas foram amantes dos hierarcas fascistas e vários cineastas trabalharam para Vittorio Mussolini. Rossellini foi roteirista do primeiro filme deste, Luciano Serra Pilota (1938), girado na Etiópia, e tornou-se a seguir autor patrocinado e premiado (mais de uma vez), pelo regime. Antonioni (1912-2007) e Fellini também se iniciaram no cinema nessa época, em atividades secundárias.[xvii]
Portanto, destacar a associação entre o cinema italiano e o fascismo é levantar um tema, no mínimo, incômodo. Além de corajosa, a abordagem por Amarcord, Roma e I Clowns dessa problemática é plena de consequências; em resumo:
(1) propicia a delimitação efetiva do estatuto e dos elementos da linguagem cinematográfica, pois, a visada crítica (na acepção de autolimitação) de Fellini – ao contrário daquela dos neorrealistas – não se apressou em encenar e instaurar representações cinematográficas, que substituíssem os horrores da guerra – deixando, por conseguinte, que estes restassem em sua própria e ímpar feição, para o devido exame histórico; (2) propõe uma revisão radical da cultura de massa e da sua história na Itália, à luz da reciprocidade desta com o fascismo; exame cuja urgência evidencia-se na colusão crescente – através de Berlusconi e similares – do Estado com a comunicação de massa;[xviii] (3) obtém uma análise inovadora do fascismo, que detecta a persistência e a reprodução de processos genéticos (derivados da família patriarcal, da cultura de massa, do culto imagético etc.) em pleno vigor; (4) na oposição ao fascismo, mediante a crítica ao primado da memória unívoca, monológica ou mítica – para a qual Cinecittà contribuiu ativamente –, Amarcord elabora e explicita um paradigma oposto (na esteira da narrativa pseudopessoal de Roma, o filme precedente): aquele da narrativa democrática, estruturada dialogicamente.
*Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP). Autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Haymarket/ HMBS).
Primeira parte da versão modificada do artigo publicado em Carlos Augusto Calil (org.). Fellini Visionário: A Doce Vida, 8 ½, Amarcord. Companhia das Letras,1994.
Notas
[i] Em I Clowns (1970), os palhaços – tidos de modo geral, a partir de 8 ½, como índices líricos alusivos à inocência e à infância – são mostrados como seres à míngua, às voltas com a solidão e a velhice. De modo análogo, em Roma (1971), ao invés da visão da cidade como ateliê ou cenário essencial de Fellini, como era em geral compreendida após La Dolce Vita, o que se tem é a desconstrução da perspectiva autoral ou subjetiva, em suma, o estilo do autor visto do avesso, como um vazio. Ver a respeito L. R. Martins, “A Prática do Espectador”, in Conflito e Interpretação em Fellini/ Construção da Perspectiva do Público, São Paulo, Edusp/ Istituto Italiano di Cultura di San Paolo, 1994, pp. 25-50. Ou idem, “A Atividade do Espectador”, in Adauto Novaes (org.), O Olhar, São Paulo, Cia das Letras, 1988, pp. 385-97.
[ii] Para a aguda interpretação de asanisimasa – como cifra secreta de anima e senha de acesso a uma ordem intemporal – e a sua aproximação com o rosebud, de Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, ver Gilda de Mello e Souza, “O Salto Mortal de Fellini”, in idem, Exercícios de Leitura, São Paulo, Duas Cidades, 1980.
[iii] Fellini cogitou primeiro denominar o filme de Viva l’Italia; depois, de Il Borgo. Sobre essas hipóteses e a preocupação maior em “diligentemente evitar uma leitura em chave autobiográfica do filme”, ver Federico Fellini, Fare un Film, Torino, Einaudi, 1980, pp. 155-56.
[iv] Ver Roberto Schwarz, “8 1/2 de Fellini: O Menino Perdido e a Indústria” (1964), publicado originalmente no “Suplemento Literário”, O Estado de S. Paulo; republicado em R. Schwarz, A Sereia e o Desconfiado: Ensaios Críticos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981, pp. 189-204.
[v] O artigo referido de Schwarz constituiu efetivamente uma exceção notável a essa tendência, e suscitou, inclusive, uma réplica como a de Bento Prado Jr., que insistiu, pelo contrário, na função memorialística ou confessional da narrativa em 8 ½. Ver B. Prado Jr., “A Sereia Desmistificada”, Alguns Ensaios, Max Limonad, 1985, p. 239. Para a contrariedade de Fellini com a interpretação intimista, ver L. R. Martins, Conflito …, op. cit. pp. 17-18, e nota 15, à p. 143.
[vi] Ver G. de Mello e Souza, “O Salto Mortal de Fellini”, op. cit..
[vii] Italo Calvino, “Autobiografia di uno spettatore”, in Federico Fellini, Quattro film, Torino, Einaudi, 1975, pp. XIX e XXII.
[viii] Ver Walter Benjamin, “L’oeuvre d’art à l’époque de sa reproduction mécanisée” (versão francesa) in idem Écrits Français, introduction et notices Jean-Maurice Monnoyer, Paris, Folio/Essais/Gallimard, 2003, pp. 214-17; trad. bras. [de uma outra versão]: A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (segunda versão alemã), apres., trad. e notas Francisco De Ambrosis Pinheiro Machado, Porto Alegre, Zouk, 2012 Paulo, Brasiliense, 1985, vol. I, pp. 109-16.
[ix] Ver a propósito a menção a um mito celta em Marcel Proust, A la Recherche du Temps Perdu, Paris, Gallimard, 1949, vol. I, pp. 64-65.
[x] Para o contraste entre as noções de memória “da inteligência” ou “voluntária” e, de outro lado, a de “memória involuntária”, ver Marcel Proust, op. cit., pp. 64-69. Para um contraponto entre Proust e Baudelaire, ver W. Benjamin, “Sur quelques thèmes baudelairiens”, trad. Maurice de Gandillac, revue par Rainer Rochlitz, in Oeuvres/ tome III, traduit de l´allemand par M. de Gandillac, R. Rochlitz et Pierre Rusch, Paris, Folio/Essais/Gallimard, 2001; pp. 329-45, 376-87; trad. bras.: “Sobre alguns temas em Baudelaire”, in Obras Escolhidas/ Charles Baudelaire: um Lírico no Auge do Capitalismo, trad. H. A. Batista, S. Paulo, Brasiliense, 1989, vol. III, pp. 103-113, 139.
[xi] “O condicionamento bufão, de teatralidade, de infantilismo, a sujeição a um poder fantoche, a um mito ridículo, é o próprio fulcro de Amarcord… Uma grande ignorância e uma grande confusão… Ainda hoje, o que me interessa mais é a maneira psicológica, emotiva de ser fascista: uma forma de bloqueio, algo como ficar preso à adolescência…” Cf. Federico Fellini, Un Regista a Cineccittà, Verona, Mondadori, 1988, p. 13. Ver também idem, Fare…, op. cit., pp. 154-155; Ornella Volta, “Fellini 1976” in Vv. Aa., Federico Fellini, org. Gilles et Michel Ciment, Paris, Dossier Positif-Rivages, Rivages, 1988, p. 94. (Publicado pela primeira vez em Positif, 181, Paris, 1976).
[xii] Por exemplo, Roma Città Aperta (1945) e Paisà (1946), de que Fellini inclusive participou como principal assistente do autor.
[xiii] Recorde-se que Mussolini, eleito deputado em 1921, foi convidado pelo rei para a chefia do governo no final de 1922; entrementes, os nazistas detinham, seis anos depois (1928), apenas 12 cadeiras no parlamento. De fato, apenas após a eleição em 1932 de 230 deputados nazistas, é que Hitler veio a se tornar chanceler (primeiro-ministro) em 29.01.1933. Outro índice indicativo da precedência e da ascendência do fascismo ante o nazismo é que a “marcha sobre Roma”, de outubro de 1922, que levou Mussolini ao governo, inspirou no ano seguinte em Munique o putsch fracassado de Hitler, que o levou à prisão onde ficou até dezembro de 1924. Por último, vale consultar um documento de época, escrito com a mordacidade e a agudez literária, para os detalhes, características de Trótski, então recém-exilado em Prinkipo, ilha próxima de Istambul. Firmado pelo autor em 10.06.1933, o texto traça vários paralelos que realçam a originalidade do fascismo e de Mussolini ante os alemães: “Desde o início, Mussolini tratou de modo mais consciente a matéria social, do que Hitler, que se sente mais próximo do misticismo policialesco de um Metternich qualquer do que da álgebra política de Maquiavel. Do ponto de vista intelectual, Mussolini é mais audacioso e cínico”. Por fim, o parágrafo conclui: “(…) a análise científica das relações de classe, destinada por seu autor a mobilizar o proletariado, permitiu a Mussolini, quando ele passou para o campo adversário, mobilizar as classes intermediárias contra o proletariado. Hitler realizou o mesmo trabalho, traduzindo na língua da mística alemã a metodologia do fascismo”. Cf. Léon Trotsky, “Qu’est-ce que le national-socialisme”, in idem, Comment Vaincre le Fascisme/ Écrits sur l’Allemagne 1930-1933, traduit du russe par Denis et Irène Paillard, Paris, Les Editions de la Passion, 1993, p. 227.
[xiv] “Deu-me prazer ler (…) que raramente o fascismo tinha sido representado com tanta verdade como no meu filme”. Cf. Federico Fellini, Fare…, op. cit., p. 153. Sobre a visão de Fellini acerca da persistência do fascismo na vida italiana, e a importância primordial disto em Amarcord, ver idem, ib., pp. 151‑157.
[xv] A passagem é conhecida mas vale recordá-la por inteiro pela sua contiguidade com a perspectiva analítica de Amarcord, penso eu: “O Estado totalitário busca organizar as massas proletarizadas recentemente constituídas, sem modificar as condições de propriedade que elas, as massas, tendem a abolir. Ele vê sua salvação no fato de permitir às massas a expressão de sua ‘natureza’, mas certamente não aquela dos seus direitos*. As massas tendem à transformação das condições de propriedade. O Estado totalitário procura dar uma expressão a essa tendência, porém resguardando as condições de propriedade. Noutros termos: o Estado totalitário leva necessariamente à estetização da vida política [grifos do autor] ». Cf. W. Benjamin, “L’oeuvre d’art…” [versão francesa], op. cit., pp. 217-28; trad. bras. [da segunda versão alemã]: « A obra de arte…. », op. cit., p. 117.
[xvi] Vittorio Mussolini planejou inclusive fundar, com Hal Roach, uma casa produtora ítalo-norte-americana, a RAM (Roach and Mussolini), e foi a Hollywood, em setembro de 1937, para tratar disso.
[xvii] Para mais detalhes, ver L. R. Martins, Conflito e…, op. cit., notas 35 e 36, pp. 68-70.
[xviii] O combate de Fellini a Berlusconi é antigo; inclui processos judiciais e comentários como: – “Não se deve falar dele (Berlusconi) numa atmosfera de salão. Berlusconi deveria ser convocado diante dos magistrados…”. Cf. Tatti Sanguinetti, “Fellini, intervista”, in Cahiers du Cinéma, n. 479/480, Paris, 1994, pp. 71-73 (publicado originalmente in Europeo, 05.12.1987).