O combate à corrupção foi um eixo central da agenda da direita em meados do século XX, cujo legado ainda insiste em querer pautar os rumos do país
A direita brasileira sempre teve dificuldade em incorporar demandas populares ligadas ‘a inclusão política ou socio-econômica. Assim, frente ‘a sua dificuldade estrutural em angariar votos, setores oligárquicos tradicionais reiteradamente recorreram a meios golpistas a fim de manter o controle do Estado. A única exceção a esse quadro ocorreu quando temas ligados aos setores médios, como a corrupção, foram apresentados como de interesse universal. Se isso ocorreu de maneira explícita nos últimos anos, foi também um eixo central da agenda da direita em meados do século XX, especialmente sob os auspícios da União Democrática Nacional (UDN), cujo legado, com suas permanentes metamorfoses, insiste em querer pautar os rumos do país.
Criada no final da Segunda Guerra, a UDN foi o maior partido direitista com apelo popular da história recente brasileira. Com quadros intelectualmente qualificados e lideranças influentes, o partido impactou a opinião pública de tal modo que mesmo não tendo formalmente a Presidência, foi capaz de pautar a agenda política, especialmente na dimensão econômica, dos governos Dutra, Café Filho e Jânio Quadros.
Ancorada, em grande parte, na figura carismática de Carlos Lacerda, o político direitista de maior apelo popular do período, a agenda moralista, tecnocrática e economicamente (neo)liberal do partido, assim como a retórica agressiva e midiática de uma cruzada anticorrupção (e antipopular), foram tão ampla e efetivamente propagadas que o termo Udenismo se tornou algo maior do que o próprio partido. De fato, após o Golpe empresarial-militar de 1964, a agenda Udenista ajudou a pautar muitas das reformas antissociais do regime, sobretudo em seus primeiros anos.
Ainda que a própria ditadura acabaria por manter muito da lógica desenvolvimentista da era Vargas, em uma das mais fortes ironias da história recente do país, a agenda antipopular, de viés gerencial, e especialmente o discurso anticorrupção reemergeriam de maneira contundente no processo de transição política dos anos 80, em figuras autoritárias quixotescas como Eneas Carneiro e, de maneira mais efetiva, na cruzada anti-marajás do populista de direita Fernando Collor de Mello, melhor síntese da truncada consolidação democrática.
Se o discurso anticorrupção e antipovo ficou mais velado no início do século XXI, nunca chegou a sair totalmente de cena. E se tal narrativa não foi forte suficiente a ponto de tirar da presidência o maior líder da história do país, em meados de 2006, como chegou a ocorrer com Vargas em 1954, quando o país se encontrava com maiores dificuldades econômicas e sob uma liderança que, em parte, assumiu o próprio discurso gerencial da direita, em meados de 2015, e sob um verdadeiro conluio midiático sem precedente, o país foi engolfado pela mais recente versão do Udenismo, o salvacionismo tecnocrático, antipovo e autoritário da Operação Lava Jato.
Se em 2018, a deterioração da institucionalidade democrática, e mesmo do Estado de Direito, em grande parte fruto das ações da Lava Jato, foi de tal monta que uma figura tão aberrante como Bolsonaro se tornou o veículo da vez para canalizar tais demandas e narrativa, parece certo que essa não era efetivamente a opção preferencial das oligarquias financeiras, agrárias, midiáticas e mercantis. E é por isso que agora tais grupos se mobilizam para apresentar, Sérgio Moro, versão pastiche e diminuta de um Carlos Lacerda, como o novo cruzado que virá, dessa vez de maneira efetiva, resgatar-nos de todos os impulsos populistas que insistem em desviar o curso histórico normal da terra de Cabral, como nação de matriz econômica agro-exportadora, socialmente excludente e politicamente hierárquica. Se Moro será capaz de se viabilizar eleitoralmente como tal instrumento é algo ainda incerto. O que parece claro é que foi no Udenismo que nossas oligarquias encontraram a forma de sobreviver em um contexto de democracia de massas.
Nos últimos anos, tais procedimentos, combinados com o golpismo que lhes é caraterístico, foram efetivos na consecução de seus objetivos de manter o controle do poder político e econômico do país. E se foi, em grande, por causa da agenda e estilo udenistas que milhões votaram em Bolsonaro, é possível que um candidato ainda visto por muitos como o maior representante da suposta luta anticorrupção consiga reaglutinar os ventos udenistas, hoje um pouco mais dispersos, mas que ainda insistem em soprar e a definir os rumos do Brasil no século XXI.
*Rafael R. Ioris é professor de história na Universidade de Denver (EUA).