Por TARSO GENRO*
Comentário sobre o livro de José Luís Fiori
A síndrome de Babel e a disputa do poder global traz para a mesa da intelectualidade brasileira e para os círculos políticos do campo democrático – centristas progressistas, esquerda socialista e social democrata – uma contribuição que certamente estará entre as grandes obras que “a um só tempo (é de) teoria-história-conjuntura”. É um livro dramático, grandioso e realista, em que o espetáculo da história heroica da formação da cidadania moderna no capitalismo do Estado de Direito é narrada – ao mesmo tempo – com a moderada expectativa da difícil regeneração da utopia democrática moderna, com a prevenção que o pior ainda pode acontecer: para isso, Bolsonaro está aí.
No livro, Fiori combina as reflexões sobre as mudanças estruturais na história do capitalismo moderno com o cotidiano da política, a busca de “mudanças chaves” e silenciosas no processo de acumulação global, com a sua integração – sempre – com as grandes políticas de Estado na formação dos Estados Nacionais. O livro contém 19 artigos-ensaios, sobre as transformações no mundo capitalista, e 23 sobre a América Latina e o Brasil, mais um Prefácio e um “Post-scriptum”. Este, no seu encerramento, formaliza a seguinte conclusão; “o mais importante está na capacidade de extrair as consequências e implicações estratégicas adequadas da tese formulada por Max Weber de que, “em última instância, os processos de desenvolvimento econômico são lutas de dominação.”
É impossível dizer quais são os artigos-ensaios mais importantes do livro, consideradas a riqueza e a profundidade temática dos seus textos, mas, como sugestão de roteiro para sua leitura imediatamente compreensiva eu indicaria “O lugar da Rússia na estratégia global dos Estados Unidos”, de uma parte, e, de outra, os dois ensaios que remetem ao título do livro: os textos “A síndrome de Babel” (1 e 2), na parte relacionada com as transformações mundiais e “A impotência dos economistas liberais”, na parte em que o autor discute o “Brasil e a América Latina.”
Todo o livro é valioso e imprescindível e a minha indicação diz respeito a uma compreensão mais imediata do seu sentido estratégico: o mito de Babel, que o livro traz no seu título é a metáfora do desentendimento humano que os seres humanos, mesmo com mandato divino, não souberam superar, mas a mitologia grega de “Teseu e o Minotauro”, orientado pelo fio Ariadne, ficaram vinculados – segundo a imaginação de Borges – a um destino de emoções mais ligadas às emoções cotidianas. O método de Fiori, na verdade, procura viver nestes dois espaços da História.
As grandes narrativas de “classe x classe” no velho capitalismo industrial mostraram que estas lutas de dominação tinham forte conteúdo material-militar, no interior dos países coloniais e semicoloniais, que pretendiam se constituir como nações livres; Hoje, todavia, as agressões internas – mesmo entre os dominantes e dominados do mesmo país – vem mudando, da aniquilação direta de exércitos em confronto, para um controle dos corações e mentes, mensagens fundamentalistas do estilo religiões do dinheiro, dissolução e aniquilamento das identidades humanas específicas, redução das taxas de liberdade por prédicas mistificadoras e por técnicas de dominação psíquica em rede.
As grosserias e psicoses dos líderes políticos mais mitômanos passam a compor uma agenda aparentemente desconexa, mas que tem, em cada ato dissimuladamente apolítico, um sentido político claro. De recuperação do patriarcalismo, instrumentalização da mulher, racismo, homofobia e ataques a populações originárias, mas – na totalidade do projeto neoliberal – está sempre a destruição dos programas sociais e a concentração de renda. A economia financeira do rentismo global amassa a memória das conquistas e espalha a miséria, que desperta entre os seres humanos os instintos mais brutais de luta pela vida, com a supressão natural do próximo.
