CPI da Covid – muito aquém da tragédia nacional

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO JR.*

O relatório aprovado destaca-se pela incongruência entre a gravidade dos crimes apurados, a superficialidade de suas conclusões e a inocuidade de suas consequências práticas

A liderança da CPI da pandemia encerrou os trabalhos em clima de indisfarçável autocongratulação pelo sentimento do dever cumprido. No entanto, não há quase nada a comemorar. O relatório aprovado destaca-se pela absoluta incongruência entre a gravidade dos crimes apurados, a superficialidade de suas conclusões e a inocuidade de suas consequências práticas.

A CPI comprovou com farta documentação o que já era evidente.[i] A tragédia sanitária foi fruto de uma política deliberada dos donos do poder. Ao colocar o lucro acima da vida, o Estado brasileiro tornou-se impotente para interromper a livre circulação do coronavírus entre a população. A subestimação da gravidade da pandemia, o boicote sistemático às medidas de isolamento social, a sabotagem da compra de vacinas e a divulgação generalizada de falsos remédios deixaram os brasileiros à mercê de uma estratégia sanitária criminosa – a imunização de rebanho.

Para arrematar, as investigações revelaram macabras experiências de hospitais privados que utilizaram seres humanos como cobaias, bem como tenebrosos esquemas de corrupção comandados pela alta cúpula do governo federal envolvendo políticos, militares, líderes religiosos e empresários. O presidente sabia de tudo. O resultado é a maior tragédia humanitária da história nacional. Com 2,7% da população mundial, o Brasil registra 12,2% de todos os óbitos provocados pela pandemia de coronavírus – o décimo país, entre 178, com maior índice de morte per capita por Covid-19 do planeta.

O relatório da CPI pediu a responsabilização criminal de 80 pessoas pela tragédia sanitária e, após muita celeuma sobre o papel da política sanitária no genocídio dos povos originários, restringiu a acusação contra o presidente da República ao crime contra a humanidade. Não é crível, entretanto, que uma barbaridade dessa envergadura – a morte de mais de 606 mil brasileiros em menos de dois anos – tenha ocorrido sem a cumplicidade direta e indireta do conjunto das instituições que compõem o Estado brasileiro e o total beneplácito da burguesia.[ii]

A individualização das responsabilidades políticas e criminais pela tragédia sanitária é uma iniciativa necessária, porém muito insuficiente para se chegar à raiz de seus condicionantes sistêmicos, determinados pelas estruturas históricas da sociedade brasileira. A CPI ficou apenas na superfície. A participação decisiva da burguesia no holocausto ficou oculta. As principais perguntas ficaram sem respostas.

Por que o poder legislativo demorou mais de um ano para abrir uma investigação sobre o descalabro sanitário que vitimava a população? Por que os senadores pouparam a base política do governo Bolsonaro, isentando de qualquer responsabilidade o Centrão e os partidos militar, evangélico e empresarial, que militaram ativa e ostensivamente contra uma política sanitária baseada na defesa da vida? Por que a CPI não investigou o silêncio do Ministério Público diante de crimes que saltavam à vista? Por que nenhuma linha foi escrita sobre as políticas sanitárias dos governadores e prefeitos, que, em essência, mesmo que em dose menor, também foram integralmente subordinadas aos imperativos da economia? Por que nada foi dito sobre o efeito da política neoliberal no enfraquecimento do Sistema Único de Saúde e no comprometimento da autonomia sanitária do país? Por que não se investigou a fundo a interação entre mortes por Covid-19 e segregação social, quando há muito se sabe que a sindemia constitui um fator decisivo na definição do estado de saúde das pessoas:[iii] Por que não há sequer menção ao papel do imperialismo sanitário na tragédia brasileira?

Ruim com a CPI, pior ainda sem ela. A investigação do Senado foi fundamental para conter o descalabro sanitário do governo, acelerar a campanha de vacinação contra o coronavírus e conscientizar a população para a importância de medidas não farmacológicas como meio de proteção contra a Covid-19. Serviu também para explicitar a natureza reacionária, obscurantista, facínora e corrupta do governo Bolsonaro. Os documentos e depoimentos sobre a política sanitária genocida do governo Bolsonaro ficarão para sempre como um registro irrefutável da ruptura total e definitiva de qualquer nexo moral da burguesia com as classes subalternas.

Completamente desvinculada do movimento de rua pela deposição de Bolsonaro, a CPI tornou-se uma ação meramente formal que, na melhor hipótese, tem valor simbólico. As mesmas forças políticas que afirmam que o país é presidido por um homicida recusam comprometer-se de corpo e alma com sua deposição. Sem implicações políticas e legais que possam interromper a continuidade da camarilha militar-miliciana-teológica-empresarial que comanda o executivo nacional, as conclusões da investigação ficarão reduzidas a uma condenação moral, sem maiores consequências práticas, salvo o maior isolamento político de Bolsonaro e seu inexorável desgaste eleitoral.

Posto em perspectiva histórica, o relatório dos senadores cumpre a função compensatória de prestar alguma satisfação à população pelo descalabro sanitário e expiar a culpa das classes dominantes pelo massacre das classes subalternas. Ao transformar Bolsonaro em bode expiatório do morticínio em curso, a CPI isenta as instituições, os agentes políticos e a burguesia de qualquer responsabilidade pela marcha macabra do coronavírus na sociedade brasileira.

