Necropoder e genocídio

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Por Juarez Guimarães*

A luta contra a pandemia do coronavírus só pode ser levada adiante, com um mínimo de possibilidade de redução de seus enormes danos, se for combinada com a luta pelo fim democrático do governo Bolsonaro.

Ao se posicionar contra a construção de um fim democrático imediato ao governo Bolsonaro, inclusive publicamente contra um possível encaminhamento de um impeachment, a maioria da direção do PT está cometendo o maior erro de sua história. Mais grave, inclusive, do que aquele que foi indicar Levy para o comando da economia, desarticulando de saída uma base política e social popular de luta contra os golpistas.

Como maior partido da oposição, como potencial nucleador da esquerda e do movimento democrático popular, a posição do PT torna-se politicamente, de modo inconsciente, uma âncora da continuidade do governo Bolsonaro. Se nem o PT, ou a maioria do PSOL ou o PC do B, defendem o fim democrático do governo Bolsonaro, porque o defenderiam os neoliberais que fazem parte da coalizão que elegeu Bolsonaro?

A proposta de primeiro derrotar o coronavírus e, depois, derrotar o governo Bolsonaro é feita em nome de que a defesa da vida do povo brasileiro deve vir antes de qualquer cálculo de tática política. Mas falta a esta proposta o mínimo entendimento de cultura sanitária: não é possível derrotar o coronavírus com Bolsonaro no governo do Brasil!

Se o PT estivesse hoje no governo, em uma frente de esquerda, reunindo em torno de si toda a inteligência sanitária do país, seria já muito difícil deter o avanço do coronavírus e evitar uma catástrofe. Nestes últimos cinco anos, houve uma grande destruição da rede social de proteção: a rede do Programa Médico de Família (que cobria 65 milhões de brasileiros), a massiva retirada de investimentos do SUS, do Sistema Único de Assistência Social, do Bolsa Família; agravado por um radical avanço do desemprego, da informalidade, do acréscimo das populações de rua, dos setores mais vulneráveis. A inteligência sanitária já falava, pela voz de um dos seus mais autorizados intelectuais, Gastão Wagner, do risco de uma “barbárie sanitária”. Isto, antes da pandemia.

O que o governo Bolsonaro vem fazendo – de modo totalmente contraditório, desarticulado, retardatário e principalmente com seu viés antisanitarista e neoliberal – é absolutamente ineficaz para deter a escalada da pandemia no Brasil. Com a pandemia já instalada, Bolsonaro continua defendendo a realização de cultos evangélicos! O ministro da Saúde, que vem da área privatista, já decretou que haverá um colapso do sistema de saúde diante do aumento previsto dos casos no final de abril! E o ministro da economia mobiliza recursos para atender empresários, enquanto ataca os trabalhadores!

Na última reunião do Diretório Nacional do PT, realizada em plena pandemia e crise aguda da economia, como um “shadow cabinet” (um governo paralelo), a maioria fez aprovar linhas de enfrentamento da pandemia e da crise. São recomendações ao governo Bolsonaro? São marcações de posição para acumular força em uma futura disputa eleitoral? Na verdade, prevalece, na prática, uma política de “fazer oposição” ao governo Bolsonaro, preservando o seu mandato.

Necropoder

Quando perguntado sobre um alívio da superpopulação prisional brasileira diante da ameaça de contaminação do coronaviírus, o ministro Sergio Moro logo se pronunciou dizendo que isso seria uma ameaça à sociedade. Na fala, o fascista se autodenuncia: então os 812 mil presos no Brasil, 41,5 % dos quais sem sequer terem sido julgados, segundo o Conselho Nacional de Justiça,não fazem parte da sociedade?

Devemos a Achile Mbembe, atualizando o discurso denunciador da violência colonial de Franz Fanon, o conceito de “necropoder” para denunciar um poder que, em sua própria lógica, descarta, estupra e mata. A escravidão teria sido uma experiência de necropoder, assim como em geral a violência colonial na América, na África, e na Ásia. Fascismo e nazismo seriam experiências de necropoder. A população da Palestina – e em tantas áreas de guerra no mundo contemporâneo – vive sob o necropoder. O neoliberalismo, em sua forma expansiva, tem uma racionalidade de necropoder.

O governo Bolsonaro é um governo formado e dirigido por uma dinâmica de necropoder em, pelo menos, sete dimensões.

1. Defende explicitamente a tortura, a ditadura militar e o uso da violência na política, inclusive com frequência prega o “extermínio dos adversários”.

2. Atua para legitimar, legalizar e aumentar a violência policial contra as populações pobres. Como se tem documentado, a letalidade das ações policiais vêm aumentado vertiginosamente.

3. Incentiva o feminicídio, como expressão de suas políticas, ao mesmo tempo, armamentistas e agressivamente contrárias aos direitos das mulheres. De novo, as estatísticas sinalizam o recrudescimento destes crimes.

4. Pratica, ultrapassando os limites da crueldade, cortes em série em políticas de grande repercussão social, atingindo diretamente as populações mais vulneráveis e mais pauperizadas. Além de mais desigual, o Brasil já retornou ao Mapa da Fome.

5. Ataca as próprias bases de financiamento e organização do SUS, em si deficiente, apesar de todas as suas conquistas históricas. O corte massivo de verbas, a desorganização do Programa Médico de Família, os planos de privatização criam um contexto de “barbárie sanitária”. A mortalidade infantil, em queda desde décadas, voltou a subir no Brasil.

6. Incentiva os ataques violentos aos movimentos sociais do campo, aos quilombolas e às populações indígenas, legitimando uma retomada exponencial dos crimes inomináveis cometidos pelas grandes mineradoras e empresários agrários. A CPT tem registrado o inventário destes assassinatos.

7. Por fim, a própria natureza miliciana do governo, seu estreito contato com a dinâmica das milícias, abrem certamente um canal de contágio das instituições – antes no Rio, agora em todo o Brasil – com o crime organizado, que opera com a moeda corrente da violência.

Não se pode, nem se deve, nem está inscrito em qualquer lógica democrática, fazer simplesmente oposição a um governo de necropoder, contabilizando o seu desgaste eleitoral para uma vitória ao final de seu mandato. Com base mesmo na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estabelece um mínimo civilizatório, seria preciso por um fim democrático a um governo de necropoder. Quando se conforma com a violação diária dos direitos humanos, é a própria identidade política democrática que se perde. Até a luta democrática passa a girar em um espaço vazio.

Construir uma saída democrática

As esquerdas brasileiras, desde o início, por uma dificuldade de caracterização do governo Bolsonaro, por confusão e, principalmente, pelo seu viés institucionalista, que prevalece mesmo em uma ambiência de golpe e violação constitucional permanente, adotaram um tom oposicionista em relação ao governo Bolsonaro como se ele tivesse sido formado e se orientasse pelo princípio de respeito à democracia.

Esta postura apoia-se em três argumentos. O primeiro diz respeito à legitimidade do governo Bolsonaro: afinal, ele foi eleito por uma maioria de brasileiros. Este é um argumento desmoralizante: ele só pode ser eleito por conta de umo golpe contra a presidenta Dilma, devido à prisão ilegal de Lula, devido ao investimento ilegal e massivo, não contabilizado, de dinheiro de empresas em fake news. Em uma democracia, minimamente constitucional, Bolsonaro, com sua retórica fascista, não poderia nem mesmo ser candidato!

O segundo argumento percorre o caminho das alianças e tem sido defendido principalmente pelo PC do B. Diante do inimigo fascista, a esquerda deveria compor uma frente política, não necessariamente eleitoral, com os neoliberais que hoje estão na direção da Câmara dos Deputados, no PSDB e no PMDB, em partidos do mal chamado “centrão”. Ora, estes “aliados” neoliberais têm seguidamente apoiado o governo Bolsonaro em suas medidas mais importantes de cortes de direitos sociais, trabalhistas e em suas políticas antinacionais de privatização.

Sem formar uma identidade frentista própria, as esquerdas submergem no “pântano neoliberal”, de acomodação semioposicionista ao governo Bolsonaro, dividem as suas bases sociais e desorganizam o seu caminho democrático. Seria necessário formar uma unidade ampla democrática e popular e se relacionar, em circunstâncias precisas e delimitadas, com as contradições da coalizão neoliberal que sustenta Bolsonaro.

O terceiro argumento, repetido sem cessar, é a força política de Bolsonaro, considerada impossível de ser derrotada na atual conjuntura. A correlação de forças seria desfavorável a qualquer movimento democrático que vise por fim ao governo Bolsonaro. Ora, o contrário é evidente: o governo Bolsonaro, por seu caráter de facção e por sua política econômica fortemente antipopular, não consegue estabilizar uma base parlamentar e vê sua base de apoio social minguar continuamente. O único período em que esta tendência foi suspensa – não invertida – foi no final de 2019, quando um coro ensurdecedor de toda a mídia neoliberal, vendeu para a população a ideia de que a retomada da economia havia começado. Mas essa nova ilusão se desfez logo, como espuma.

A defesa de uma política democrática para por fim ao governo Bolsonaro foi a principal bandeira das esquerdas do PT na preparação do 7º Congresso do partido. Mas ela foi derrotada, com o pressuposto não discutido de que cabe esperar as eleições de 2022. Agora, ela retorna por meio da voz ouvida nos panelaços e por uma forte agudização da crise do governo Bolsonaro.

Errar na política é comum, mais frequente ainda quando se formam e se tomam decisões sem ouvir e debater reflexiva e democraticamente com as opiniões diferentes. O melhor dos 40 anos do PT foi sempre sua democracia interna e sua sensibilidade para ouvir a voz das ruas.

Mas há erros políticos – pela tragédia que contribuem para gerar – que não podem ser reparados. Estamos diante de tal situação. A luta contra a pandemia do coronavírus só pode ser levada adiante, com um mínimo de possibilidade de redução de seus enormes danos, se for combinada com a luta pelo fim democrático do governo Bolsonaro.

*Juarez Guimarães é professor de Ciência Política na UFMG.

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