Por RENATO ORTIZ*
Marx falava de uma situação restrita a parte de um país denominado Inglaterra, do norte da França, e talvez, de uma região que integraria uma futura Alemanha
Os termos são frequentemente utilizados como equivalentes, até mesmo sinônimos, mas há uma diferença sutil entre o conceito de piada e anedota. Uma piada é um conto curto com o intuito de fazer rir, ela se esgota na gargalhada que provoca, aí reside o seu término. Sua vida é breve, o brilho é efêmero.
A anedota tem um objetivo semelhante, entretanto, ela nos remete para além da explosão do riso; contém uma dimensão que transcende o que é dito em um momento determinado. A anedota possui a virtude do universalismo, é capaz de escapar às malhas do contexto que a aprisiona. Quando digo “você combinou com os russos”, não me refiro apenas a um relato futebolístico (em sua origem Garrincha nele estava envolvido); ele se aplica a situações distintas que evocam a mesma atitude: o fato de alguém imaginar ser possível realizar uma façanha sem a participação ativa dos outros.
A máxima atua como a moral de uma fábula (“as uvas estão verdes”), possui um aspecto que a desloca da memória na qual foi formulada. As histórias são assim – claro, não todas –, aludem a um lugar que não se encontrava prefigurado no enunciado original. Não é preciso que elas tenham a extensão de um romance ou mesmo de um conto, podem ser breves, concisas, frases que nos retiram do “aqui e agora”, projetando-nos à frente de algo inesperado. Nesse sentido, funcionam como metáforas.
Gosto de histórias, coleciono várias delas em meus cadernos de anotações. Às vezes alguém me conta algo sugestivo, outras vezes presencio uma cena e a fotografo com a caneta tinteiro; há, porém, momentos em que simplesmente invento uma trama qualquer. São enredos curtíssimos, poucas sentenças que encerram uma potencialidade de suspensão do real.
Tempos atrás – os mitos situam-se em uma temporalidade inefável – estava na Faculdade e me apresentaram a um colega italiano que veio nos visitar. Estava no café e nos sentamos à mesa para conversar. Não me recordo seu nome, mas lembro-me bem, era filósofo e marxista. Ele sabia de meu interesse pela temática da globalização e tinha curiosidade em entender minha “posição teórica” a respeito.
A dificuldade maior nessa época era em se aceitar a existência do fenômeno, muitos pensavam que se tratava apenas de uma ideologia. À medida que conversávamos percebia em sua expressão que meus argumentos não eram convincentes, eles resvalavam na superfície lisa de seu rosto sem penetrar na pele. Foi quando recorri à força da metáfora. Lembrei-me que Jean-Paul Sartre, quando esteve entre nós, em sua volta de Havana, tinha ido conhecer a revolução de perto, havia pronunciado sua famosa conferência em Araraquara. Em sua excursão filosófica foi acompanhado por vários intelectuais brasileiros, inclusive Jorge Amado.
Pensei, por que não Marx? No século passado (o narrador encontrava-se no XX) um grande encontro de pensadores realizou-se na mesma cidade. Dizem os arquivos, sem maior precisão, que teria sido no mês de agosto de 1862/63. Naquele momento ele já tinha escrito os dois volumes de O capital e preparava o terceiro. Sua conferência foi um êxito, a profundidade de seu pensamento deixou o público inebriado. Ao terminar sua fala alguém pediu a palavra e disse: “Dr. Marx (ele gostava de ser chamado dessa forma), sua exposição foi magnífica, porém, aqui em Araraquara não tem nada disso”.
Um japonês, que havia cruzado os mares asiáticos e o Atlântico, ponderou: “Dr. Marx, no Japão a revolução Meiji será em 1868, por enquanto, essas coisas a que o senhor se referiu não existem”. Em seguida, representantes de diversos países se manifestaram para dizer exatamente o mesmo: a tese apresentada não se refletia na atualidade do mundo. Pergunta: de que Marx estava falando?
Resposta: de uma situação restrita a parte de um país denominado Inglaterra, do norte da França, e talvez, de uma região que integraria uma futura Alemanha. Entretanto, sua certeza fundava-se em uma premissa: tratava-se de um processo. Ao captar a lógica desse processo ele percebia algo que não tinha, ainda, se realizado. Meu interlocutor olhou-me com atenção e espanto, apertamos as mãos, terminei o café, e nunca mais nos vimos.
*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda). [https://amzn.to/3XopStv]
Publicado originalmente no blog da BVPS.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA