O que é, o que quer, aonde vai o trumpismo

Imagem: Luis Leon
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Por RIO MAESTRI*

A questão central é o programa econômico do trumpismo, que propõe domesticar a dívida, cortando fundo nos gastos administrativos e militares; inverter o déficit da balança comercial estadunidense, nem que seja aos trancos e barrancos

Se não me decifras, te devoro

O discurso do vice-presidente J.D. Vance, em 14 de fevereiro, na 61ª reunião da Conferência sobre a Segurança Europeia de Munich, de entonação magistral e autoritária, no estilo de um pai prepotente, arrogante e descontente com filhos desviados, oficializou a ruptura do trumpismo com o globalismo atlantista da União Europeia e da OTAN, aliados carnais dos Estados Unidos, em geral, do Partido Democrata, de Joe Biden, em particular. 

O vice-presidente estadunidense proferiu um duro discurso contra o antidemocratismo e o autoritarismo da União Europeia, na imposição de políticas do grande capital globalista e na construção de governo supranacional e antipopular na Europa. Apostrofou uma União Europeia despreocupada com os segmentos populares desgostosos ou feridos por suas políticas. J.D. Vence apontou para a Romênia, onde a União Europeia impugnou eleição, por estar sendo vencida por candidato oposto ao euro-atlantismo e ao militarismo anti-russo, e segue nessa imposição ditatorial.

A preleção de J.D. Vance foi uma espécie de quase declaração de guerra ao euro-atlantismo, assinalando o atual estranhamento entre os governos dos USA, sob a administração trumpista, e o da União Europeia. A diatribe inesperada foi acolhida com simpatia por não poucos, através do mundo e no Brasil, já que praticamente todas as duras críticas feitas ao governo da União Europeia procediam. E verdades palpáveis e gritantes não deixam de ser verdadeiras e não podem ser ignoradas, mesmo quando ditas por uma boca suja e mentirosa. [MAESTRI, 22.02.2024.]

Carga ideológica

A elocução de J.D. Vance em Munich massageou igualmente o amor-próprio do conservadorismo antiabortista; do racismo islamofóbico; do cristianismo fundamentalista; das multidões horrorizadas pelas propostas apavorantes do wokismo. O vice-presidente estadunidense elogiou, até mesmo, João Paulo II, o papa polonês da contrarrevolução socialista. Ele converteu-se do protestantismo ao catolicismo romano, na sua versão conservadora, é claro.

As verdades proferidas por J.D. Vance, por um lado, e a carga ideológica retrógrada do seu discurso, por outro, não podem ser ignoradas, pois são prenhas de significados. Entretanto, não devem anular a necessidade de se inquirir, sem prejulgamentos, o significado profundo do trumpismo. Reflexão necessária evacuada comumente por setores que se reivindicam da esquerda com a qualificação automática e restritiva do trumpismo como movimento de extrema-direita, semifascista e mesmo fascista. 

Essas e outras avaliações moralistas sumárias do trumpismo carregam consigo uma defesa, nem sempre indireta, da gestão democrata de Joe Biden, tida como respeitadora das instituições internacionais e defensoras das minorias, que a administração Donald Trump desrespeita e despreza. “[…] precisamos acompanhar de perto o desenvolvimento das eleições norte-americanas e […], intervir para garantir que Kamala Harris ou outro candidato do Partido Democrata seja eleito”. “A derrota de Donald Trump seria o melhor desenlace, em especial, para a esquerda brasileira que ainda está ameaçada pelo bolsonarismo.” [ARCARY, 25/07/2024; FLORENCIO, 23/07/2024.]

Nessa deriva analítica, se soterram os esforços de Donald Trump de pôr fim sobretudo ao conflito na Ucrânia e as promessas de Kamala Harris de que, se vencesse, prosseguiria a política belicista na Europa e na Palestina. Algo que já impõe a necessidade de uma reflexão mais acurada do que o espinafrar moral e ideológico do trumpismo.

Colonização da Eurásia

Desde a dramática destruição da URSS, em 1991, para a qual contribuiu ativamente, a União Europeia participou ativamente do cerco à Federação Russa pela OTAN. Essa operação de sentido estratégico conheceu salto de qualidade, em 2014, com o golpe de Estado da praça da Independência [Maidan Nezalejnosti], na Ucrânia.

O controle do Estado e do governo da Ucrânia pelos Estados Unidos, pela União Europeia e pela OTAN foi a antessala do conflito armado, de fevereiro de 2022, naquele país, livrado contra a Federação Russa. Com o início dos combates, o colonialismo e o imperialismo europeu acreditavam que, enfim, conquistariam o Santo Graal perseguido há séculos: o domínio semicolonial da Eurásia. 

A impulsão pela OTAN, sob a direção dos Estados Unidos, de assédio econômico geral, de isolamento diplomático e de ataque militar à Federação Russa, na Ucrânia, ensejaria, tinha-se certeza, a explosão daquela nação de dimensões continentais, em diversos países frágeis. Concluindo-se a obra incompleta realizada com a explosão territorial e política da URSS, em 1991, abriria-se o caminho para a rápida colonização e exploração dos infindáveis recursos da Federação Russa e da Eurásia pelo imperialismo euro-estadunidense. [KARAGANOV, 2020.]

O esfacelamento da Federação Russa aplainaria a estrada para uma acomodação, de Pequim, à hegemonia estadunidense, por las buenas o por las malas. E, talvez, sonhavam os mais afoitos, levaria à dissolução do atual governo chinês e ao separatismo das regiões do país apontadas como oprimidas, com a ajuda de algumas “revoluções coloridas” — Tibete, região autônoma de Xinjiang, Mongólia chinesa etc. Previa-se que, com essas vitórias históricas sobre a Federação Russa e a República Popular da China, o mundo poderia ser reformatado, para todos os tempos, esperava-se, segundo o molde proposto pelo bloco imperialista dirigido pelos Estados Unidos. 

O plano foi posto em marcha com o golpe de Estado em Kiev, Euromaidan, em inícios de 2014, seguido, sem pausa, pela repressão não apenas cultural dos ucranianos russófonos; pelos ataques militares permanentes ao Donbass e pela organização pela OTAN de sua reconquista militar; pela sabotagem por parte da União Europeia dos acordos regionais de paz, em Minsk I e Minsk II. Tudo prevendo a inevitável reação de Moscou, lançada em 24 fevereiro de 2022, que permitiu, de lambuja, que o bloco imperialista euro-estadunidense apresentasse, aos olhos do mundo, o assediado e agredido, que se defendia, como agressor

Vitória na esquina

O bloco imperialista euro-estadunidense propôs, anunciou e acreditou que a vitória estava ao alcance da mão, ao dobrar a esquina. Bastava exacerbar as infindáveis sanções que já pesavam sobre a Federação Russa, isolá-la econômica e diplomaticamente, atacar suas tropas militares, que propunha como frágeis e desconjuntadas, para mergulhar aquela nação na crise econômica, social e política estrutural, antecâmara de sua explosão. 

Não seria necessário, nem mesmo, uma derrota militar total das forças armadas russas.

Algumas “revoluções coloridas” em repúblicas de uma Federação Russa convulsionada pela desorganização econômica e recuando sob os golpes militares da OTAN, através da OTAN-USA, materializariam, como assinalado, o sonho do colonialismo e a seguir do imperialismo europeu.

No passado, a conquista da Eurásia, pelas nações europeias em expansão colonial e imperialista, fracassara devido à resistência dos blocos estatais tsarista e, a seguir, soviético. Diante deles, haviam naufragado as operações europeias de conquista da Eurásia, com destaque para a invasão francesa, em 1812, e as alemãs, quando nas duas guerras mundiais. [TOYNBEE, 1955: 16 et passim].

Em 22 de junho de 1941, a Operação Barbarrosa, comandada por Berlim e apoiada pelos governos fascistas da Romênia, Itália, Hungria, Eslováquia, Croácia e diversas milícias fascistas europeias, lançou contra a URSS uma maré de 3,8 milhões de soldados. A resistência à invasão custou mais de 20 milhões de soviéticos e concluiu-se com a destruição do III Reich. Em 9 de maio deste ano, na Praça Vermelha, em Moscou, serão celebrados os oitenta anos da vitória soviética sobre o nazismo. 

Ao sucesso da complexa operação final do bloco imperialista, na Ucrânia, faltou apenas que ela fosse “combinada com os russos”, como propôs, na Suécia, o maravilhoso Mané Garrincha, ao escutar as rebuscadas orientações do treinador da seleção brasileira para furar a defesa do time da URSS. Na Ucrânia, para os USA e a OTAN, ao contrário da Copa de 1958, na Suécia, para o Brasil, deu tudo errado, já que o time adversário era mais forte e o seu treinador mais hábil. E a União Europeia e a OTAN perdem de goleada da Federação Russa e os USA literalmente tiram seu time de campo.

Fracasso histórico

A Federação Russa preparava-se, sobretudo desde 2014, para o ataque imperialista, após propor, inutilmente, múltiplas vezes, negociações com o bloco euro-estadunidense que lhe garantisse uma segurança nacional mínima. Quando a OTAN-USA sabotou as negociações de paz entre a Federação Russa e a Ucrânia, para dar início a um conflito geral que esperava conclusivo, o Estado, a economia, a sociedade e as forças armadas russas mostraram resiliência singular e inesperada. [PETRONI, 2022.]

O revés da grande contra-ofensiva ucraniana de junho-dezembro de 2023, organizada e armada meticulosamente pela OTAN-USA, apontou para uma mais do que provável vitória da Federação Russa, com crescente concretização em 2024 e 2025. O revés ucraniano registrou a fragilidade estrutural do bloco imperialista, com destaque para a indústria militar, o armamento, o apoio popular ativo ao esforço militar.

Enquanto o governo Putin se fortalecia, crescia a oposição, ainda que passiva, contra os governos europeus mais agressivos. A dissidência popular europeia, sem direção coerente, tem sido e segue sendo silenciada, manipulada, desconsiderada e reprimida. Como assinalou a recente intervenção de J.D. Vance, em Munich.

Pagando a conta

Talvez a principal sequela do desastre militar da OTAN-USA na Ucrânia foi contribuir para a corrosão da força eleitoral do Partido Democrata, direção política mundial do globalismo militarista, quando das eleições presidenciais estadunidenses, de novembro de 2024. A quase inexorável derrota militar na Ucrânia expôs a regressão tendencial do imperialismo estadunidense e o fracasso de sua estratégia de vergar a Rússia e a China pelo assédio geral, seguido por crescentes confrontos militares indiretos. 

O ataque militar à Federação Russa, isolada, dera-se devido à avaliação consolidada dos estrategistas estadunidenses de que os Estados Unidos já não podiam vencer um conflito lutado contra uma aliança militar da Federação Russa e da República Popular da China. E.A. Colby, ex-integrante do Departamento de Defesa dos USA, propôs, simplesmente: “[…] estamos seguros de não conseguir combater, e muito menos vencer, uma guerra contra Pequim e Moscou simultaneamente.” [PETRONI, 2022, 7]

O atual registro na Ucrânia do poderio russo e da fragilidade ocidental obrigavam a uma reavaliação ainda mais profunda das estratégias estadunidenses. A solução militar poderia não ser mais o caminho das pedras que permitiria os USA de superar a forte correnteza internacional em direção da recuperação de sua hegemonia em declínio. Ao menos, durante o atual período.

Tudo ou nada

A consciência da atual correlação militar de forças não impediu que o bloco euro-atlantista, através sobretudo da União Europeia, siga propondo radicalizar o confronto, mesmo bordejando uma eventual guerra europeia estendida, se não coisa pior. Apesar de saberem que a OTAN e os USA se encontram, no melhor dos casos, mal preparados para a ampliação do conflito.

Essa inconsequência analítica, que segue sustentando planos beligerantes desvairados, não nasce do cérebro de políticos míopes ou irresponsáveis, com destaque para os governantes da União Europeia e das principais nações marciais do Velho Mundo. Esses políticos são apenas marionetes, bem lubrificados e remunerados, dos interesses que representam.

É o grande capital globalizado ocidental, com destaque para o financeiro, que mantém a política belicista, apesar do avanço geral da Federação Russa e o registro da fragilidade militar dos governos globalistas. Isso, por ver, seus interesses maiores ameaçados e ruir uma operação avançada, até então com sucesso, desde a II Guerra Mundial, semiconsagrada após 1991, quando da explosão da URSS, com o avanço do cerco da Federação Russa pela OTAN. [LOPES, 31/07/2024.]

Esses poderosos interesses globalistas ocidentais, duramente ameaçados pela derrota na Ucrânia e recuo da ofensiva militar geral prevista, opta pela política do tudo ou nada. Os fortes golpes que sente ameaçarem seus interesses obliteram a consciência de que, propor avançar a ofensiva militar geral, pode agravar o tiro pela culatra que significou a operação na Ucrânia, com um fortalecimento ainda maior da Federação Russa e da China.

Cisão profunda

De 2017 a 2021, a eleição do republicano Donald Trump delineou uma cisão profunda no seio do grande capital estadunidense, que superava qualitativamente os tradicionais confrontos entre republicanos e democratas. Tratava-se de uma divisão, quase existencial, no seio do capitalismo nos Estados Unidos. O choque frontal expressava a enorme crise em que mergulhara aquele país, em boa parte, nascida das políticas avançadas nas décadas anteriores, não apenas pelos democratas.

A primeira vitória eleitoral de Donald Trump interrompeu momentaneamente o avanço do globalismo militarista democrata, que já babava sangue com a possibilidade da entronização de Hillary Clinton. Entretanto, o trumpismo I não prosperou e desviou-se de seus objetivos, por não possuir, ainda, um projeto amadurecido, uma equipe capaz de aplicá-lo e as condições para materializá-lo. A Donald Trump faltou força para defrontar o establishment pró-globalista enraizado nas instituições, no aparato administrativo e na sociedade ianque. Talvez pretendesse fazê-lo quando de sua frustrada reeleição. 

De 2017 a 2021, Trump foi submetido a um cerco permanente dos democratas globalistas, senhores de imensos recursos e incrustados em um aparato de Estado fluvial, usado amiúde em forma aberta contra o então presidente. Sua derrota nas eleições e os quatro anos de administração democrata, dirigidos pelo senil Joe Biden, expuseram a fragilidade da estratégia global-militarista. A dívida pública explodiu, as taxas básicas de juros avançaram, a Rússia prosperou militarmente na Ucrânia, o Brics+ cresceu e fortaleceu-se, a China seguiu se armando, a hegemonia mundial do dólar enfraqueceu, ainda que relativamente etc.

A crise da hegemonia estadunidense deve-se em boa parte às metamorfoses conhecidas por aquela sociedade nas últimas décadas, no bojo da globalização, contra muito das quais o trumpismo se lança. O grande capital estadunidense impulsionou o deslocamento industrial e a desindustrialização do país, abraçando e radicalizando seus impulsos internos, em busca da elevação de sua taxa média de lucro em depressão tendencial. Determinou patologicamente impulso à globalização da produção exigido pelo próprio desenvolvimento tecnológico.

Um mundo sem nações

Através da globalização econômica e social do grande capital, com destaque para o financeiro, estenderam-se os mercados, modelaram-se sociedades, submeteram-se multidões de trabalhadores a formas de escravidão assalariada, colonizaram-se regiões produtoras de matérias-primas etc. Em seu favor, a globalização capitalista desdobrou-se na impulsão de um mercado único mundial, com livre circulação de capitais, de mercadorias, de mão de obra etc. Um movimento que alavancou o desenvolvimento da China capitalista, como potência industrial e, a seguir, imperialista, que entrou em disputa inevitável com o bloco estadunidense. [MAESTRI, 16.02.2025; 26.12.2024.]

O grande capital imperialista impulsionou tendencialmente um mercado global que procurava dissolver as singularidades culturais, superadas por gostos, práticas, comportamentos, visões de mundo tendencialmente unificadas. Uma mundialização que diluísse os resquícios de um passado nacional-manufatureiro, impondo divisão internacional do trabalho regida por vantagens relativas, com o arrasamento de estrutura e núcleos produtivos menos rentáveis. A destruição das indústrias da República Democrática Alemã tornou seus territórios e populações meros mercados consumidores e de mão-de-obra.

Para o grande capital globalizado, não há razão em produzir, leite, carne, grãos etc., no Velho Mundo, protegidos por barreiras alfandegárias e subsidiados pelo Estado, se e eles podem ser importados, de outras regiões do mundo, por preços deprimidos, de maior produtividade e menores preços. Para ele e seus gestores, é descurável a destruição de paisagens históricas, a qualidade dos produtos e lançar milhões de europeus no desemprego relativo e absoluto.

A rentabilização de capitais vultuosos inaproveitados exige investimentos compulsórios e semi-compulsórios à custa dos consumidores. A crise climática serviu para alavancar programas de transição, forçada e policiada, para as energias ditas limpas —solar, eólica, geotérmica etc., — a toque de caixa, à custa da população, jamais consultada e, comumente, ferida em interesses vitais. Foram distribuídos financiamentos fabulosos, a torto e a direita, enquanto decaíam os gastos sociais imprescindíveis com a educação, saúde, segurança, moradia etc.

Os burocratas da União Europeia decretaram o fim da produção de automóveis de combustão para 2035, com o grande capital industrial e financeiro esfregando as mãos com a troca semi-forçada e forçada de centenas de milhões de veículos. Em plena execução das determinações compulsórias, compreendeu-se que não se alcançara ainda uma real maturidade tecnológica para um projeto de tal ambição e tão oneroso. Sobretudo, jamais se abordou a proposta de uma impulsão geral e qualitativa dos meios de transportes públicos.

Um mundo plano

O projeto globalista do grande capital avança a pressão pela desregulamentação mundial e privatização das relações econômicas e sociais; impõe diversas formas de precarização do trabalho; achata os salários, comumente servindo-se da imigração selvagem; privatiza os serviços públicos e as indenizações sociais — saúde, educação, energia, segurança, aposentadoria etc. Alavanca a banqueirização da sociedade mundial e os investimentos sem fim no complexo industrial-militar.

A globalização e desindustrialização dos Estados Unidos fez despencar tendencialmente as condições de existência das classes populares. Os trabalhadores brancos, desde 1930, e os negros, desde meados dos anos 1960, constituíam a base tradicional do eleitorado democrata. Ao abraçarem o globalismo e o deslocamento industrial, os democratas viraram as costas ao operariado manufatureiro e às classes médias tradicionais. Deixaram também a ver navios as facções do capital manufatureiro produzindo para o mercado interno.

No novo contexto, o Partido Democrata procurou transferir seu apoio eleitoral das modernas classes médias urbanas, com destaque para as comunidades atuantes nos setores high-tech, informático, financeiro, publicitário, da moda etc. Abandonou o orgulhoso “Cinturão do Aço”, no nordeste dos USA, transformado em “Cinturão da Ferrugem”, e foi pescar nas costa da Califórnia, em Nova Iorque, em Austin, em Seattle.

Deixado a sua sorte

Nos USA, o Partido Democrata definiu como bases prioritárias de sustentação social, eleitoral e ideológica setores de visões de mundo ego-individualistas, sem angústias econômicas prementes. Comunidades ligadas e dependentes a um mundo globalizado, com raízes nacionais e regionais fugidias, não raro vivendo em uma cidade e trabalhando em outro país, por meios telemáticos.

No contexto da globalização e do neoliberalismo desenfreado, o novo Partido Democrata e organizações semelhantes no mundo, construirem-se apoiados em setores sociais que pululam em países de capitalismo desenvolvido — Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, União Europeia, Israel, China, Taiwan etc.— e centros urbanos emergentes — Dubai, São Paulo, Buenos Aires, Nova Deli, cidade do México. 

Uma hegemonia assentada em novas realidades produtivas exige e enseja novas fantasmagorias ideológicas. Nos Estados Unidos, ao abraçar a globalização e a desindustrialização, o Partido Democrata arquivou o “made in America” e se despediu da “Bandeira Estrelada”, hasteada à porta da vileta com pequeno jardim dianteiro, piscina no quintal, dois automóveis na ampla garagem, o sonho de consumo já não mais prometido, como no passado, desde o final da II Guerra, a todo o trabalhador estadunidense dedicado.

O trabalhador manufatureiro, sobretudo branco, desacostumado ao desemprego e ao emprego desqualificado, abandonado a sua sorte, deu origem a uma nova tipologia de viciado, que não busca a dose no beco. Ele a obteve, ao menos inicialmente, por meio de médicos, farmácias, hospitaia que surfaram o mega negócio dos opioides analgésicos. Um fenômeno de massa que causou uma verdadeira epidemia sanitária que, agora, Donald Trump acusa o México e a China como responsáveis.

Horrendo mundo novo

As novas construções ideológico-culturais pós-modernas e pós-industriais avançaram sobre as lutas e reclamos sociais agitando as reivindicações individualistas, subjetivistas, sensualistas, hedonistas, da nova classe média globalizada, que se propõe, arbitrariamente, falar por todos, ao se referir ao seu umbigo. Programas nascidos de humores singulares, que rejeitam, para se realizar, a materialidade dos objetos, dos seres, das práticas sociais, clamando, aos gritos — “Eu sou o meu mundo, eu sou o mundo”.

