Por MARCELO GUIMARÃES LIMA*
O poder vitimário e a barbárie naturalizada
“Na reunião do Conselho de Segurança da ONU para a discussão da guerra entre Israel e o grupo palestino Hamas desta segunda-feira (30/10), o embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, e outros delegados colocaram as estrelas amarelas [emblemas da discriminação nazista dos judeus] em suas roupas com as palavras “nunca mais” escritas”.[1]
O gesto da representação de Israel na ONU significa que, seja lá o que for que faça ou deixe de fazer o Estado de Israel (comandado pela ultradireita e que se afirma pura e simplesmente como representação exclusiva dos judeus de todo o mundo), quaisquer que sejam os fatos e suas ações ou reações, Israel se apresenta sempre como vítima, com exclusão de quaisquer outras vítimas potenciais ou de fato na atualidade e no futuro.
O passado trágico dos judeus de vítimas do holocausto nazista justificaria hoje, amanhã e sempre, o papel atual do autodeclarado Estado judeu de verdugo dos palestinos, pois se trata de uma justificativa de reparação “simbólica” cujo meio é a violência material pura e simples que recai contra uma população sem defesas e sem quaisquer vínculos com o destino dos judeus na Alemanha de Adolf Hitler.
“Guerra entre Israel e o Hamas” é claramente um eufemismo convenientemente utilizado pelas agências de notícias que oculta o longo e contínuo processo de apagamento físico e simbólico do povo palestino iniciado com a criação do Estado de Israel, cuja narrativa idealizada de sua origem e destino contrasta com a crueza dos meios empregados no passado e no presente.
As várias justificativas históricas ou pseudo-históricas e unilateral ou seletivamente “moralizantes”, isto é, “de justiça” na criação da nação israelense em território palestino se revelaram, no curso deste processo, como acobertamento de uma iniciativa de natureza fundamentalmente colonizadora, quer dizer: de apropriação territorial e dominação étnica, e, portanto, violenta por desígnio, cujo modelo histórico foram os nacionalismos e o colonialismo europeu, e contou com o apoio de fato das potências da Europa e dos EUA no século XX como condição essencial de sua efetivação.
Ao povo palestino cabe a expiação pelos crimes da extrema direita nazista na Alemanha. É o que diz clara e absurdamente o gesto da representação israelense, cujo destinatário é, não a consciência humanitária global que se choca e se rebela contra o genocídio palestino, mas o Ocidente branco e cristão e sua absoluta culpa multissecular pelo destino dos judeus na história.
Há aqui uma espécie de chantagem publicamente declarada que visa, por via das dúvidas, garantir a narrativa mistificadora da “guerra de defesa”. Chantagem quase desnecessária, eu diria, já que os interesses materiais e estratégicos dos EUA, com seus vassalos europeus, e o poder do Estado de Israel, aliado e subordinado ao Império Global, coincidem completamente na conjuntura e no ciclo histórico.
Trata-se, no panorama geral, da iniciativa norte-americana de conter a China, dominar a Rússia, reafirmar a subordinação do Sul Global. Neste panorama, estão intimamente relacionadas a guerra por procuração contra a Rússia na Ucrânia, insuflada e financiada pelos EUA, a subordinação política e econômica da Europa, a destruição antecipada publicamente por Joe Biden do Nord Stream e as repercussões negativas do atentado anonimamente realizado para a já combalida economia europeia, a presente ofensiva genocida de Israel contra os palestinos de conquista e domínio territorial, que tem explicitamente como importante objetivo coordenado, conforme a própria liderança de Israel, a contenção das novas rotas energéticas de iniciativa chinesa entre a Ásia, o Oriente Médio e a Europa, como observado por vários analistas.
Estes são elementos de um mesmo processo e estratégia pela qual o Império tenta reverter o esgotamento histórico das suas condições de dominação global. O domínio do Oriente Médio e seus recursos energéticos, incluindo os recursos da região costeira de Gaza apontados por especialistas, é parte vital desta estratégia.
O Estado de Israel, para o infortúnio de seus cidadãos na presente crise, é uma peça nesta máquina de dominação global que, em última instância, ultrapassa as decisões e o poder da sua elite dominante, malgrado a arrogância e violência criminosa dos atuais dirigentes, a ideologia messiânica, a arrogância providencial, sempre incerta de si sob a proteção “divina” pelas armas norte-americanas.
O ataque palestino a Israel, com toda sua dimensão sangrenta e a violência apocalíptica da resposta israelense, eliminou definitivamente o atual processo de normalização comercial e diplomática das relações de Israel com os países árabes da região, como a Arábia Saudita e o Egito. Normalização que significaria um isolamento ainda maior e abandono final da causa palestina como observaram vários analistas.
Essa iniciativa de enorme custo local de uma força minoritária contra um adversário poderoso demonstrou sua racionalidade e eficácia estratégica. A resposta de Israel, multiplicando a violência, apostando na barbárie, demonstra claramente, sob a máscara da fortaleza, a surpresa e o temor de seus dirigentes e os limites práticos e ideológicos da narrativa nacional e étnico-religiosa e repercute nas bases materiais, práticas e históricas do Estado.
Após a desejada e improvável eliminação total do povo palestino e a conquista territorial final, qual o futuro de Israel? A profundidade da crise presente não deixa entrever a simples continuação do status quo ante ou uma resolução definitiva favorável aos planos estabelecidos de hegemonia regional da elite dominante israelense apoiada pelo Ocidente.
O conflito violento e desigual entre palestinos e israelenses se mostra hoje de modo cristalino para todos os que querem ver, e eles são cada dia mais numerosos, como uma das faces de uma crise sistêmica global expressa na crise da hegemonia ocidental que assinala mudanças profundas nos paradigmas históricos herdados no século XXI.
Neste contexto, por detrás das máscaras do poder local e do poder global, o crescimento da violência expressa a insensatez, a arrogância cega, a húbris, a desorientação de fato, as incertezas, as dificuldades e o medo das chamadas elites transnacionais, a ansiedade das classes dominantes globais para com as transformações histórico-estruturais em curso.
Reações que só farão aumentar os desafios, as incertezas, os perigos e os custos da crise global para a população mundial neste período marcado pelo inevitável esgotamento das formas de dominação com as energias de vida aprisionadas, confinadas por um sistema universal de desigualdades, exploração e opressão das maiorias.
Gaza é, a seu modo, a metáfora viva do confinamento e da opressão como destino dos povos submetidos às práticas predatórias dos donos do mundo, da barbárie da dominação e igualmente símbolo da resistência no âmago da destruição e do desespero.
Marcelo Guimarães Lima é artista plástico, pesquisador, escritor e professor.
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