O capitalismo e a evolução do valor

Wassily Kandinsky, Amarelo-Vermelho-Azul, 1925.
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Por JOSÉ MICAELSON LACERDA MORAIS*

Introdução do livro recém-lançado

“Servidão econômica” foi um dos termos utilizados por Karl Marx no livro I de O capital, para designar a condição de contínua exploração do trabalhador assalariado sob o capitalismo. O processo capitalista de produção “[…] força continuamente o trabalhador a vender sua força de trabalho para viver e capacita continuamente o capitalista a comprá-la para se enriquecer […]” (MARX, 2017a, p. 652). Desse modo, perpetua-se de forma indefinida no tempo capitalista a produção e reprodução de sua relação social própria (capitalistas, de um lado, trabalhadores assalariados, de outro).

Não haveria maiores problemas se essa relação não envolvesse a apropriação privada da produção realizada de forma social. Se lucro, juro, salário e renda da terra, constituíssem proporções iguais da renda social total, fornecendo, assim, também, igual poder de compra para todos e cada um dos sujeitos sociais. Se o excedente econômico fosse utilizado para proporcionar as mesmas condições e os mesmos níveis, de habitação, saúde, lazer, transporte, educação, etc; enfim, infraestrutura social e econômica para todos e cada um ser humano. Em outras palavras, se as relações sociais capitalistas não fossem fundamentadas na exploração do trabalho social. Afinal, todos somos seres humanos que, independentemente de raça, credo, cor e lugar, temos iguais necessidades sociais, de forma que todas as vidas deveriam importar.

No capitalismo, de forma geral, ao trabalhador assalariado, produtor direto da totalidade da produção social, cabe tão somente uma proporção do produto não mais do que suficiente para sua reprodução. Ele como ser humano não tem como direito os benefícios sociais resultantes de seu próprio trabalho. Apenas o dever de se reproduzir enquanto força de trabalho, independentemente, de quanta riqueza material suas várias gerações, seja na forma de escravo, servo ou trabalhador assalariado, tenham produzido sobre a face da terra.

Ao capitalista, no entanto, cabe uma renda diferente denominada de lucro, uma renda que é derivada da produção social, que deveria beneficiar de igual forma os sujeitos sociais, mas que se torna um privilégio particular de fruição dos benefícios da riqueza material. Não é porque uma pessoa é mais inteligente ou mais empreendedora que outras que ela deveria se apropriar tanto do trabalho como do fruto do trabalho de outros. Em termos do senso comum, não é porque uma pessoa é a mais forte de todas que ela deveria pegar para si a comida de todos. Nesse caso, a única diferença entre instinto e inteligência (razão), seria que o primeiro é uma caraterística da natureza e o segundo da sociedade humana. Todavia, ambos teriam o mesmo propósito: a criação de vantagem de uns sobre os demais (na natureza, sobrevivência, na sociedade humana, exploração do trabalho social). Até agora essa tem se mostrado a essência de organização social que construímos ao longo da história, o fundamento da economia real e da Ciência Econômica.

A história econômica é a história das formas de exploração do trabalho social, desde o escravismo antigo, passando pelo feudalismo, até chegarmos ao capitalismo. O desenvolvimento da economia enquanto ciência, até a nossa atual quadra histórica, é tanto o modo de justificar quanto o de criar formas mais eficientes e mais alienantes de exploração do trabalho social. Uma das maiores virtudes da nossa razão (inteligência) tem sido a de pôr a nu essa essência (fundamento da nossa forma de organização social), da exploração do trabalho social.

Nisso, Marx, com sua teoria do valor e do mais-valor, ainda é o autor dos autores. A nossa maior dificuldade tem sido em aceitar que podemos alcançar uma forma de sociabilidade diferente, mesmo diante da imensa desigualdade social alcançada e do colapso iminente dos recursos naturais do planeta. Em tese, o sentido da razão deveria ser o de dar ao ser humano, enquanto sujeito social, a capacidade de estabelecer relações sociais diferenciadas das relações existentes entre os demais seres vivos na natureza (cadeia alimentar).

No entanto, uma sociedade que fundamenta sua organização na exploração do trabalho, concentra riqueza social nas mãos de poucos, diferencia sua população entre ricos e pobres, elege uma mera representação (o dinheiro) como sentido da vida, transforma pessoas em mercadorias e mercadorias em sujeitos de afeição e distinção, não faz mais do que reproduzir uma representação social da cadeia alimentar da natureza. Pois, a riqueza e a distinção de uns dependem da exploração e da expropriação do trabalho de muitos, enfim, do roubo de muitas horas de vida de seus semelhantes.

