Por LUIS FELIPE MIGUEL*
É preciso radicalizar a democracia, com um compromisso mais ambicioso com a justiça social
É difícil olhar para o Brasil de hoje não chegar à conclusão de que estamos empacados. No Brasil, elegemos a duras penas um governo que devia ser democrático e progressista, mas ele não consegue fazer quase nada. Emparedado pela Faria Lima, pelo Centrão, pelos militares, pelos latifundiários, pelos fundamentalistas religiosos, pela imprensa burguesa, vive de recuo em recuo, de concessão em concessão.
Aprovou um pacote fiscal que, mais uma vez, faz os pobres pagarem a conta. Para aprová-lo, liberou bilhões no pagamento de emendas de parlamentares venais. Mas nem assim o “mercado” ficou satisfeito. Ele não aceita qualquer gesto de mínima independência, qualquer migalha jogada para satisfazer a base social do governo: quer submissão total e absoluta. A especulação contra o real continua e o governo não vê outra saída senão se curvar mais e mais.
Depois de dois anos reclamando, com razão, da gestão de Roberto Campos Neto à frente do Banco Central, o governo Lula se vê constrangido a sinalizar que seu indicado, Gabriel Galípolo, continuará na mesma toada.
E quando Flávio Dino põe novamente um freio a farra das emendas parlamentares, o governo se sente ameaçado porque sabe que a reação dos donos do Congresso será tremenda.
O Supremo, por sua vez, tem agido em favor dos instrumentos formais da democracia (depois de ter legitimado o golpe de 2016, convém não esquecer). Mas já mostrou que não se dispõe a salvar nenhuma das medidas de proteção à classe trabalhadora que perdemos nos últimos anos. Quando briga com o Congresso, é uma disputa por espaço. E a prioridade é manter os muitos privilégios do Judiciário, os salários inchados por mil penduricalhos, a impunidade quase absoluta a seus integrantes.
Os ministros do STF passeiam pelo mundo com mordomias bancadas por grandes empresas. Capitalista corruptor, político corrupto, bicheiro assassino, parece que todo mundo tem um ministro do STF para chamar de seu.
Falei de bicheiros, mas não é só. Todos os setores do crime organizado – PCC, milicianos etc. – estão infiltrados no Legislativo, no Judiciário, no Executivo. Têm seus vereadores e deputados, seus juízes e desembargadores, seus delegados de polícia e coronéis.
Podemos ver algum alento no fato de que os militares aparentemente aceitaram a prisão de um dos seus, o general Braga Netto, e sabem que outros, como Augusto Heleno, já são favas contadas. Mas, fora isso, não aceitam que se dê nenhum passo na ampliação do controle do poder civil sobre eles. O episódio recente, em que a Marinha divulgou, nas redes sociais, um vídeo de ostensiva insubordinação contra o governo legítimo, é revelador. Lula ficou bravo, pensou em demitir o comandante da força, mas foi dissuadido e deixou passar.
Podia falar da reunião do Conanda, em que, com medo do barulho dos fundamentalistas religiosos, o governo votou contra a resolução de garantiria o acesso das meninas estupradas a seu direito ao aborto legal.
Podia falar das pontes que caem sem manutenção, embora os laudos se acumulem ano após ano. Podia falar da cobertura vacinal que continua falha, dois anos depois do novo governo assumir.
Dá um desânimo desse país. O pior é saber como nosso horizonte está restrito. Podemos sonhar com uma nova vitória em 2026, para evitar que a extrema direita volte ao Planalto, mas não podemos sonhar com um governo que governe. Qualquer governo estará emparedado.
A única esperança para o Brasil, como sabia Leonel Brizola, era o presidencialismo. A possibilidade de eleger um presidente mais à esquerda, que encaminhasse algumas medidas em favor das maiorias.
Pois o que foi feito, do golpe de 2016 para cá, foi esvaziar a presidência de grande parte de seus poderes. Com um projeto claro; nas palavras de Wanderley Guilherme dos Santos, escritas logo após a derrubada de Dilma Rousseff, impor uma “ordem de dominação (…) nua de propósitos conciliatórios com os segmentos dominados”.
Este projeto continua em vigor – e agora buscam implantá-lo mesmo sem precisar reverter o resultado das eleições presidenciais, como fizeram oito anos e meio atrás.
É difícil imaginar uma mudança que passe por esse Congresso, por esse Judiciário, por essa elite política. Sem o aumento da capacidade de pressão – isto é, da mobilização e da organização – da classe trabalhadora e dos dominados em geral, há muito pouco espaço para avançar.
A revolução de que estou falando não precisa passar por alguma tomada do Palácio de Inverno.
Mas o experimento democrático que foi fraturado com a deposição de Dilma Rousseff se baseava num equilíbrio instável entre regras democráticas e desigualdades sociais profundas, idêntico ao que vigorou no período democrático anterior (1945-1964), que dificilmente tem como ser reativado.
Um novo equilíbrio precisará ser alcançado. É preciso radicalizar a democracia, com um compromisso mais ambicioso com a justiça social. Este caminho, infelizmente pouco provável no curto prazo, exige uma transformação revolucionária do padrão histórico de relacionamento do Estado brasileiro com as elites e com as classes populares.
Sem essa revolução, não temos sequer como manter uma democracia liberal minimamente “civilizada”.
*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica). [https://amzn.to/45NRwS2].
Publicado originalmente nas redes sociais do autor.
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