O vídeo que circula nas redes exibindo o Presidente Bolsonaro cometendo uma grosseria contra o Governador do Rio Grande do Sul ao lado de sua ministra da Agricultura, nos seus termos machistas – doentios e desrespeitosos – além de ser a expressão óbvia de uma personalidade sociopata no seu momento mais delirante, também é um atestado do estado mental e cultural de boa parte dos seus seguidores gaúchos. E igualmente de todos aqueles que desprezam os protocolos da representação política, que até nos nossos piores momentos de Governo, caracterizaram o Rio Grande.
Bolsonaro não se importa de iludir com brutalidade, porque esta é a sua forma de passar uma mensagem para os bandidos que lhe cercam e de promover um constrangimento, para “avisar” que ele continua o mesmo, aos que também lhe cercam, mas não são bandidos já configurados. A racionalidade democrática das luzes é substituída pela irracionalidade fascista, que impõe sua “razão como exceção”: os movimentos de Bolsonaro, na ação, fazem as suas próprias normas “legais” e de protocolo republicano, em cujo altar tombam a dignidade humana e qualquer sinal de grandeza da política da democracia liberal.
Os tempos curtos – até instantâneos de cada conjuntura – (este “fato conjuntural” amanhã será substituído por qualquer outro mais brutal!) somam cotidianos sem sentido: as políticas sem conteúdo estrutural, os modos de vida passivos e perplexos cercados pelo ódio – particularmente entre os pobres – ao mesmo tempo em que desunem, ao informalizar a política e substituí-la pelas expressões de uma contínua de símbolos. Estes símbolos, todavia, só aparentemente não se comunicam, porque sua sequência é uma face inversa da razão, já que ao invés de libertar, ela escraviza, ao invés de suscitar dúvidas individuais e coletivas, uniformiza pela bestialidade; ao invés de coesionar a sociedade como comunidade transforma-a em hordas. No entanto, a razão não está morta e ela reage.
Mas qual o tamanho e a força desta defesa? No final de seu conto “A casa de Asterión”, Borges faz ficção uma ficção do diálogo entre Ariadne e Teseu, que recebera dela – Ariadne – a espada para matar o Minotauro e também lhe entrega o “fio”, que depois de cumprida a missão o traria de volta pelos caminhos do labirinto. E o faz assim: “O sol da manhã reverberou na espada de bronze. Já não restava nenhum vestígio de sangue. Acreditas, Ariadne? – disse Teseu –, o Minotauro pouco se defendeu. A “conjuntura”, que exigia a decisão de resistência de Teseu e a cumplicidade amorosa de Ariadne, no conto de Borges, mudara completamente de pele e a vitória do “Herói”, pois neste momento da história a mitologia foi apenas um enlace vulgar de cotidianos sensatos.
Como estamos saturados de análises conjunturais, tanto feitas por competentes analistas da imprensa, como por bedéis analíticos que apenas replicam as vozes dos donos desta mesma imprensa, ouso sugerir uma leitura para compreendermos melhor a longa conjuntura que estamos vivendo, fincada as suas raízes nestes dois últimos séculos.
O ex-Ministro Celso Mello, na minha opinião entre as grandes figuras do conservadorismo democrático-republicano, serve-se da História e fulmina: “Carta de Bolsonaro lembra pacto assinado por Hitler.” O que disse Celso Mello tem, na sua base, uma retrospectiva do que foi o nazifascismo nos últimos 100 anos, não aceitando que as manifestações oportunistas, nas conjunturas “curtas”, sejam capazes de representar uma nova moralidade política e uma nova ética pública para estabilizar o ritual democrático. Isto porque uma nova moralidade, a partir da palavra de quem estuprou os fundamentos desta mesma época – presentes da racionalidade iluminista de caráter democrático – só pode vir por dentro da democracia, jamais das cavernas monstruosas do fascismo e da dominação colonial.
Isso nos vem como conclusão, tanto da forma como do método, do livro de Fiori, um dos grandes documentos econômicos, políticos e morais, da luta por um Brasil justo e humanizado pela grandeza da luta democrática e social que a inteligência nos ajuda a promover e entender.
*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Referência
José Luís Fiori. A síndrome de Babel e a disputa do poder global. Petrópolis, Vozes, 2020, 200 págs.