A trajetória filosófica de Giorgio Agamben

Fritz Wotruba (1907-1975), Große Skulptur , 1972.
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Por ARI MARCELO SOLON*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Adam Kotsko.

Adam Kotsko oferece em Agamben’s Philosophical Trajectory uma chave de leitura alternativa àquela subjacente a muitas das interpretações disponíves dos textos do autor. Essas interpretações pressupõem e enquadram esse conjunto de textos como pedras em um monumento ou um templo, a liga entre uma multiplicidade de palavras de uma trajetória intelectual de meio século a operar como uma “dispensa oculta,” rendendo-as como meros mecanismos, sem os quais o espírito do gênio não teria corpo.

Ao assim proceder, na tradição que nos foi legada pelo romantismo tardio, essas interpretações não tanto criticam, quanto comentam os textos que têm diante de si, e ao assim fazê-lo, contribuem como escravos a um senhor, para seu acréscimo e nutrição, ao invés de marcarem sua sobrevida. Não é sem alguma ironia então que parcela considerável dos comentários dedicados aos escritos de Giorgio Agamben acabe restando em contradição com aquilo que esses textos, quando lidos de outra perspectiva, como aquela proposta por Kotsko, chamam e inspiram, quer dizer, que eles sejam desoperados e não interpretados, mas sim usados – para que mil “Agambens” possam florescer, para me remeter diretamente às palavras de Kotsko.

O capítulo primeiro é dedicado ao que outros autores chamam de fase “apolítica” de Agamben. Para Kotsko, não se trata tanto de uma fase apolítica, mas de um desgosto perante as opções que se lhe afiguravam na época da Guerra Fria, entre os anos 1980 e 1990, fazendo com que Agamben se voltasse a uma teoria geral da linguística e uma busca da experiência individual através das ciências humanas.

O segundo capítulo passa a tratar da fase chamada “política” de Agamben, em que se tem início o projeto que lançaria Agamben ao centro do palco da teoria politica contemporânea. À luz da tragédia iugoslava, mas também como uma contribuição ao debate entre Jean-Luc Nancy e Maurice Blanchot acerca da noção de comunidade, Agamben escreve Homo Sacer (ed. UFMG), o homem sagrado que não poderia ser sacrificado, mas ainda assim morto. Valendo-se da distinção entre zoe e bios tal qual articulada por Hannah Arendt, mas também do messianismo fraco de Walter Benjamin. Correspondentemente, Benjamin citando Maimônides, enfatizava como a diferença entre o mundo atual e o mundo messiânico seria, em última instância, ínfima.

Marcada a distinção entre essas duas fases, o terceiro capítulo “Em busca do método” trata da expansão e armação do projeto Homo Sacer, rumo aos domínios da teologia. Em Paulo, Agamben encontra estratégias para avançar em relação ao messianismo fraco de Benjamin, dando a uma palavra que se lhe tornaria tão cara quanto como que sua assinatura, potencialidade, um importante índice histórico. Não se trataria, assim, de apenas um messianismo fraco, mas um Hōs me, um como se não, o inverso de uma ficção, a desoperação da ficção que, ao interroper o curso do tempo, antecipa uma era messiânica pensada de um modo original.

O quarto capítulo mostra como a conclusão de Homo Sacer leva ao uso dos corpos. O uso, ao contrário da obra, implica na desoperação. Ao se desoperar seja a liturgia, seja a lei, têm-se a abertura de um espaço de experiência marcado pela noção de uso, resgatada através da leitura cuidadosa de textos consagrados da tradição ocidental, esse modo de leitura que designamos no início e que, argumentavelmente, pode ser lido no esforço de Kotsko ao propor para que se comece a usá-lo para ler Agamben ele próprio. O quinto capítulo, por sua vez, dedicado a obras tardias, oferece uma explicação interessante para a decisão em editar todos os volumes da série Homo Sacer em uma única obra.

Para além de interesses biográficos, baseados nas conversas que Adam Kotsko travou com Giorgio Agamben em sua casa em Veneza, Kotsko mobiliza esses fragmentos da vida do autor de maneira criativa, desoperando a relação entre vida e obra constitutiva dos cânones de interpretação ainda vigentes no campo das humanidades. Em uma formulação elegante acerca de um esforço filosófico que se lançou no desafio de pensar o contemporâneo, Kotsko sugere que em sua fase apolítica, Agamben foi mais contemporâneo.

Em contraste, em sua fase política, ao ser explicitamente contemporâneo, Agamben acaba estando fora do tempo. De fato, é difícil não ler nesse caráter talvez a sua principal contribuição à arqueologia como método. A arqueologia de Agamben, segundo Kotsko, não busca encontrar uma arche no sentido de um comando a forçar tudo a vir a ser necessariamente no modo pelo qual veio a ser. Pelo contrário, Agamben buscaria inserir um espaço entre nossa tradição e a origem, rendendo a tradição algo contingente e sem fundamento. Argumentavelmente, é o esforço em inserir esse espaço na obra de Agamben, desoperando-a enquanto tal e revelando-a em termos de uma trajetória, que caracteriza e destaca a originalidade e importância de Agamben’s Philosophical Trajectory.

*Ari Marcelo Solon é professor da Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros, livros, de Caminhos da filosofia e da ciência do direito: conexão alemã no devir da justiça (Prismas).

Referência


Adam Kotsko. Agamben’s Philosophical Trajectory: The Development of a Contemporary Thinker. Edimburgo, Edinburgh University Press, 2020, 240 págs.

 

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