Nordestern

Ceri Richards, A Rosa Torta, 1965
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Comentários sobre o cinema e a literatura produzidos no Nordeste

A Cinemateca Brasileira realizou neste início de ano o ciclo Nordestern – Bangue-bangue à brasileira, com filmes de ficção, documentários, longas e curtas metragens, acompanhados por duas mesas-redondas.

Foram exibidas algumas das obras-primas da arte, como O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro (mas não Deus e o Diabo na terra do Sol), de Glauber Rocha. Tampouco ficaram de fora raridades como Lampião, o único documento visual existente sobre o grande líder do cangaço, 11 preciosos minutos filmados por Benjamin Abraão, hoje depositados no Instituto Joaquim Nabuco, de Recife.

Não faltou o pai de todos, de influência perene, o célebre O cangaceiro, de Lima Barreto, para maior glória premiado em Cannes. Rosemberg Cariry e Wolney de Oliveira, dois mestres do gênero, estiveram presentes com, respectivamente, Corisco e Dadá e Os últimos cangaceiros. Entre os históricos, figuraram ainda Memória do cangaço, de Paulo Gil Soares, que pioneiramente trouxe incrustados aqueles 11 minutos e, em craveira mais moderna, Baile perfumado, bem-humorada releitura que nos veio de Pernambuco. Coroando tudo, um bem recente: Sertânia, o testamento de um grande especialista, Geraldo Sarno. Dirigiu, entre muitos outros, um clássico, o curta Viramundo, entrevistando migrantes nordestinos em São Paulo.

E, com esse excelente critério de seleção, a mostra incluiu o muito premiado Bacurau. A única ausência a lamentar é a da mais perfeita adaptação de Guimarães Rosa até hoje vista, o filme de Roberto Santos A hora e vez de Augusto Matraga. Talvez também as de Vidas secas e Os fuzis.

Foi uma alegria constatar como a Cinemateca Brasileira conseguiu sobreviver – aliás por pouco, passando por uma inundação e um incêndio – à sanha aniquiladora do governo anterior. A instituição, como seu nome indica, é de âmbito federal, e não escapou a sinistros desígnios, como tantas outras não escaparam. Entre elas o Ministério da Cultura, o Ministério da Educação, o Museu Nacional e alguns outros museus, a Casa de Rui Barbosa, a Funarte, a Fundação Palmares, a Capes, o Cnpq, a Funai, o Ibama, o Inpe, as universidades federais… Não custa lembrar que a USP, a Unicamp, a Unesp, a Fapesp e o Museu do Ipiranga só se salvaram por serem estaduais e não federais.

Agora, a Cinemateca enfatiza a relevância do Nordestern, parte integrante do imaginário do sertão, e não só nos filmes.

Não há livros mais importantes que Os sertões de Euclides da Cunha, Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa, Vidas secas de Graciliano Ramos e a poesia de João Cabral de Melo Neto (Morte e vida Severina, Educação pela pedra etc.)

Não há cantor popular mais importante que Luiz Gonzaga, bardo do sertão, que dedicou sua vida e sua arte ao tema, identificando-se a um gênero musical novo – o baião – e divulgando a dança do xaxado. E mais sonoridades da caatinga, como o aboio e a dicção especial do cego de feira que canta ao ritmo do ganzá, que ele vai integrando a suas composições.

Mas há um embasamento histórico de todo esse complexo simbólico. É a grande migração nordestina para o Sul, aonde os nordestinos vieram trabalhar, resultando de suas mãos a industrialização de São Paulo e a verticalização da cidade.

O êxodo deslancha nos anos 1930, quando, conforme o Censo do IBGE, o panorama demográfico sofre uma dupla inflexão rumo à urbanização, passando a ser tendência dominante no país rural a migração do campo para as cidades (no país todo) e do Norte para o Sul.

Nunca é demais lembrar que trouxe consequências inesperadas. Tamanha concentração do proletariado levou à criação de sindicatos fortes, que acabaram por criar um partido e levar um dos seus, de modo inédito no Brasil e no mundo, à presidência da República.

É nesse mesmo decênio que surge o “Romance de 1930”, de que são expoentes o supracitado Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e outros. Surge com tal vigor que se torna hegemônico por meio século, obra de nordestinos que falam do Nordeste e de nordestinos. Novidade no panorama brasileiro é a tônica na denúncia social: desigualdades, fome, seca, racismo e assim por diante.

Como ninguém ignora, as consequências da grande migração estão longe de se esgotar.

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Leonardo Sacramento Bernardo Ricupero Rafael R. Ioris Luiz Marques José Raimundo Trindade Paulo Capel Narvai Flávio Aguiar Leonardo Avritzer Francisco Pereira de Farias Valerio Arcary Alysson Leandro Mascaro Armando Boito José Micaelson Lacerda Morais Andrew Korybko Maria Rita Kehl Berenice Bento Priscila Figueiredo Annateresa Fabris Tadeu Valadares Daniel Brazil Marjorie C. Marona Francisco Fernandes Ladeira Chico Alencar Marcos Aurélio da Silva Marilena Chauí Luís Fernando Vitagliano Benicio Viero Schmidt Michael Löwy Celso Frederico Paulo Nogueira Batista Jr Salem Nasser André Márcio Neves Soares Antônio Sales Rios Neto Yuri Martins-Fontes Paulo Martins Afrânio Catani Luiz Renato Martins Tarso Genro Bruno Fabricio Alcebino da Silva Alexandre de Lima Castro Tranjan Jean Marc Von Der Weid Eliziário Andrade José Geraldo Couto João Lanari Bo Antonio Martins Sandra Bitencourt Plínio de Arruda Sampaio Jr. Fernando Nogueira da Costa Luiz Bernardo Pericás Ari Marcelo Solon Luiz Eduardo Soares Vanderlei Tenório Valerio Arcary Gabriel Cohn Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Leonardo Boff Ricardo Abramovay Milton Pinheiro Ricardo Fabbrini Thomas Piketty Caio Bugiato Chico Whitaker João Feres Júnior Lorenzo Vitral Juarez Guimarães Jean Pierre Chauvin Renato Dagnino Fábio Konder Comparato Anselm Jappe Igor Felippe Santos Dennis Oliveira Ricardo Musse Eugênio Trivinho João Paulo Ayub Fonseca Boaventura de Sousa Santos Paulo Fernandes Silveira Luiz Roberto Alves Dênis de Moraes Ricardo Antunes Atilio A. Boron Osvaldo Coggiola Marcos Silva Claudio Katz Liszt Vieira Manchetômetro Rubens Pinto Lyra Heraldo Campos Matheus Silveira de Souza Jorge Luiz Souto Maior Slavoj Žižek Leda Maria Paulani Ronald Rocha Jorge Branco Eleonora Albano Lucas Fiaschetti Estevez Vladimir Safatle Gerson Almeida Daniel Afonso da Silva Ronald León Núñez Henri Acselrad Ronaldo Tadeu de Souza Marcus Ianoni Bruno Machado Elias Jabbour Carlos Tautz Manuel Domingos Neto José Machado Moita Neto Flávio R. Kothe Michel Goulart da Silva João Adolfo Hansen Otaviano Helene Luis Felipe Miguel Marcelo Módolo João Sette Whitaker Ferreira Rodrigo de Faria Everaldo de Oliveira Andrade Bento Prado Jr. Paulo Sérgio Pinheiro Denilson Cordeiro Eleutério F. S. Prado Walnice Nogueira Galvão Airton Paschoa Mário Maestri Francisco de Oliveira Barros Júnior Eugênio Bucci Gilberto Maringoni João Carlos Salles Celso Favaretto Remy José Fontana Julian Rodrigues Henry Burnett Daniel Costa José Costa Júnior Sergio Amadeu da Silveira Antonino Infranca Marcelo Guimarães Lima Carla Teixeira Alexandre de Freitas Barbosa Andrés del Río Eduardo Borges Luiz Carlos Bresser-Pereira Tales Ab'Sáber Fernão Pessoa Ramos Luciano Nascimento Samuel Kilsztajn Michael Roberts Érico Andrade João Carlos Loebens Luiz Werneck Vianna Mariarosaria Fabris Gilberto Lopes Alexandre Aragão de Albuquerque Kátia Gerab Baggio André Singer Lincoln Secco Marilia Pacheco Fiorillo José Luís Fiori José Dirceu Ladislau Dowbor Vinício Carrilho Martinez

NOVAS PUBLICAÇÕES