Tropas francesas na Ucrânia

image_pdf

Por ANDREW KORYBKO*

Por mais disparatadas que sejam as declarações de Macron sobre enviar tropas para a Ucrânia, não se deve descartar a possibilidade da OTAN envolver-se ainda mais nesta guerra, que de convencional pode ir à nuclear

O chefe da espionagem externa russa, Naryshkin, alertou na terça-feira que a França está preparando o envio de 2 mil soldados para a Ucrânia, na sequência da afirmação de Emmanuel Macron, no mês passado, de que uma intervenção convencional da OTAN não pode ser excluída. Esta declaração coincidiu também com a confirmação pelo mais importante general francês de que suas forças estão prontas para serem enviadas para onde for necessário, o que desqualificou a descrição do Ministério da Defesa do aviso de Naryshkin como “desinformação”, uma vez que existe alguma verdade objetiva no que ele disse.

Embora muitos membros da comunidade de mídia alternativa tenham ridicularizado a afirmação de Emmanuel Macron no mês passado, um prestigiado especialista russo acaba de dar crédito a ela numa entrevista à Sputnik. Alexander Mikhailov, que é o chefe na Rússia do grupo de discussão Bureau of Military-Political Analysis, disse àquele meio de comunicação na terça-feira que “Emmanuel Macron sem dúvida tem acesso tanto ao pessoal quanto aos recursos para enviar tropas para a Ucrânia”. Por isso, não é implausível imaginar que a França possa intervir convencionalmente no país.

Se isso acontecer, então será algo preventivo ou reativo, e unilateral ou como parte de uma “coalizão de interessados”. No que diz respeito à primeira opção, a França poderia tentar justificá-la com o pretexto de obter uma vantagem antes que a Rússia consiga um avanço através da Linha de Contato, ou poderia simplesmente esperar até que esse “evento desencadeador” aconteça. Quanto à segunda opção, a França agiria sozinha ou, mais provavelmente, em parceria com o Reino Unido, a Polônia e os Estados Bálticos, com a possível participação da Alemanha.

Independentemente do pretexto e de quem mais possa participar, é quase certo que a França procurará proteger a costa ucraniana do Mar Negro se intervier de forma convencional. A França já tem várias centenas de soldados na Romênia desde o início de 2022, que podem ser reforçados antes deste movimento, e acabou de assinar um pacto de segurança com a Moldávia no início deste mês, que poderá levar este país a também receber tropas. Os “Balcãs Orientais”, que estão caindo na “esfera de influência” da França, podem assim tornar-se uma plataforma de lançamento francesa para a Ucrânia.

A Romênia e a Moldávia fazem fronteira com o Oblast de Odessa, na Ucrânia, cuja capital epônima tem uma importância estratégica e simbólica. É o principal porto da antiga República Soviética, mas também uma cidade historicamente russa. Por isso, é duplamente importante para o Ocidente protegê-la do controle de Moscou, enviando para lá tropas da França, membro da OTAN, como forma de “dissuasão”, no caso da Linha de Contato colapsar ou parecer estar prestes a colapsar.

Nesse cenário, os drones navais poderiam continuar ameaçando a frota russa, enquanto os apoiadores desse país poderiam ficar desapontados depois de perceberem que a reunificação com Odessa seria quase impossível sem desencadear a Terceira Guerra Mundial, se essa cidade ficasse de fato sob o controle da OTAN por meio da França. Uma vez que o Dnieper já provou ser um obstáculo formidável para as forças de ambos os lados nos últimos dois anos, é muito possível que a França expanda sua zona de controle ao longo da costa do Mar Negro até Kherson.

Isso faria com que a Linha de Contato russo-ucraniana se tornasse russo-OTAN, podendo mesmo expandir-se para o norte, subindo o Dnieper até à Central Nuclear de Zaporizhzhia, mas as forças francesas poderiam ficar relutantes em atravessar o rio até Zaporizhzhia e mais além, para não sobrecarregar sua logística militar. Além disso, uma vez que este cenário de intervenção estaria ligado a um possível avanço russo, a França poderá não querer arriscar-se a entrar em conflito com a Rússia no lado oriental do Dnieper.

Por mais perigosa e sem precedentes que esta sequência de acontecimentos possa ser devido ao risco muito elevado de ser desencadeada a Terceira Guerra Mundial por um erro de cálculo, o lado positivo é que pode potencialmente congelar as posições de cada um dos lados ao longo da frente sul, pelo menos, e assim estabelecer a base parcial para um cessar-fogo. As tropas ucranianas também poderiam fugir para oeste através do Dnieper, se a Rússia rompesse a Linha de Contato, sabendo que seus inimigos provavelmente não os seguiriam por receio de desencadear a Terceira Guerra Mundial ao entrarem em confronto com as tropas da OTAN.

Isso poderia permitir à Rússia assegurar a “zona sanitária/de segurança” prevista pelo presidente Vladimir Putin, mencionada durante seu discurso de reeleição, preparando, assim, o terreno para a divisão assimétrica da Ucrânia entre a OTAN e a Rússia, com uma “zona tampão” no nordeste da Ucrânia oriental. Honestamente falando, a costa ucraniana do Mar Negro é para ser tomada pela França, mas apenas se Paris tiver a vontade política de fazê-lo e seu povo não se revoltar com as enormes baixas infligidas pela Rússia que poderão se seguir (provavelmente através de ataques com mísseis).

*Andrew Korybko é mestre em Relações Internacionais pelo Instituto Estadual de Relações Internacionais de Moscou. Autor do livro Guerras híbridas: das revoluções coloridas aos golpes (Expressão Popular). [https://amzn.to/46lAD1d]

Tradução: Fernando Lima das Neves.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES