Ataques à liberdade acadêmica

A Grande Onda, Sète. Gustave Le Gray (francês, 1820-1884). Impressão em prata de albumina do negativo de vidro. 1857.
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Por HENRI ACSELRAD*

As condições para uma efetiva garantia da liberdade acadêmica, prevista no artigo 206 da nossa Constituição Federal, estão cada vez mais ameaçadas

Desde o início da pandemia de Covid-19, a sociedade brasileira tem assistido a uma intensificação de atos de constrangimento e perseguição a pesquisadores de diferentes campos da ciência. Estas ações têm se originado tanto em instâncias do Estado brasileiro como em grupos sintonizados ideologicamente com o atual governo.

No exercício de suas atividades correntes de produção de conhecimento, pesquisadores têm sido vítimas de difamação, ameaças, agressões, detenção por força policial por ocasião de trabalho de campo, assim como objeto de inquérito e processo por parte do MPF[i]. A intenção dos agentes de tais ameaças é a de atemorizar os cientistas e dificultar que seu trabalho possa ser levado ao conhecimento da opinião pública. Esse trabalho serve para alimentar, com dados testados e comprovados, o entendimento dos problemas por que passa o conjunto da sociedade.

As condições para uma efetiva garantia da liberdade acadêmica, prevista no artigo 206 da nossa Constituição Federal, estão cada vez mais ameaçadas.

A organização Scholars at Risk (composta pelos Global Public Police Institute – GPPi, Centro de Análise da liberdade de do Autoritarismo -LAUT e Varieties of Democracy – V-Dem) aponta que o Brasil tem hoje o segundo índice mais baixo de garantia da liberdade acadêmica na América do Sul. Este índice é composto por indicadores de liberdade dos cientistas desenvolverem suas agendas de pesquisa, a possibilidade de divulgação e debate dos resultados, as condições de autonomia universitária, a garantia de diversidade de manifestações culturais e a indevida ocorrência de vigilância política nos campi.

A multiplicação de graves episódios de violação de direitos de professores e cientistas aponta para a necessidade de se proteger a liberdade acadêmica como parte integrante das liberdades públicas fundamentais. Para se combater as forças do obscurantismo, que buscam intimidar e silenciar aqueles a quem cabe a produção de conhecimento livre e desinteressado, é preciso proteger e defender os pesquisadores e pesquisadoras ameaçados e assegurar o exercício da liberdade de pesquisa, ensino e divulgação do pensamento, da arte e do saber. Mas, por outro lado, é preciso também refletir sobre o que poderiam fazer os pesquisadores para proteger, em suas práticas, a vitalidade crítica de sua própria atividade intelectual, ou seja, a liberdade interna aos próprios meandros do pensamento.

As ciências enfrentam hoje, no Brasil, um grande desafio. Em condições normais de temperatura e pressão, o trabalho dos cientistas que estudam a sociedade, por exemplo, visa alcançar, ao menos, dois objetivos básicos: a) proceder a um controle semântico das palavras como esquemas ordenadores do mundo social através de uma crítica lógica e lexicológica da linguagem corrente; b) desnaturalizar os fatos sociais considerando que eles não resultam de processos inelutáveis e que poderiam ter seguido outros caminhos. Tais desafios são elevados ao quadrado quando, como no caso brasileiro, lança-se sobre o mundo social um véu de obscurecimento, produto de ações deliberadas destinadas a desinformar, a gerar angústia pública e a degradar o sentido das palavras.

O negacionismo com relação aos fatos da ciência e o anti-intelectualismo hostil ao espírito crítico confiscam a língua; fazem com que as palavras, em lugar de serem portadoras da comunicação do espírito, passem a conduzir ameaça e falsidade, tomando a forma de insulto, para defender assertivas que se anulam mutuamente e evocar lógicas que refutam a lógica. Busca-se até mesmo mudar o passado já documentado[ii]. Neste contexto, torna-se maior o desafio de exercitar o trabalho do pensamento e da linguagem para compreender objetos que suscitam interrogação e busca.

Requer-se agora das ciências que elas também ajudem a sociedade a identificar e combater a desinformação e os preconceitos intencionalmente disseminados, aqueles que contrariam as evidências em torno das quais se deveria construir uma vida em comum, elaborar princípios de justiça e debater projetos de futuro para o país. Esse papel é crucial quando a desinformação e a falsificação dos fatos são instrumentos da ação política; e mais ainda quando elas viram instrumento de uma ação política de governo. Se, por exemplo, não se reconhece a pandemia como fato, não há debate nem política para enfrentá-la, só desinformação. Quando em junho de 2020, o Ministério da Saúde deixou de informar o número acumulado de mortes, alegando pretender manter apenas os dados registrados nas 24 horas anteriores, um governante ironizou: “Basta somar com os dados do dia anterior”[iii]. Sua intenção era, por certo, a de subtrair e não somar.

