Arroubo moral

Imagem: G. Cortez
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Por CARLOS TAUTZ*

O significado real da carta de Barra Torres

É profundamente contraditório – para dizer o mínimo – o suposto arroubo moral do almirante Barra Torres contra o capitão que ocupa o Palácio do Planalto. Afinal, mesmo tendo credenciais insuficientes para o posto, Barra Torres foi indicado em 2019, por esse mesmo ocupante do Palácio, a um dos mais importantes cargos no Estado brasileiro – a direção da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – em mais um passo para imprimir em todo órgão público a lógica militar de guerra permanente e preventiva.

O comportamento dúbio do almirante (que tem mandato até 31 de dezembro de 2024 e não pode ser demitido da Anvisa) ficou expresso no sábado (8 de janeiro) em uma inusual carta aberta. Dois dias antes, o capitão havia lançado em sua live semanal suspeitas sobre interesses não republicanos da Agência, ao liberar a vacinação de crianças de 5 a 11 contra a Covid-19.

Inusual a carta pública, ressalte-se, porque militares de cúpula (como Barra Torres) manifestam-se em conchavos e conspirações – e não de forma aberta e transparente.

E não menos importante, embora não evidente: o estrilar do almirante não visa apenas a responder ao ataque à sua honra pessoal. A 10 meses da eleição presidencial, a resposta aparentemente dura ao seu superior também expressa a atuação ambivalente da cúpula das forças armadas em relação ao seu fracassado projeto Bolsonaro.

Desde o início do mandato do capitão, a cúpula tem por estratégia emitir permanentemente sinais contraditórios em relação ao governo que planejaram, ajudaram a dar forma, integram e do qual se lambuzam em privilégios. É uma forma de estar dentro do governo, mas sem assumi-lo por inteiro.

Mas, como a popularidade de Bolsonaro diminui pesquisa após pesquisa, enquanto a de seu principal adversário (Lula) só mostra crescimentos, Barra Torres também precisou enviar sinais a um possível chefe futuro, mesmo que seja de oposição.

Assim, o ato de Barra Torres teve uma dimensão evidente e outra, subliminar.

 

A dimensão pública: defesa da honra

Se Barra Torres efetivamente estivesse comprometido com a saúde infantil, como tentou deixar implícito em sua carta aberta, o almirante deveria começar no órgão que preside um imediato processo para cassar o registro do glifosato, o agrotóxico mais utilizado no Brasil. Aprovado em parte pela Anvisa, em 2021 o glifosato foi uma das principais causas da morte de pelo menos 503 crianças, só nas mega lavouras de soja para exportação.

Mas, como essas enormes porções do território são exploradas pela base política e econômica de Bolsonaro, Barra Torres faz vistas grossas à essa tragédia, cujas informações já são públicas e acessíveis.

Elas constam, por exemplo, do estudo conduzido pelos pesquisadores Rodrigo Soares, Mateus Dias e Rudi Rocha. Tratando do assunto, a Folha de São Paulo observou (em 5 de maio de 2021) que “a disseminação do glifosato nas lavouras de soja levou a uma alta de 5% na mortalidade infantil em municípios do Sul e Centro-Oeste que recebem água de regiões sojicultoras”.

Em outras palavras: o glifosato – que já foi banido em mais de 20 países, incluindo Áustria e México, e que sairá de produção até 2023 na Alemanha – matou mais crianças do que aquelas 300 que foram assassinadas no ano passado pela criminosa política de não disponibilização de vacinas contra a Covid-19 para as brasileirinhas e brasileirinhos. Apesar da gravidade da situação, não há registro de qualquer manifestação de Barra Torres a respeito.

Essa contradição mostra que o militar que se indigna com o ataque à sua honra pessoal também se omite para diminuir o índice de crianças mortas no Brasil pelo glifosato – o mesmo produto que os estadunidenses usaram na guerra contra o Vietnã como desfolhante, uma arma química de destruição em massa, para assassinar milhares de camponeses.

A insensibilidade seletiva do almirante já era de se esperar. Afinal, a Anvisa que ele preside vem sendo transformada, com ênfase a partir do golpista Michel Temer, em casa de conveniências e tolerâncias com os interesses comerciais da indústria internacional dos agrotóxicos.