O capitalismo ao mesmo tempo em que libertou o indivíduo da servidão feudal criou também uma nova forma de servidão. Todavia, sob o disfarce da liberdade jurídica daquele indivíduo, pois “[…] o trabalhador pertence ao capital ainda antes de vender-se ao capitalista. Sua servidão econômica é a um só tempo mediada e escondida pela renovação periódica de sua venda de si mesmo, pela mudança de seus patrões individuais e pela oscilação do preço de mercado do trabalho” (MARX, 2017a, p. 652-653).

A servidão econômica no capitalismo está diretamente associada a uma forma específica de valor e suas contradições. Ao mesmo tempo tanto encobertas quanto evidenciadas no valor de troca, e, que se expressam numa relação social, também, específica, a relação valor-capital. Que por sua vez, ainda, tem como fundamento a separação do produtor direto de seus meios de produção e subsistência (processo de proletarização) e a concentração desses meios nas mãos de uma diminuta classe de capitalistas detentores da totalidade dos meios de produção e subsistência da sociedade.

Por seu turno, valor é uma palavra que guarda inúmeros significados por (e dentre) diversas áreas, tais como, economia, direito, matemática, música, lógica, filosofia, pintura, etc. De forma genérica, o valor pode representar tanto uma propriedade intrínseca a um objeto ou indivíduo quanto expressar uma relação entre objetos e indivíduos. Quando afirmamos o valor da raiz quadrada de 4 como igual a 2, este resultado representa um valor intrínseco derivado da própria fórmula. Do mesmo modo, quando afirmamos que uma pessoa tem grande valor, relacionamos este termo a certas qualidades próprias do indivíduo, como coragem ou paciência, por exemplo.

Já o valor como expressão de uma relação (seja ela social ou de comparação entre objetos) se apresenta sempre como resultado decorrente de atributos e de processos que ocorreram ou ocorrem na interação entre objetos e indivíduos e entre estes últimos. Isso porque toda relação implica a existência passada ou presente da comparação de um conjunto de quantificadores e qualificadores próprios da interação social. Relações e processos são propriedades intrínsecas à existência social, a quantificação e a qualificação deles estabelece um conjunto de normas, hábitos, heranças, leis, “valores”, etc, necessários para a vida coletiva e sua reprodução como sociedade. Logo, o valor apresenta-se como resultado de relações e processos sociais, do qual se pode deduzir uma categoria de análise com atributos de dimensão nitidamente histórica.

Essa breve digressão deixa claro que o valor deve ser sempre entendido em duas dimensões: (1) como fundamento, um atributo, uma característica essencial, relacionada diretamente a um determinado tempo histórico; e (2) como expressão de algo, o efeito, a aparência, que se manifesta por algum elemento (material ou não) de aceitação social geral. Entre a causa e a manifestação do valor, em cada período histórico, existe um conjunto de mediações, em constante processo de transformação, que atua alterando relações, processos e o próprio conteúdo do valor.

A história do pensamento econômico nos revela tanto a descoberta da lei do valor, fundamento da economia enquanto ciência, quanto os avanços e retrocessos no seu tratamento. Indica, ainda, como o valor pode ser tanto uma categoria reveladora da natureza histórica das sociedades, quanto uma construção intelectual utilizada para justificar e reproduzir uma determinada forma de produção e de distribuição do produto social.

A formulação de uma teoria do valor foi o primeiro passo para tornar a economia uma ciência. Embora, a economia seja reconhecida como tal desde de Adam Smith, ainda não existe um consenso sobre o problema do valor. Contemporaneamente, o problema do valor parece ter se tornado irrelevante dentro da Ciência Econômica. De qualquer forma, coexistem três vertentes distintas de tratamento econômico para o valor. Primeiro, a vertente dos clássicos para os quais o valor deve expressar os preços de mercado, ou seja, uma teoria do valor deve necessariamente explicar a formação dos preços no sistema econômico.

A segunda, representada por Marx, que derivou da teoria do valor dos clássicos, entre outras coisas, uma teoria da exploração da força de trabalho no modo de produção capitalista. Terceiro, a teoria do valor-utilidade dos marginalistas, para os quais o valor é uma variável subjetiva e não está diretamente relacionado nem à produção nem à distribuição, visto que os mercados são pelas forças decisivas da oferta e da demanda formadores de preços e alocadores ótimos dos fatores produtivos.