A desigualdade, a morte em grande escala e as práticas racistas acontecem no mundo real, mas a representação deste mundo pode ser falseada quando se monta um sistema paragovernamental e governamental de desinformação. Falsear números das vítimas da epidemia é um ato de manipulação “psicossocial”[iv] da população – fazer contrainformação para confundir um inimigo suposto – no caso, a própria sociedade brasileira.

Quando governantes desqualificam estatísticas sobre desemprego produzidas pela própria máquina pública, como é o caso do IBGE, desqualificam os dados científicos sobre desmatamento, como no caso do INPE, e tentam escamotear estatísticas sobre vítimas da pandemia, a defesa da autonomia da ciência vira também defesa das liberdades públicas e da democracia.

“Morrer é o destino de todos”[v], alega o governante, defendendo que nada se deva fazer para evitar a mortandade de negros e indígenas, grupos atingidos de forma mais que proporcional pela pandemia. Mas não é o destino que majorou, no Brasil, o número de vítimas do COVID com relação ao de todos os demais países; ou que tira a vida de crianças negras atingidas durante incursões policiais nas favelas ou que favorece a invasão de terras indígenas e a contaminação dos povos que nelas habitam. A reunião ministerial do governo brasileiro de 22 de abril de 2020 [vi] mostrou o modo como governantes planejam a expropriação de terras indígenas, criam condições para o desmatamento, a grilagem e a destruição do patrimônio cultural; como agem para desmontar as medidas de precaução contra a epidemia; como atuam para armar os agentes da violência nas favelas e periferias. O que se viu naquela ocasião foi situação semelhante à da câmera que filmou a polícia de Minneapolis sufocando um homem negro com o joelho. E foram as câmeras do próprio governo que mostraram, naquela cena, o poder colocando o joelho sobre o aparelho respiratório da democracia. As Ciências Sociais não são, por certo, uma câmera, mas podem ajudar a entender as razões pelas quais o racismo permanece e o modo como ele está incrustado no poder pós-colonial e pós-escravista.

Ajudar a sociedade a pensar é também um meio de ajudar a sociedade a respirar, a encontrar o ar, a energia e a inteligência necessários para enfrentar os inimigos da inteligência e da democracia. Quando os que estão no poder chamam de liberdade a ameaça à liberdade, chamam de democracia o contrário da democracia, o recurso à palavra é implodido por dentro, subordinando-se à lógica da violência, expressão plena do autoritarismo. É por isso que, nos termos de Edward Saïd, o cientista social, em sua dimensão pública, é chamado a “induzir uma mudança no clima moral do debate, de modo que a agressão seja vista como tal, a punição injusta de povos ou indivíduos seja evitada, o reconhecimento da liberdade e dos direitos seja estabelecido como norma para todos e não para um punhado de eleitos”[vii].

Na atual situação brasileira, para mudar o clima (i)moral do debate, é preciso dar elementos explicativos e comprobatórios para a sociedade combater a complacência com as desigualdades, com a concentração de terras e de recursos nas mãos de poucos, assim como com todas as formas de discriminação que – como o racismo, o machismo, a homofobia – são reavivadas em conjunturas autoritárias.

*Henri Acselrad é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ).

Notas


[i] No dia 20/5/2021, o procurador-geral da República, Augusto Aras, ajuizou na Justiça Federal do Distrito Federal uma queixa-crime contra Conrado Hübner Mendes, professor de Direito da USP por críticas à sua atuação de Procurador. Centenas de professores universitários subscreveram as críticas de Mendes a Aras num documento chamado Subscrevemos: “poste”, “servo”, “omisso”. Eles afirmavam ali que a tentativa de intimidação “a um professor universitário que o critica, cuja liberdade ele deveria respeitar e defender, em comparação à passividade constante que ele reserva ao presidente da República, a quem ele deveria rigorosamente fiscalizar, exemplificam a tibieza com que ele exerce seu cargo”. https://www.jota.info/coberturas-especiais/liberdade-de-expressao/conrado-hubner-mendes-aras-20052021

 [ii] George Orwell, 1984, 23ª edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1998.

[iii] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/governo-nao-quer-esconder-os-dados-basta-somar-diz-mourao.shtml

[iv] O termo psicossocial foi evocado recentemente por um ex-ministro da Saúde durante uma sessão da CPI do COVID (em 20/5/2021) como razão para justificar que um presidente da república dirija qualquer tipo de fala estapafúrdia à população. Ele faz parte do vocabulário militar da guerra psicológica, muito comumente utilizado na retórica da Ditadura nos anos 1970, e reavivado, na atual conjuntura, para atribuir estatuto patriótico à mentira.

[v] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/01/todos-nos-vamos-morrer-um-dia-as-frases-de-bolsonaro-durante-a-pandemia.htm

[vi] https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/leia-integra-da-transcricao-do-video-da-reuniao-ministerial-de-22-de-abril-entre-bolsonaro-e-ministros.ghtml

[vii] Edward Saïd, Representações do intelectual. São Paulo, Companhia da Letras, p. 102.

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