Um outro Lula em construção

O ramo de Oliva que não germinou. Pintura Mural, 100 metros quadrados, 2019, Bogotá, Colombia.
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Por LUIZ ROBERTO ALVES*

Não é possível entender os governos de Lula e Dilma sem ler os resultados das Conferências que trabalharam as diversas ações político-sociais

O PT não está a reconstruir o líder sindical e ex-presidente, mas sim as forças dispersas em busca da terceira via e desejosas do seu tertius. Tais forças certamente ainda não sabem se e quando usarão as referências do tertius gaudens ou do tertius iungens. A depender das pesquisas eleitorais, da competência dos quadros políticos disponíveis e do talento das candidaturas já postas de Lula e Bolsonaro, aquelas forças hoje dispersas – e seus possíveis organizadores – vão trabalhar com distintas formas de engajamento de parceiros políticos e aficionados. No entanto, não há estratégias para os dispersos, em cima do muro ou parasitas. Terá de haver um núcleo denso e consciente de um projeto político.

Oriundas das ciências da administração, tais estratégias de organização e informação de redes e agências podem servir em diferentes situações. Um núcleo político já sólido irá trabalhar nas periferias das candidaturas de Lula e Bolsonaro e aí buscará seu crescimento a partir dos dispersos de variada ordem, uma ação que lembra o tertius iungens, fundamentada em trazer e juntar, continuamente, mais um. Outra leitura implica em situar-se no meio do processo eleitoral e encontrar brechas e fissuras nas duas candidaturas vigentes para, então, construir o prazer da vitória em benefício do tertius gaudens.

No entanto, não há prazer na atual dispersão e na organização das armas. No “cômpito” vivido hoje (G. Rosa) existe a aposta no conhecido modo de governar do atual presidente, simbolizada pela desejada mudança no depositório de votos, a urna eletrônica, que ainda entrará como exigência democrática nas marchas populares futuras. E há um conjunto de memórias ainda fortes da administração Lula, fundamentado em uma liderança laboral que superou em muito o modo getulista de pensar o trabalho e construiu direitos realizados na Constituição de 1988, arrasados parcialmente pela “malvadez neoliberal” (Paulo Freire) e sua deglutição de todos aqueles frutos do ato de trabalhar e garantir dignidade para o mundo periférico e enjeitado que enche as grandes cidades desde os anos de 1930. Essa ação sólida, no entanto, não evita um mundo de acusações sobre acobertamento de roubos e demais mazelas, não plenamente provadas pelo direito e já postas nas alças de mira dos dispersos e do presidente em exercício.

O possível tertius teria de apresentar o novo. Embora nunca se deva dizer, para manter a cientificidade de uma ação inteligente, como foi dito do Jesus de Nazaré, isto é, “pode vir algo bom de Nazaré?” as forças dispersas têm algum tempo para sua reconstrução. No entanto, seus faróis, hoje, apontam para o desespero.

É o que se lê em uma colunista do último dia de maio na Folha de São Paulo, a senhora Rochamonte, rosto vicário dos jornalões paulistas. Uma biografia que se move entre transcendência e liberalismo, a colunista é adequada representante, quer dos jornais, quer do momento das forças liberais incertas rumo ao tertius. O texto segue por ilações conceituais e nele não se vê um grãozinho de racionalidade histórica ou sociológica. Se as ações concretas de Bolsonaro, já compulsadas e provadas também nos documentos da CPI e, antes, no sofrimento das maiorias do povo brasileiro, não exigem provas textuais. No entanto,  o “nefasto Lula” da senhora Rochamonte tem o direito de algumas de algumas frases de verdade. No mínimo de pesquisa. Debalde. Basta à colunista transcender pela mera hipótese do populismo autoritário e navegar por conceitos e adjetivos desesperados: antiga, sem valor, corrupta, autoritária, populista. Um corrente fastidiosa de termos que funcionam ao modo bumerangue e retornam ao seu próprio desespero diante do que veem os olhos e do tempo que passa.

A senhora Rochamonte chega a afirmar o que FHC não disse. Para ela, o voto do prócer político e ex-presidente está garantido para Lula. Ela salta, pois, pelas frases dele e se fixa no voto em vez de pensar antes na bipolaridade eleitoral que o levaria para um voto em Lula. O fato açula o texto. Do meio ao final da tessitura desesperada, são chamadas as forças políticas díspares ao modo discursivo de ordem unida ou “lição de moral” na moçada dispersa e sem rumo.

