Quase nada de azul sobre os olhos

Robert Rauschenberg, Spot, 1963
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Comentário sobre o romance recém-lançado de Henriette Effenberger

Um rápido passeio pelo cenário da literatura brasileira contemporânea vai revelar um fenômeno típico do século XXI: a multiplicidade de estilos e de formas, enterrando de vez o conceito do século anterior de “correntes” ou “movimentos”.  O mesmo ocorre nas artes plásticas ou na música, mas é sempre bom salientar que sintomas já surgiam em meados do século anterior.

A literatura de ficção, especialmente, é cada vez mais contaminada por uma urgência narrativa, fruto da adaptação às novas mídias. Os microcontos, as crônicas de caráter impressionista, a escrita célere e quase sempre superficial, são marcas de uma época em que as formas de comunicação parecem cada vez mais trocar a profundidade elaborada pelo alcance logarítmico de um público virtual.

Algumas obras ficarão, sem dúvida. No mínimo, como retrato de época. A maioria será esquecida, e é bem possível que boa parte dos escrevinhadores não tenham o menor interesse em serem lidos daqui a cinquenta anos, como almejavam os literatos de antanho. Alguns, na verdade, nem querem que seus escritos sejam lidos daqui a quinze dias, pois já estarão velhos. “Escrevo hoje para ser lido hoje, amanhã falarei de outro assunto”, parece ser uma das máximas adotadas pelos “pós-tudo” da www.

Por tudo isso, é sempre uma boa surpresa quando encontramos autores que conseguem costurar enredos mais elaborados com linguagem ágil e direta, logrando bom resultado. Henriette Effenberger faz parte desse seleto grupo. Seu romance Quase nada de azul sobre os olhos constitui um belo exemplo de escrita que se despe de todos os maneirismos da “velha” literatura, como descrição de cenários ou psicologismos (embora até haja um psiquiatra na trama), e investe em diálogos e ações, reduzindo ao mínimo a descrição de situações e locais.

No primeiro capítulo, uma personagem ainda sem nome tranca a casa, joga a chave fora e embarca para a Europa. Os capítulos seguintes introduzem um elenco onde todos são protagonistas em alguns momentos e coadjuvantes no conjunto da narrativa. A trama interliga todos, com nuances inesperadas. A mocinha pode ser cruel, o marido infalível pode ser descartado, o inútil pode ser um elemento motivador, a mulher forte pode ser um fiasco emocional. A complexidade humana se instaura em poucas linhas, e os conflitos nunca emergem de forma gratuita.

São magistrais os capítulos onde, só através de diálogos, se estabelece a relação entre uma filha cuidadora e o pai com Alzheimer. A princípio podem parecer excessivos, até angustiantes, mas se revelam fundamentais para o desenlace da trama. A autora cria um clima de suspense progressivo, que vai desembocar num final surpreendente.

Final surpreendente? Isso não é coisa do século XIX? A maestria de Henriette Effenberger está justamente em filtrar e incorporar de forma equilibrada os grandes trunfos da literatura clássica, moderna e contemporânea: uma boa história, um desenvolvimento arguto e não-linear, e uma linguagem concisa e coloquial, que incorpora as imperfeições da fala sem prejuízo do conteúdo.

Contista premiada, autora de literatura infantil, a escritora é geralmente apresentada como “feminista”, participante do Coletivo Mulherio das Letras. Independente da carga simbólica do adjetivo, Henriette desnuda de forma democrática homens e mulheres em sua escrita, apontando suas limitações e mesquinharias, seus ódios e paixões, mas deixando também entrever momentos de coragem e resistência. Não é fácil, não é raso, e não é pouco.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

 

Referência


Henriette Effenberger. Quase nada de azul sobre os olhos. São Paulo, Alcaçuz/ Telucazu, 2021, 162 págs.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Costa Júnior Maria Rita Kehl Vladimir Safatle Yuri Martins-Fontes Samuel Kilsztajn Eleonora Albano Thomas Piketty Francisco Pereira de Farias Claudio Katz Marilia Pacheco Fiorillo Fábio Konder Comparato Heraldo Campos Jorge Luiz Souto Maior Renato Dagnino Luiz Eduardo Soares Gerson Almeida Igor Felippe Santos Berenice Bento Matheus Silveira de Souza Alexandre de Freitas Barbosa Armando Boito José Geraldo Couto Priscila Figueiredo Dennis Oliveira Annateresa Fabris Carla Teixeira Antonino Infranca Salem Nasser Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Andrew Korybko Bernardo Ricupero Walnice Nogueira Galvão Ronald Rocha Henry Burnett Anselm Jappe Fernando Nogueira da Costa Leonardo Avritzer Marjorie C. Marona João Adolfo Hansen Tarso Genro Ricardo Antunes Ricardo Abramovay Flávio Aguiar Marcelo Módolo Luís Fernando Vitagliano Leonardo Boff Michael Löwy André Márcio Neves Soares Jean Marc Von Der Weid Marcelo Guimarães Lima Slavoj Žižek José Luís Fiori Ronald León Núñez João Paulo Ayub Fonseca Caio Bugiato Leonardo Sacramento Eleutério F. S. Prado Kátia Gerab Baggio João Carlos Loebens Julian Rodrigues Flávio R. Kothe Michel Goulart da Silva Boaventura de Sousa Santos Afrânio Catani Eduardo Borges Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcos Aurélio da Silva Sandra Bitencourt Carlos Tautz Mariarosaria Fabris Michael Roberts Fernão Pessoa Ramos Francisco de Oliveira Barros Júnior Daniel Brazil André Singer Atilio A. Boron Osvaldo Coggiola Juarez Guimarães Everaldo de Oliveira Andrade Manchetômetro Daniel Costa Paulo Sérgio Pinheiro Francisco Fernandes Ladeira Ladislau Dowbor Luis Felipe Miguel Henri Acselrad Luiz Roberto Alves Valerio Arcary Bruno Machado Eugênio Trivinho Ronaldo Tadeu de Souza João Feres Júnior Tales Ab'Sáber Alysson Leandro Mascaro Antônio Sales Rios Neto Luiz Bernardo Pericás Alexandre de Lima Castro Tranjan Alexandre Aragão de Albuquerque Lorenzo Vitral Manuel Domingos Neto Gilberto Maringoni Gabriel Cohn Daniel Afonso da Silva Ari Marcelo Solon Chico Alencar Bento Prado Jr. Ricardo Fabbrini Gilberto Lopes Vinício Carrilho Martinez Marcos Silva Lucas Fiaschetti Estevez João Sette Whitaker Ferreira Otaviano Helene Bruno Fabricio Alcebino da Silva Sergio Amadeu da Silveira Celso Frederico Luiz Renato Martins Paulo Capel Narvai Elias Jabbour Érico Andrade Airton Paschoa Marilena Chauí Milton Pinheiro João Carlos Salles Dênis de Moraes José Dirceu Eugênio Bucci Luiz Werneck Vianna Jean Pierre Chauvin José Machado Moita Neto Ricardo Musse Chico Whitaker José Micaelson Lacerda Morais José Raimundo Trindade Eliziário Andrade Luiz Marques Marcus Ianoni João Lanari Bo Lincoln Secco Remy José Fontana Luciano Nascimento Rodrigo de Faria Luiz Carlos Bresser-Pereira Paulo Martins Antonio Martins Benicio Viero Schmidt Rubens Pinto Lyra Tadeu Valadares Leda Maria Paulani Paulo Fernandes Silveira Vanderlei Tenório Celso Favaretto Paulo Nogueira Batista Jr Anderson Alves Esteves Denilson Cordeiro Jorge Branco Rafael R. Ioris Liszt Vieira Andrés del Río Mário Maestri

NOVAS PUBLICAÇÕES