Junto com o Ministério da Agricultura, outro eixo do agrobolsonarismo, e o Ibama, a Anvisa integra o sistema de autorização e registro de agrotóxicos. Como consequência, os números de venenos autorizados nos últimos cinco anos não deixam dúvidas sobre a convergência entre os interesses do capitão com os projetos dos grupos sojicultores de capital transnacional.

O número de novas aprovações desses venenos disparou desde 2016, ano do golpe de Estado mais recente no Brasil.

Só em 2021 (contabilizado até o dia 2 de dezembro), a trinca tóxica (Anvisa, Ibama e Ministério da Agricultura) aprovou o registro de 500 novos agrotóxicos – um número recorde na série histórica iniciada em 2000, e que é 1,4% superior ao verificado em 2020, ano do recorde anterior.

A Anvisa é um dos principais meios de atendimento às demandas da base agroexportadora de Bolsonaro – e o almirante se comprova um elemento importante dessa estratégia, ao não colocar óbices à expansão desmesurada de novos agrotóxicos, um dos insumos mais importantes da indústria de commodities.

Daí, talvez, a razão para o boquirroto Bolsonaro ter-se calado após ter sido instado publicamente por um subordinado a se retratar.

Liberação de novos agrotóxicos no Brasil*

2014 – 148
2015 – 139
2016 – 277
2017 – 404
2018 – 449
2019 – 474
2020 – 493
2021 – 500, até o dia 2 de dezembro.

Fonte: Ministério da Agricultura citado em https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2021/12/06/liberacao-de-agrotoxicos-em-2021-bate-novo-recorde-na-serie-historica-maioria-e-generico.ghtml

 

De olho no ano eleitoral

Há, ainda, um nítido segundo componente a orientar a publicação da carta aberta: o ano eleitoral. Estamos a dez meses da eleição presidencial, e, mesmo que o almirante não possa ser demitido da Anvisa até o fim de 2024, ele sabe que precisa mostrar agora ao seu próximo chefe “independência” – e é grande a possibilidade de este chefe ser Lula, da oposição a Bolsonaro.

Pessoalmente para Barra Torres, sempre estar em boas falas com seu superior civil significa a possibilidade de conseguir um bom orçamento para a Agência, alcançar espaço político no governo e até receber apoio na disputa por algum cargo eletivo.

Outra importância das boas falas é a manutenção e possibilidade de ampliação do grande projeto político da cúpula castrense. Com Bolsonaro, a casta fardada dedicou-se a infiltrar todo tipo de quadro na administração pública federal (fala-se até em nove mil militares em cargos comissionados) não apenas por conta dos ganhos materiais imediatos – embora eles sejam muitos e bem importantes.

Do aumento dos salários em padrões muito superior ao do restante do funcionalismo – igualando salarialmente os oficiais superiores à elite do funcionalismo encastelada no Banco Central, na Receita Federal, na Procuradoria, nas estatais e na Justiça – à manutenção dos privilégios previdenciários (enquanto todo o restante do funcionalismo fica quase à míngua), a ocupação de postos chaves na estrutura do Estado vai muito além do mandato de Bolsonaro.

O projeto de longo curso da cúpula das forças armadas parece ser o de instalar um tipo determinado de funcionamento para tornar o Estado uma máquina de pensar e agir de forma militar.

Parte desse projeto passa por ocupar o estado com uma cúpula hierárquica das forças armadas que foi pós-graduada em centros de excelência do pensamento neoliberal – as Fundações Getúlio Vargas (RJ e SP), Dom Cabral (MG) e o instituto de pós-graduação Insper (SP), além dos intercâmbios com os centros de excelência militar nos EUA.

O objetivo de longo curso provavelmente seja instalar nas diversas frações do Estado um tipo de gestão que garanta toda sorte de privilégios aos fardados, de sorte a transformá-los em soldados comprometidos ideologicamente com ícones ultraneoliberais – o estado mínimo, o livre fluxo de capitais, a completa desnacionalização da economia brasileira e, até, a permissão para os EUA instalarem inéditas bases militares americanas em território brasileiro, como se verifica no processo de cessão da base de lançamentos de foguetes situada em Alcântara (MA).

