As redes sociais como padrão jornalístico

Imagem: Brett Sayles
image_pdf

Por RICARDO MUSSE*

Réplica à resenha de “China contemporânea” feita por Carlos Graieb

A resenha de Carlos Graieb do livro China contemporânea (Autêntica) publicada no jornal Folha de S. Paulo  encontra-se aquém da expectativa do leitor e do padrão usual na mídia impressa. Falta-lhe objetividade e imparcialidade. A dicção, os adjetivos, os tipos de juízos emitidos foram emprestados da linguagem dos influenciadores digitais. Nesse mimetismo, deliberado, prevalecem cacoetes dos ativistas das redes sociais: discorrer, em tom peremptório, sem meditação prévia, sobre assuntos que não dominam. As considerações do resenhista transmitem a impressão de leitura apressada e incompleta. Vejamos.

No comentário do artigo de Luiz Enrique Vieira de Souza sobre a situação ambiental na China o resenhista, de forma unilateral, reporta apenas os aspectos negativos. Ignora as páginas que apresentam avanços como a paulatina internalização de critérios ambientais na legislação chinesa e investimentos pesados em energia limpa, eficácia energética e reflorestamento. O leitor não é sequer informado que o objetivo explícito do sociólogo foi estabelecer um balanço do andamento contraditório da questão do meio-ambiente, da polaridade entre “fluxos de modernização ecológica e vetores de degradação ambiental”.

Graieb qualificou como “leitura árdua” o artigo “A ascensão chinesa e a economia-mundo capitalista: uma perspectiva histórica”, do economista e professor da USP, Alexandre de Freitas Barbosa. Os motivos elencados – a confrontação de teorias da história econômica, o esforço de abstração – revela apenas o descaso do resenhista em relação ao pensamento conceitual, forma de conhecimento inaugurada por Sócrates e eixo estruturante da ciência moderna desde Galileu.

O resenhista acusou Elias Jabbour e Alexis Dantas, especialistas reconhecidos por economistas de diferentes escolas como Luiz Carlos Bresser Pereira e Luiz Gonzaga Belluzzo pela originalidade de suas análises sobre a China, de “compromisso ideológico”. A ideologia, assim posta, é atribuída ao outro, um recurso argumentativo que foge da discussão intelectual, recorrendo ao ad hominem. Esse registro suscita a indagação: por que os juízos prévios de Carlos Graieb sobre a China e Hong-Kong não são “ideológicos”?

A resenha não informa aos leitores sequer que o artigo de Jabbour e Dantas examina do papel do Estado na gestão, coordenação e planificação da economia, sustentando a tese de que essa intervenção teria gestado uma formação econômica-social específica: “o socialismo de mercado”. Tampouco menciona os conceitos centrais do ensaio – “nova economia do projetamento” e “geopolítica institucionalizada pela China”.

Graieb recusa-se a comentar o artigo de Vladimir Pomar, por conta das credenciais de “ativista político” do autor. Pomar é conhecido nos meios jornalísticos por ter sido membro do Diretório Nacional do PT e coordenador da campanha de Lula em 1989. Sua respeitabilidade intelectual deriva também de suas investigações sobre o enigma chinês, assunto sobre o qual publicou nos últimos 40 anos quase uma dezena de livros. Nesse caso, a atitude do resenhista assemelha-se à dos ideólogos da “Escola sem partido” que pretendem, entre outras barbaridades, banir da bibliografia os livros de Karl Marx, um destacado ativista político.

O resenhista confessa que o artigo de Francisco Foot Hardman, historiador e professor de literatura na Unicamp, o deixou “desconcertado”, mas não esclarece se foi por se deparar a aplicação dos conceitos de simultaneísmo e fusão aos espaços-tempos histórico-culturais ou por não conseguir comentar as obras analisadas no artigo, do romancista Mo Yan e do cineasta Jia Zhangke. Sua reação ao desconforto, uma boutade desprovida de graça, foi surpreendente, pois trata-se de comportamento típico de semiletrados.

Graieb não dissimula seus preconceitos e seu anti-intelectualismo. A resenha abre com uma frase adversativa: “fui ao livro organizado pelo sociólogo Ricardo Musse com interesse, mesmo sabendo que a pegada era acadêmica”. Não admira que prefira repetir estereótipos a reconhecer as valiosas contribuições brasileiras para entender a gênese, o desenvolvimento e o futuro da ascensão chinesa.

* Ricardo Musse é professor do Departamento de Sociologia da USP, organizador de China contemporânea: seis interpretações (Autêntica) e autor de Émile Durkheim: fato social e divisão do trabalho (Ática).

Versão ampliada de artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 14 de agosto de 2021.

Referência


Ricardo Musse (org.). China contemporânea: seis interpretações. Belo Horizonte, Autêntica, 2021, 198 págs.

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
7
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
8
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
9
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
10
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
11
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
14
Terras raras e soberania: o elo invisível entre ciência, indústria e poder
05 Dec 2025 Por CELSO PINTO DE MELO: A entrada em operação da Serra Verde é um marco: faz do Brasil o único produtor ativo de terras raras fora da Ásia, mas também expõe limites estruturais. A falta de domínio tecnológico e o processamento final realizado na China mostram que o Brasil ainda exporta minério, não inteligência mineral
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES