O internacionalismo

Carlos Zilio, NOS, 1970, 47x32,5
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Por THOMAS PIKETTY*

A experiência histórica mostra que o nacionalismo só pode levar a exacerbar a desigualdade e as tensões climáticas, e que o livre comércio absoluto não tem futuro

Podemos dar um significado positivo ao internacionalismo? Sim, mas à condição de dar as costas à ideologia do livre comércio absoluto que até agora guiou a mundialização; e adotar um novo modelo de desenvolvimento baseado em princípios explícitos de justiça econômica e climática. Esse modelo deve ser internacionalista em seus objetivos finais, mas soberano em suas modalidades práticas, no sentido de que cada país, cada comunidade política deve ser capaz de estabelecer condições para a busca do comércio com o resto do mundo, sem esperar o acordo unânime de seus parceiros. A tarefa não será simples, e essa soberania com vocação universalista nem sempre será facilmente distinguida da soberania de tipo nacionalista. É ainda mais urgente esclarecer as diferenças.

Suponhamos um país, onde uma maioria política considere desejável introduzir um imposto fortemente progressivo sobre altas rendas e patrimônio, a fim de efetuar uma redistribuição significativa em favor dos mais pobres, enquanto financia um programa de investimento social, educacional e ecológico. Para caminhar nessa direção, este país prevê um imposto na fonte sobre lucros de empresas e, principalmente, um sistema de cadastro financeiro que permita conhecer os detentores finais de ações e dividendos e, assim, aplicar as alíquotas desejadas a nível individual. Tudo isso poderia ser complementado por um cartão individual de carbono, permitindo incentivar comportamentos responsáveis, ao mesmo tempo em que taxa fortemente as maiores emissões, bem como aqueles que se beneficiam dos lucros das empresas mais poluentes, o que mais uma vez exige conhecer seus titulares.

Infelizmente, esse cadastro financeiro não foi previsto pelos tratados de livre circulação de capitais estabelecidos nas décadas de 1980 e 1990, em particular na Europa no contexto do Ato Único (1986) e do Tratado de Maastricht ( 1992), textos que influenciaram fortemente aqueles adotados posteriormente no resto do mundo. Essa arquitetura legal altamente sofisticada, ainda em vigor hoje, de fato criou um direito quase sagrado de enriquecer-se usando as infraestruturas de um país e, em seguida, clicar em um botão para transferir seus ativos para outra jurisdição, sem possibilidade prevista para a comunidade seguir sua trajetória. Após a crise de 2008, quando os excessos da desregulamentação financeira se tornaram evidentes, acordos sobre o intercâmbio automático de informações bancárias foram certamente desenvolvidos na OCDE. Porém, essas medidas, estabelecidas de maneira puramente voluntária, não incluem nenhuma penalidade para os recalcitrantes.

Suponhamos então que um país deseje acelerar o movimento e decida estabelecer uma tributação redistributiva e um cadastro financeiro. Imaginemos que um de seus vizinhos não compartilhe esse ponto de vista e aplique uma taxa irrisória de impostos sobre lucros e carbono a empresas com base (real ou fictícia) em seu território, ao mesmo tempo em que se recusa a transmitir as informações sobre seus titulares. Nessas condições, o primeiro país deveria, na minha opinião, impor sanções comerciais ao segundo, variáveis dependendo das empresas, proporcionalmente aos danos fiscais e climáticos causados.

Trabalhos recentes mostraram que essas sanções trariam receitas substantivas e encorajariam outros países a cooperar. Obviamente, será necessário argumentar que essas sanções apenas corrigem a concorrência desleal e o não cumprimento dos acordos climáticos. Mas estes últimos são tão vagos e, por outro lado, os tratados sobre a livre circulação absoluta de bens e capitais são tão sofisticados e restritivos, particularmente a nível europeu, que é provável que um país que embarque nesse caminho corra fortemente o risco de ser condenado por organismos europeus ou internacionais (Tribunal de Justiça da União Europeia, Organização Mundial do Comércio). Se esse for o caso, será necessário assumir [uma posição] e sair unilateralmente dos tratados em questão e, ao mesmo tempo, propor novos.

Qual a diferença entre a soberania social e ecológica aqui esboçada e a soberania nacionalista (digamos de tipo trumpista, chinesa, indiana ou, amanhã, francesa ou europeia), baseada na defesa de uma identidade civilizacional particular e em interesses daí emanados e reputados homogêneos?

Existem duas. Primeiro, antes de iniciar possíveis medidas unilaterais, é crucial propor aos outros países um modelo de desenvolvimento cooperativo, baseado em valores universais: justiça social, redução das desigualdades, preservação do planeta. Também é necessário acompanhar com atenção as assembleias transnacionais (como a Assembléia Parlamentar Franco-Alemã [APFA] criada no ano passado, mas com poderes reais) que idealmente deveriam ser responsáveis pelos bens públicos globais e políticas comuns de justiça tributária e climática.

Em seguida, se essas propostas sócio-federalistas não forem imediatamente acolhidas, a abordagem unilateral deve, no entanto, permanecer incentivada e reversível. O objetivo das sanções é incentivar outros países a sair do dumping fiscal e climático, a não instalar o protecionismo permanente. Desse ponto de vista, as medidas setoriais sem fundamento universal como a “taxa GAFA” devem ser evitadas, pois elas se prestam facilmente a uma escalada de sanções (taxas sobre vinhos versus impostos digitais, etc.).

Pretender que esse caminho seja bem demarcado e fácil de seguir seria absurdo: tudo ainda precisa ser inventado. Mas a experiência histórica mostra que o nacionalismo só pode levar a exacerbar a desigualdade e as tensões climáticas, e que o livre comércio absoluto não tem futuro. Mais uma razão para refletir agora sobre as condições para um novo internacionalismo.

*Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca

Tradução: Aluisio Schumacher para o site Carta Maior.

*Publicado originalmente no jornal Le Monde.

 

 

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