Por ANDREW KORYBKO*
A Polônia e a Ucrânia mergulharam numa crise política de grandes proporções e sem previsão de fim
A revelação do primeiro-ministro polonês Mateusz Morawiecki à mídia local, na quarta-feira passada, de que seu país tinha parado de fornecer armas à Ucrânia para se armar, mostrou o quanto os laços bilaterais despencaram na última semana. Varsóvia ampliou unilateralmente as restrições às importações agrícolas de seu vizinho do leste após a expiração do acordo da Comissão Europeia em 15 de setembro, a fim de proteger seus agricultores, o que levou Kiev a reclamar junto à OMC na última segunda-feira.
Mais tarde, no mesmo dia, o porta-voz do governo polonês, Piotr Muller, sugeriu que Varsóvia poderia deixar sua ajuda aos refugiados ucranianos expirar na próxima primavera, em vez de estendê-la, sugerindo assim uma disposição de expandir sua disputa comercial para outras dimensões. Se isso acontecer, os mais de um milhão e meio de ucranianos que residem temporariamente na Polônia terão que voltar para casa ou ir para outro lugar, como a Alemanha, por exemplo. Na terça-feira, tudo se transformou numa crise política de grandes proporções.
O ministro polonês de assuntos europeus, Szymon Szynkowski vel Sek, advertiu de forma ameaçadora: “As ações da Ucrânia não nos impressionam… mas causam uma certa impressão na opinião pública polonesa. Isso pode ser visto nas pesquisas, no nível de apoio público à continuidade do apoio à Ucrânia. E isso prejudica a própria Ucrânia. Gostaríamos de continuar apoiando a Ucrânia, mas, para que isso seja possível, precisamos ter o apoio dos poloneses nessa questão. Se não o tivermos, será difícil continuarmos apoiando a Ucrânia da mesma forma que temos feito até agora”.
Volodymyr Zelensky, então, explorou seu púlpito global na Assembleia Geral das Nações Unidas para propagar o seguinte: “Estamos trabalhando para garantir a estabilidade alimentar. E espero que muitos de vocês se juntem a nós nesse esforço. Lançamos um corredor temporário de exportação marítima a partir de nossos portos. E estamos trabalhando arduamente para preservar as rotas terrestres para a exportação de grãos. E é alarmante ver como algumas pessoas na Europa, alguns de nossos amigos na Europa, estão jogando fora a solidariedade em meio a um teatro político – fazendo um suspense com os grãos. Eles podem parecer desempenhar seu próprio papel, mas, na verdade, estão ajudando a preparar o palco para um ator de Moscou”.
A resposta do presidente polonês Andrzej Duda, que ele compartilhou com os repórteres, mostrou o quanto ele ficou ofendido: “A Ucrânia está se comportando como uma pessoa que está se afogando e se agarra a tudo o que pode… mas temos o direito de nos defender dos danos que estão sendo causados a nós. Uma pessoa que está se afogando é extremamente perigosa, ela pode puxar você para as profundezas… e simplesmente afogar o socorrista. Devemos agir para nos proteger do mal que está sendo causado a nós, porque se a pessoa que está se afogando… nos afogar, ela não receberá ajuda. Portanto, temos que cuidar de nossos interesses e faremos isso de forma eficaz e decisiva”.
Foi nesse contexto que a Polônia convocou urgentemente o embaixador ucraniano na quarta-feira, e, mais tarde nesse dia, Morawiecki revelaria que a Polônia não mais enviará armas para Kiev. Antes da reclamação da Ucrânia à OMC sobre a Polônia, que foi o que deu início a essa rápida sequência de eventos, as tensões já estavam em ebulição há algum tempo, pois a contraofensiva fracassada os tirou da ilusão mútua de uma vitória aparentemente inevitável sobre a Rússia.
Essas nações vizinhas, então, naturalmente começaram a se desentender, pois todo o leque de suas diferenças preexistentes foi exacerbado e rapidamente remodelou as relações bilaterais. A disputa comercial foi apenas a ponta do iceberg, mas mostrou que cada lado estava começando a priorizar seus interesses nacionais contraditórios em detrimento dos interesses políticos compartilhados. Isso sinalizou para suas sociedades que agora era novamente aceitável atacar o outro com raiva nacionalista em vez de se concentrar apenas na Rússia.
No entanto, tudo isso poderia ter sido evitado se a Ucrânia demonstrasse alguma gatidão à Polônia por tudo o que Varsóvia fez por ela nos últimos 19 meses e não reclamasse à OMC sobre a questão dos grãos. Pior ainda foi Zelensky ter quebrado o tabu de acusar seu colega polonês, que lidera um dos Estados mais russofóbicos da história, de supostamente estar cumprindo as ordens geopolíticas da Rússia. Ele cruzou uma linha vermelha e agora não há como voltar à confiança mútua ilusória que havia antes.
Espera-se que os laços entre a Polônia e a Ucrânia caiam ainda mais nas próximas semanas, à medida que a primeira se aproxima das próximas eleições, em 15 de outubro, que o partido governista “Lei e Justiça” (PiS) espera vencer, fazendo com que tudo gire em torno da segurança nacional. Isso explica por que eles cortaram as remessas de armas para a Ucrânia em resposta à insinuação ridícula de Valodymyr Zelensky sobre a Polônia ser um fantoche russo, e é possível que mais medidas significativas como essas sejam tomadas em breve para lembrar à Ucrânia que ela está em dívida com a Polônia para sua sobrevivência.
Com esses cálculos em mente, é possível prever com segurança que os laços entre a Polônia e a Ucrânia provavelmente continuarão diminuindo até meados de outubro, no mínimo. Depois disso, eles poderão se recuperar caso a mais recente campanha de mídia da opositora “Plataforma Cívica” (PO) consiga conquistar um número suficiente de eleitores rurais contra o PiS. Será uma batalha difícil para eles, e o PiS poderá formar um governo de coalizão com o partido anti-establishment Confederação se eles não forem totalmente derrotados, portanto, o retorno do PO ao poder não está garantido.
Sendo assim, há uma chance crível de que os laços entre a Polônia e a Ucrânia caiam ainda mais no próximo ano, especialmente se o PiS for forçado a formar um governo de coalizão com a Confederação. A Polônia passou a se ressentir de Volodymyr Zelensky nos últimos meses, enquanto a Ucrânia foi consistentemente contra o papel de liderança da Polônia na guerra por procuração da OTAN contra a Rússia por meio da Ucrânia, o que poderia levar a uma combinação devastadora para Kiev. Numa situação como essa, tudo pode piorar muito, e num ritmo ainda mais rápido.
Na ausência da vitória do PO nas urnas no próximo mês, a única outra variável que poderia realisticamente compensar esse cenário seria Kiev voltar atrás em sua ameaça de processo na OMC e Volodymyr Zelensky finalmente demonstrar gratidão sincera em público por tudo o que a Polônia fez pela Ucrânia. No entanto, ninguém deve ter esperanças quanto a isso, já que ele deve tentar a reeleição na próxima primavera e pode se preocupar com o fato de que voltar atrás em sua nova política assertiva em relação à Polônia pode fazer com que ele perca o voto nacionalista.
Ambas as partes estão, portanto, num dilema em que cada uma delas acredita que tem mais a ganhar quanto aos interesses nacionais e políticos aumentando as tensões do que sendo a primeira a diminuí-las. Assim, um ciclo autossustentável está em processo de formação, o que corre o risco de levar a uma deterioração tão drástica de seus laços que a situação desanimadora atual poderá ser vista com bons olhos em breve. Isso é especialmente verdade se a Polônia passar a exercer mais abertamente sua hegemonia crescente sobre a Ucrânia Ocidental num futuro próximo.
Para ser claro, a sequência de eventos mencionada acima é o pior cenário possível e, portanto, não é tão provável, mas também não pode ser descartada, já que poucos previram o quanto os laços entre a Polônia e a Ucrânia cairiam há apenas alguns meses. É inegável que as relações polonesas-ucranianas entraram num período de incerteza que pode durar algum tempo, portanto, ambos fariam bem em preparar suas sociedades para a possibilidade de tensões contínuas para que possam se adaptar de forma mais eficaz a essa realidade geoestratégica emergente.
*Andrew Korybko é mestre em Relações Internacionais pelo Instituto Estadual de Relações Internacionais de Moscou. Autor do livro Guerras híbridas: das revoluções coloridas aos golpes (Expressão Popular). [https://amzn.to/46lAD1d]
Tradução: Fernando Lima das Neves.
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