Um indicativo de que a cúpula das forças armadas desenvolve essa missão é a quantidade de oficiais generais, da ativa e da reserva, que, com Bolsonaro, passaram a sistematicamente ocupar cargos de primeira linha em várias frações do Estado.

Fonte constante dos setores da academia brasileira que estuda a defesa nacional, o coronel da reserva Marcelo Pimentel publicou no dia 3 de janeiro em sua conta no Twitter uma lista preliminar e não conclusiva de oficiais superiores que ocupam ou já ocuparam cargos estratégicos na gestão (sic) Bolsonaro. Pimentel teve a atenção concentrada em representantes da cúpula do Exército. O próprio Barra Torres, contra-almirante, não foi incluído nessa lista.

Assim, de chofre, sem o rigor de uma tese de doutorado, Pimentel, lembrou-se desses flagrantes casos:

Oficiais generais no governo federal – seleção

– O Vice-Presidente da República, Hamilton Mourão, é general formado na turma de 1975 na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), a escola de formação de oficiais superiores do Exército, localizada em Resende (RJ);

– general AMAN 76 no assessor Tribunal Superior Eleitoral (TSE);

– general AMAN 72 presidente da Petrobras;

– general AMAN 72 em Itaipu;

– general AMAN 76 nos Correios;

– general AMAN 80 assessor no Superior Tribunal de Justiça (STJ);

– general AMAN 69 no Gabinete de Segurança Institucional (GSI);

– general AMAN 75 na Embaixada em Israel;

– general AMAN 77 na Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE);

– general AMAN 78 no Ministério da Defesa;

– general AMAN 77 no Postalis (fundo de previdência privada nos Correios);

– general AMAN 77 na APEx (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos, vinculada ao Itamaraty)

– general AMAN 79 na Secretaria-Geral da Presidência;

– general AMAN 75 na Ebserh, a holding estatal dos hospitais universitários;

– general AMAN 73 e ex-comandante Exército no GSI;

– general AMAN 78 ex-presidente Inst. Nac. de Colonização e Reforma Agrária (INCRA);

– general AMAN 76 ex-presidente Fund. Nac. do Índio (FUNAI);

– general AMAN 81 ex-porta-voz do atual presidente;

– general AMAN 84 ex-Ministro da Saúde;

– general AMAN 79 ex-Ministro da Secretaria de Governo;

– general AMAN 78 ex-Ministro da Casa Civil;

– general AMAN 78, ex-diretor da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

Fonte: Elaboração do Cel. Res. Marcelo Pimentel, publicado em https://twitter.com/marcelopjs/status/1477981863037882369.

Esta ampla utilização de oficiais superiores sem qualquer expertise em áreas tão distintas indica que, de fato, o projeto de redesenho do Estado é amplo e tem a perspectiva de se estender ao máximo no tempo. Independentemente das inúmeras especificidades das frações do Estado, aplica-se a todos a regra do inseticida: se é militar, é bom.

 

A carta foi uma cortina de fumaça

Inclusive setores do campo democrático e popular foram tomados de furor triunfalista ao ler a carta aberta de Barra Torres – que, até a tarde do dia 11 de janeiro, não havia surtido qualquer consequência prática conhecida. Não observaram as circunstâncias e as entrelinhas da carta, que foi publicada com destaque em todas as mídias corporativas, e daí infindável e acriticamente replicada em mídias ponto a ponto em milhões de aparelhos celulares, disseminando a ideia recorrente de que militares seriam a reserva moral no lamaçal em que eles mesmos afundaram o país.

Barra Torres se comportou como a pequena religiosa que aceita participar de uma orgia e depois finge se escandalizar com os atos dedicados a Baco, o deus do vinho. Então, para não se “surpreenderem” como Barra Torres e a pequena religiosa, faça como no filme estrelado por Leonardo Di Caprio.

Quem olhar para cima verá que um extenso programa de militarização e permanente preparação para a guerra vem sendo implantado no Estado brasileiro. E que a verdadeira festa da qual Barra Torres toma parte é consagrada a Tânatos, o deus da morte.

*Carlos Tautz é jornalista e doutorando em história contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF).

 

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