A partir das três vertentes acima descritas podemos entender que o valor é igual a preço (clássicos), o valor não guarda relação direta com o preço (neoclássicos), e o valor como uma forma histórica específica de produção e reprodução de relações sociais de exploração e expropriação, o capitalismo. De longe, este último aporte parece ser o mais promissor para se pensar uma teoria do valor que relacione economia e sociedade; e não as torne “coisas” de existência separada, como tem feito a própria economia neoclássica, ou simplesmente, faça desaparecer como por mágica a luta social em torno da distribuição do excedente econômico.

O grande legado da economia neoclássica e seus desenvolvimentos, tais como a utilidade marginal, o equilíbrio geral e a síntese neoclássica, pode ser tudo, menos compatível com qualquer tipo de sociedade que não vise a sua própria autodestruição. Destruição de vínculos sociais, pois o processo econômico capitalista exclui grande parte da sociedade da forma econômica mercado, tornando desnecessária à economia grande contingente humano. Destruição da natureza através de um processo predatório de produção e consumo, incompatíveis com a própria preservação de toda e qualquer vida no planeta. Destruição em massa através de armas nucleares ou por outros meios e instrumentos derivados da ciência.

É importante deixar claro que esses problemas sociais e globais não existem por conta da teoria neoclássica. Pelo contrário, sendo seus pressupostos equilíbrio e otimização, o foco da sua problemática econômica não pode ultrapassar os limites de um problema de escolha para maximizar ou minimizar uma função (consumo ou produção). Não que estudos dessa natureza não sejam importantes, eles contribuíram em muito para o entendimento, por exemplo, de que o lucro é maximizado quando a receita marginal for igual ao custo marginal ou, ainda, da seleção de insumos para obtenção de um determinado nível de produção com mínimo custo.

Até tornaram a economia neoclássica a forma dominante no ensino e na produção científica da área. A questão, então, não pode ser sobre a validade da teoria neoclássica, internamente ela é válida e consistente, pois é construída tal como um conjunto de sentenças matemáticas. A questão a ser colocada deve ser sobre o motivo pelo qual, mesmo diante de tamanho desenvolvimento da teoria econômica, chegou-se a uma situação histórica limite tanto social quanto ambientalmente. A única resposta possível parece estar relacionada ao problema da apropriação privada do excedente econômico social.

Entender o valor como substância e como forma de sociabilidade específica (o capitalismo) pode auxiliar a entender tanto os motivos quanto os limites de uma sociedade fundada na servidão econômica e com tendências autodestrutivas (sociais e ambientais). A nossa hipótese é a de que o valor, enquanto fundamento da sociedade capitalista, e ao longo de seu desenvolvimento histórico, se desvincula da sua substância, o trabalho vivo na forma de trabalho abstrato. Em outras palavras, com a expansão e transformação do capitalismo, como forma dominante de organização social, a produção e a acumulação de riqueza se autonomiza do próprio trabalho vivo.

Essa hipótese não é original. Por exemplo, Carcanholo (2011), enfatizou o caráter da “desmaterialização progressiva da riqueza capitalista”. Para ele, a partir de Marx, valor é um processo (sempre em desenvolvimento), mas para o qual se torna impossível atingir o seu limite. Pois, ainda, segundo o referido autor, a completa desmaterialização da riqueza representaria a destruição do valor de uso, ou seja, uma impossibilidade, porque “[…] a destruição do valor de uso implica a destruição do próprio ser humano e, assim, do próprio valor, por ser este uma relação social entre homens. A destruição do valor de uso seria a do valor, a da mercadoria e a da sociedade […]” (CARCANHOLO, p. 72)

No entanto, a perspectiva por nós adotada é a de que a desmaterialização da riqueza capitalista, isto é, do valor, possui um limite muito mais elástico. De modo que corresponde tanto a um processo de separação do valor do mais-valor quanto de autonomização do valor frente ao trabalho abstrato, libertando o processo de acumulação dos limites impostos pela produção material dos valores de uso.

Portanto, o capitalismo do século XXI, assume novas e poderosas características, entre as quais destacamos: (1) a separação entre resultado (riqueza) e causa (força de trabalho social em geral), que não necessariamente implica a destruição do valor de uso, mas que o torna em grande medida secundário ao processo de acumulação; (2) o estabelecimento de um novo motor do processo de acumulação (digital-financeiro), que se alimenta e se nutre de zeros e uns, em um circuito semifechado (intra, interempresarial, intersetorial e mundial); (3) a impressão de um caráter secundário a produção de valores de uso e seu processo de acumulação, que passam a servir tão somente como válvulas de ajustes e compensações de transações financeiras, legais ou não; e (4) a criação de instituições e mecanismos que permitem a lavagem de grandes somas de dinheiro, como uma necessidade substantiva dessa nova etapa do capitalismo (embora esse assunto específico não seja analisado no presente livro).

Francisco de Oliveira foi outro importante autor que tratou do referido tema a partir de sua tese sobre “os direitos do antivalor”. Embora se trate da análise de um elemento externo ao processo de acumulação e de reprodução da força de trabalho, “o padrão de financiamento público da economia capitalista” durante o Welfare State, representa, por seu turno, um poderoso insight sobre as transformações do valor no contexto do século XX. Para Oliveira (1988, p. 14), “[…] o padrão de financiamento público ‘implodiu’ o valor como único pressuposto da reprodução ampliada do capital, desfazendo-o parcialmente enquanto medida da atividade econômica e da sociabilidade em geral”.

A tese nesse livro apresentada é a de que essas transformações no valor, como acertadamente compreendidas por Oliveira, estão inscritas nas próprias leis gerais de movimento do capital e suas metamorfoses. Portanto, a análise do capital, do trabalho e da acumulação, no século XXI, precisa ser re-contextualizada, pois estamos diante de: (1) um novo padrão sistêmico de riqueza (financeirização); (2) uma revolução tecnológica de longa duração e amplo alcance; (3) um novo padrão de automação; (4) um novo conjunto de mercadorias, setores e serviços de base tecnológica; e (5) um novo Estado (neoliberal), tanto comandado quanto refém do capital, que atua como instrumento para efetivar esse novo padrão de riqueza e reorganizar as relações sociais a tal padrão.

Merece igualmente destaque nessa introdução “os novos fenômenos do capitalismo contemporâneo”, destacados por Francisco Teixeira e Celso Frederico, analisados na obra Marx no século XXI. Esses novos fenômenos estão sintetizados sob a denominação de “cooperação complexa”. Seguindo a metodologia de Marx, estes autores enfatizam a “cooperação complexa” como desdobramento “natural” da grande indústria, assim como esta o foi da manufatura. A particularidade da “cooperação complexa” reside numa forma de produção de mercadorias na qual o movimento social do capital reúne, em uma só existência, o capital-dinheiro, o capital-produtivo e o capital-mercadoria; diferentemente “[…] da grande indústria, na qual o capital-dinheiro era um negócio particular dos bancos; o capital produtivo, dos industriais; e o capital-mercadoria, dos comerciantes” (TEIXEIRA & FREDERICO, p. 109).

Segundo eles, ainda, a “cooperação complexa”, além de ser uma forma menos progressiva que a grande indústria, representaria, também, a forma limite do capital; dado que opera no limite da fronteira de substituição de trabalho vivo por trabalho morto. Menos progressiva porque o neoliberalismo, a reestruturação produtiva e a redivisão social do trabalho, como momentos desse todo, representaria um movimento ofensivo contra a classe trabalhadora, tanto em termos de destruição da legislação de proteção ao trabalho assalariado quanto de sindicatos. Pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que Teixeira e Frederico conseguiram atualizar “O Capital” no que se refere ao processo global de produção do capital no capitalismo contemporâneo (capitalismo digital-financeiro-de-vigilância).

A grande questão que fica em aberto, a qual todos autores citados nessa introdução ajudaram a posicionar com mais clareza, e, que pretendemos desenvolver nos capítulos seguintes, pode ser assim formulada: e se o capital e seu respectivo processo de acumulação conseguir gerar os meios de se reproduzir para além da fronteira de substituição de trabalho vivo por trabalho morto? Se isso se apresentar realmente como uma possibilidade, podemos afirmar, com muita convicção, que caminhamos para um contexto social muito mais brutal que em qualquer época da história humana.

*José Micaelson Lacerda Morais é professor do Departamento de Economia da URCA. Autor, entre outros livros, de A última revolução: crítica de economia política.

Referência


José Micaelson Lacerda Morais. O capitalismo e a revolução do valor: apogeu e aniquilação. São Paulo, Amazon (Independently Published), 2021, 130 págs.

Bibliografia


CARCANHOLO, Reinaldo. Capital: essência e aparência. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2017.

OLIVEIRA, Francisco. O surgimento do antivalor: capital, força de trabalho e fundo público. São Paulo: Novos Estudos, n. 22, outubro, 1988.

TEIXEIRA, Francisco José Soares; FREDERICO, Celso. Marx no século XXI. São Paulo: Cortez, 2009.

 

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