Nesse ponto, seu liberalismo ameaçado vira um Totem no meio da aldeia confusa e o valor primitivo se atualiza como profecia da destruição da democracia. A julgar pelo término do texto, a senhora Rochamonte entende que Lula será um destruidor da democracia. Aliás, é muito maior sua inflexão fatalista sobre Lula do que sobre Bolsonaro. Será que ela ainda vê brechas do lado do atual governante para uma negociação viável?

O pequeno texto é um valhacouto para a irracionalidade. Será que muita gente ainda é capaz, considerada uma consciência saudável, de dispor o governo que vigorou entre 2003 e 2010 à pecha de destruidor da democracia brasileira?

Antes do breve argumento, convém dizer que este colunista não foi educado para se submeter a chefes, dirigentes partidários e mesmo governantes. Decorre, pois, que não tem qualquer procuração partidária para contrariar a pecha. Ocorre que vige somente a consciência de que este país foi longe demais na bravata embrulhada de razão, ou no esquecimento dos brilhos nativos que de fato indicaram um caminho democrático com forte grau de originalidade, presente nos grandes ensaios civilizatórios, na estética e na ética das culturas populares, no espírito de liberdade do cinema e do teatro, nas efetivas profecias da juventude em momentos dramáticos, nas antigas e sofridas lutas pelo trabalho decente e noutros fenômenos que povoam a  escritura brasileira e enternecem a memória sem precisar citar tantos nomes ao risco de esquecer algum.

Ora, ainda que o ódio liberal (e Lula não se afastou muito do Liberalismo) não possa ser transformado em explicação histórico-sociológica, os feitos e os fatos encarnados em políticas sociais exigem mais da inteligência racional. Se é justa a crítica de que as cúpulas daquela governança amarraram parcialmente os movimentos sociais que buscavam aquela consciência genérica geradora de consciência política (como propõem Agnes Heller e Paulo Freire), é fato histórico que os escalões intermediários da governança, a par de movimentos, foram brilhantes em suas proposições, a saber os avanços nas esferas da cultura, da educação e da participação via conferências. É não só injusto como absurdo objetar uma liderança de governo sem discutir os lugares mais dignos da própria governança, (escalões intermediários e movimentos) pois somente eles criaram a memória que hoje se espalha pelas redes e constrói a candidatura do ex-presidente. O simples apoio do presidente à inteligência e à práxis desses agentes públicos já lhe garantiria a menção de democrata e bom realizador de políticas fundamentais.

Não é possível entender os governos de Lula e Dilma sem ler (ter o prazer de ler, como sugeriu Roland Barthes e outros leitores, outras leitoras) os resultados das Conferências que trabalharam as diversas ações político-sociais: educação, habitação, cultura, ambiente, gestão urbana etc. Elas são a prova definitiva de que aqueles governos construíram facetas novas na sofrida história da democracia brasileira entre autoritarismos. Nenhum outro governo democrático teve escalões intermediários tão bons! A história ainda não lhes ofereceu o lugar merecido para o debate sobre governanças e democracia, fato também devido ao fardo político-partidários do tipo messiânico que a Colônia e o Império nos meteram sobre as costas, o que ainda arde e faz proliferar fungos. Não houve Lula sem agentes públicos e movimentos sociais. Até no que faltou fazer para garantir memória e ação mais longas e menos passíveis de destruição.

Não será feita, parece, qualquer leitura na direção de 2022. Somente exacerbações em torno do suposto lido, do suposto ouvido, do suposto pensado, que se organiza como simulação nos tempos sombrios. Como ato intelectual necessário, o articulista deseja ser contrariado.

No entanto, um sinal claro desse mundo piorado (que tanto preocupou o capitalista sincero Max Weber quanto o socialista entristecido György Lukács) é o texto da senhora Rochamonte. Com o perdão da palavra, um texto nefasto.

Bah, quanto ainda teremos de suportar nas tortuosas linguagens que recheiam a política brasileira, até que não haja como não clamar como Goethe: luz!

*Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.

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