Programa de desintoxicação química

Imagem: Laker
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Por RICARDO ABRAMOVAY*

Mais importante que o crescimento é a qualidade e os efeitos sobre o bem-estar daquilo que o sistema econômico oferece à vida social

São cada vez mais robustas as evidências sobre o caráter tóxico da riqueza nas sociedades contemporâneas. O que já se convencionou chamar de “poluições do cotidiano” está não apenas nos alimentos (sob a forma de agrotóxicos) e no ar (pela queima de combustíveis fósseis), mas também nos brinquedos, mamadeiras, fraldas, aparelhos eletrônicos, embalagens alimentares, cosméticos, móveis, roupas, na água, nos solos e, cada vez mais, é claro, em nossos corpos.

Reportagem de André Trigueiro mostra a identificação de nanopartículas de plásticos no sangue de seres humanos, vindas sobretudo de garrafas PET, sacolas plásticas e embalagens de alimentos. Mas, além do plástico, as poluições do cotidiano derivam do uso em larga escala de um conjunto de produtos químicos que contêm perturbadores endócrinos (que afetam as funções hormonais do organismo) e vetores cancerígenos perigosos para a saúde humana e animal.

O lixo eletrônico, por exemplo, subiu de 44 milhões de toneladas, em 2014, para 53,6 milhões de toneladas, em 2019. A continuar o ritmo atual, em 2030, cada habitante do planeta vai gerar 10 kg de lixo eletrônico. Atenção: este não é o peso dos dispositivos eletrônicos em uso, e sim o peso de seus resíduos, ou seja, 10 kg anuais de lixo eletrônico por habitante da Terra. Mercúrio, cádmio, retardador de chamas, plásticos são apenas alguns dos componentes desse lixo que intoxica as águas, os solos e até o ar, sobretudo quando incinerados.

Só na União Europeia, o consumo de produtos químicos prejudiciais à saúde atingiu 230 milhões de toneladas em 2020. A eles se somam mais 80 milhões de toneladas de produtos considerados nocivos ao meio ambiente, segundo dados da Eurostat.

Circulam nos mercados europeus 12 mil produtos químicos potencialmente causadores de câncer, infertilidade e redução na efetividade de vacinas. Segundo a autoridade mundial de informação sobre produtos químicos (Chemical Abstracts Service), levou 50 anos (entre 1965 e 2016) para que o registro de novas substâncias atingisse a marca de 100 milhões. Só entre 2016 e 2018, porém, foram 30 milhões de novos registros, um a cada 1,4 segundo, como mostra importante documento das Nações Unidas.

Claro que esse não é um problema exclusivamente europeu — e é importante frisar, nesse sentido, o avanço da contaminação vinda também da indústria farmacêutica. Um estudo de especialistas norte-americanos identificou 58 diferentes produtos farmacêuticos em ossos de peixes coletados ao longo das 200 milhas da costa da Flórida.

Outro estudo de um consórcio de 127 autores vindos de 86 instituições de vários países examinou ingredientes farmacêuticos ativos em 258 rios dos quais dependem diretamente 471 milhões de pessoas. O trabalho mostra um nível de ingredientes farmacêuticos ativos em vários rios, ameaçadores à saúde humana e que contribuem para fortalecer a resistência antimicrobiana, em função da presença de resíduos de antibióticos na água.

Os estudos brasileiros vão na mesma direção. O Mapa da Água, elaborado pela agência Repórter Brasil mostra a existência de produtos químicos e radioativos no sistema de abastecimento de água de 763 municípios.

Neste contexto, adquire relevância global a estratégia do Green Deal europeu, desenhada em 2020 para se alcançar um ambiente sem produtos tóxicos. Não é difícil imaginar a resistência industrial à regulação desse objetivo, quando se sabe que a química corresponde ao quarto maior setor industrial da União Europeia, com nada menos que 28 mil empresas, entre as quais gigantes como Bayer e Basf. Em 2018, a Europa era o segundo maior produtor mundial de químicos (logo atrás da China). O setor faturou 3,5 bilhões de euros (R$ 18,5 bilhões) em 2019 e a previsão à época era de dobrar esse resultado até 2030.

Conforme mostra reportagem do jornal Le Monde, a burocracia europeia vive uma queda de braço entre sua direção encarregada do mercado interior e da indústria (a DG Grow, que insiste em apresentar os produtos químicos como “essenciais ao nosso bem-estar e a nossos elevados padrões de vida”) e aquela encarregada do meio ambiente.

Assim, é fundamental a celebração daquilo que o European Environment Bureau, rede de 170 organizações da sociedade civil de 35 países europeus, não hesita em chamar de “a grande desintoxicação”. Na última segunda-feira, a Comissão Europeia publicou um roteiro normativo de restrições para “garantir um ambiente sem substâncias tóxicas em 2030”. É a mais ambiciosa medida de combate à poluição química na história das sociedades atuais. É imensa a lista de produtos a serem eliminados da paisagem industrial europeia nos próximos oito anos.

Quando o fanatismo fundamentalista deixar o Planalto e a Esplanada dos Ministérios será fundamental que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) faça valer sua competência técnica, internacionalmente reconhecida, para que o Brasil também tenha um plano ambicioso e com metas claramente estabelecidas para eliminar produtos tóxicos da indústria química e para reduzir ao mínimo os resíduos farmacêuticos.

Este não é e não pode ser tratado como um tema “ambiental”. Ele é o retrato mais emblemático da maneira como a oferta de bens e serviços se organiza. Pensar a recuperação do emprego, a redução das desigualdades, a luta contra a fome, a mobilidade, a construção civil sem que a eliminação dessas substâncias nefastas esteja no topo da agenda é perpetuar a ilusão destrutiva de que os componentes tóxicos são um mal menor diante do conforto que os produtos que os utilizam propiciam.

É claro que nossa urgência maior é mais elementar. Ela consiste, antes de tudo, em combater as atividades criminosas que, apoiadas pelo governo federal, contaminam as pessoas, as águas e os solos com mercúrio, sobretudo na Amazônia, no garimpo ilegal, com base na invasão e na violência contra povos indígenas e moradores de outras áreas protegidas.

Mas a grande desintoxicação química que a União Europeia está levando adiante mostra que mais importante que o crescimento é a qualidade e os efeitos sobre o bem-estar daquilo que o sistema econômico oferece à vida social. E os dados mostram que essas duas expressões (crescimento econômico e bem-estar) não andam necessariamente juntas.

*Ricardo Abramovay é professor titular sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).

Publicado originalmente no Portal UOL.

 

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