Na maior desfaçatez imaginável, o governo recebeu o relatório com uma gargalhada. Quem semeia vento, colhe tempestade. O maior crime humanitário da história moderna do país não ficará impune. O trauma do massacre sanitário reverberará ao longo dos tempos. Nenhuma vida perdida será esquecida. Ninguém será perdoado. Todas as responsabilidades por ações ou omissões – individuais, institucionais, políticas e de classe – serão um dia cobradas.

*Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e editor do site Contrapoder. Autor, entre outros livros, de Entre a nação e a barbárie – dilemas do capitalismo dependente (Vozes).

 

Notas


[i] A integra do relatório da CPI encontra-se em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/72c805d3-888b-4228-8682-260175471243

[ii] Pela subnotificação estimada de 15 a 20% dos óbitos por Covid-19, provavelmente mais de 700 mil vidas foram perdidas pela pandemia de coronavírus.

[iii] https://dasa.com.br/blog/coronavirus/sindemia-covid-19/ e https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)32000-6/fulltext

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Walnice Nogueira Galvão Fernando Nogueira da Costa Vladimir Safatle Alexandre Aragão de Albuquerque André Singer João Feres Júnior Luciano Nascimento Manchetômetro Marcos Aurélio da Silva Henry Burnett Chico Whitaker José Micaelson Lacerda Morais Ricardo Antunes Ronald Rocha Antonino Infranca Ari Marcelo Solon Armando Boito João Lanari Bo Priscila Figueiredo Luiz Carlos Bresser-Pereira Jean Pierre Chauvin Michel Goulart da Silva Paulo Sérgio Pinheiro Tadeu Valadares Marcelo Módolo Eduardo Borges Slavoj Žižek Jean Marc Von Der Weid Lincoln Secco Paulo Martins Igor Felippe Santos Fábio Konder Comparato Heraldo Campos Marcus Ianoni José Costa Júnior Alexandre de Freitas Barbosa Jorge Luiz Souto Maior Juarez Guimarães Tarso Genro Eleonora Albano Maria Rita Kehl Érico Andrade Valerio Arcary Celso Favaretto Leonardo Boff Claudio Katz Celso Frederico Gilberto Lopes Leda Maria Paulani Airton Paschoa Elias Jabbour Bruno Fabricio Alcebino da Silva João Carlos Loebens Denilson Cordeiro Ladislau Dowbor Alysson Leandro Mascaro João Paulo Ayub Fonseca Antônio Sales Rios Neto Eleutério F. S. Prado Luis Felipe Miguel José Geraldo Couto Anselm Jappe Flávio R. Kothe Francisco de Oliveira Barros Júnior Eugênio Bucci Rubens Pinto Lyra Luís Fernando Vitagliano Otaviano Helene André Márcio Neves Soares Luiz Marques Marcos Silva Jorge Branco Lucas Fiaschetti Estevez Gilberto Maringoni Alexandre de Lima Castro Tranjan Ronaldo Tadeu de Souza Matheus Silveira de Souza José Luís Fiori Leonardo Sacramento Bruno Machado Plínio de Arruda Sampaio Jr. Daniel Afonso da Silva Francisco Pereira de Farias Carla Teixeira Manuel Domingos Neto Lorenzo Vitral Eugênio Trivinho Andrew Korybko Marcelo Guimarães Lima Caio Bugiato Ricardo Abramovay Liszt Vieira Vinício Carrilho Martinez Everaldo de Oliveira Andrade Luiz Renato Martins Osvaldo Coggiola Salem Nasser Antonio Martins Renato Dagnino Andrés del Río Boaventura de Sousa Santos Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Werneck Vianna Gerson Almeida Valerio Arcary João Sette Whitaker Ferreira Leonardo Avritzer João Adolfo Hansen Tales Ab'Sáber Daniel Costa Henri Acselrad Annateresa Fabris Carlos Tautz Flávio Aguiar Fernão Pessoa Ramos Michael Roberts Mário Maestri Marjorie C. Marona Luiz Roberto Alves Rodrigo de Faria Milton Pinheiro Samuel Kilsztajn Mariarosaria Fabris José Raimundo Trindade Michael Löwy Bento Prado Jr. Afrânio Catani João Carlos Salles José Machado Moita Neto Luiz Bernardo Pericás Sandra Bitencourt Daniel Brazil Julian Rodrigues Chico Alencar José Dirceu Yuri Martins-Fontes Ricardo Fabbrini Sergio Amadeu da Silveira Atilio A. Boron Dennis Oliveira Francisco Fernandes Ladeira Bernardo Ricupero Luiz Eduardo Soares Kátia Gerab Baggio Remy José Fontana Paulo Fernandes Silveira Benicio Viero Schmidt Eliziário Andrade Paulo Nogueira Batista Jr Ronald León Núñez Vanderlei Tenório Marilena Chauí Rafael R. Ioris Dênis de Moraes Thomas Piketty Berenice Bento Ricardo Musse Gabriel Cohn Marilia Pacheco Fiorillo Paulo Capel Narvai

NOVAS PUBLICAÇÕES