Em um idealismo e solipsismo radicais, propõe-se, literalmente, a realização do sonho de uma autonomia da subjetividade, sem limites — “não sou o que sou, sou o que quero”. Transforma-se, assim, o real em uma fantasmagoria, e, as quimeras arbitrárias que o substituem, em régua social. Um horrendo mundo novo em que a ideologia woke é levantada como o “Fiat lux” da revolução cultural do capitalismo globalizado, abraçada, publicizada e transformada em leis, onde foi possível.

A teologia woke teve como principal ariete a negação, pela “ideologia do gênero”, da materialidade do caráter binário da espécie humana, dividida em seres do sexo masculino e feminino. O sexo seria, ao contrário, escolhido livremente, a partir da opção individual arbitrária, a ser imposta pela lei, entre os mais de sessenta neros propostos, todos chamados a avançar suas reivindicações, aos gritos, como coroação social das individualidades.

Pautados por mega-interesses da indústria farmacêutica, ambulatorial, hospitalar, etc. avançou-se, a possibilidade e o direito, não raro apoiados pela lei, de crianças, jovens e adultos, em geral inconscientes de seus atos, de empreenderem a metamorfose quimérica de sexo, por autodefinição, antes ou após se entupirem, ou serem entupidos, de hormônios, a serem consumidos por toda a vida, e de realizar eventuais operações mutiladoras de objetivos plásticos irreversíveis. Tudo, exige-se hoje, financiado pela saúde pública.

O trumpismo – o que diz, o que quer, o que é

O trumpismo penetrou na brecha do fracasso da ofensiva econômica e militar globalista da administração democrata, formalmente comandada por um presidente intelectualmente minorado. Seu grito de guerra, “Make America Great Again”, propõe, no plano econômico e ideológico, a reindustrialização dos Estados Unidos, o combate ao endividamento monstruoso do Estado, a recuperação do poder aquisitivo da população, o fim da imigração selvagem, a rejeição ideológica, social e econômica do globalismo.

Donald Trump prometeu o fim das iniciativas militaristas e de programas energéticos, ambientais e outros, odiadas por parte da população e pelas companhias petrolíferas. Tudo a ser obtido com a reindustrialização, com a inversão de um balanço comercial mega-deficitário e com cortes, na carne, de gastos mastodônticos da administração civil e das forças armadas.

Um programa que resultaria, promete o trumpismo, no controle da dívida pública estelar e retorno a um passado nacional proposto como esplendoroso. Ele se comprometeu, igualmente, com o fim ao wokismo, do identitarismo e ênfase dos valores familiares tradicionais e conservadores. No geral, a pauta trumpista se choca frontalmente com o globalismo, representado pelo Partido Democrata, defensor igualmente do setor militar-industrial, imbricado com o capital financeiro e internacional. Ambos são, porém, criaturas da ordem capitalista e imperialista.

Grande capital globalizado

Facções do capital globalizado são claramente infensas à interrupção do conflito na Ucrânia, sem a derrota da Federação Russa, e opostas à proposta trumpista de não iniciar guerras e de controlar os gastos públicos siderais. Elas seguem o programa democrata de reconstrução da hegemonia estadunidense através do confronto militar regionalizado com a Rússia e a China, indireto e, se for necessário, direto.

O programa nacionalista, protecionista e desenvolvimentista de Donald Trump lhe permitiu vencer as eleições apoiado no voto dos trabalhadores empregados e desempregados, sobretudo brancos, mas também, em grande número, de negros e, mesmo, de latino-americanos, na mesma situação. Classes populares sem qualquer direção de esquerda crível que levante o programa do mundo do trabalho.  

A enorme rusticidade de Donald Trump não é encenação, apesar de poder lhe servir para objetivos eleitorais e mesmo diplomáticos, como registrado pela discussão com Volodymyr Zelensky, em 28 de fevereiro. Ela lhe afastou o voto feminino e, em especial, das mulheres negras. O anti-intelectualismo e incivilidade do agora presidente garantiram-lhe apoio de comunidades do mundo rural e tradicional estadunidense. Seu pacifismo não lhe conquistou o voto esquerdista, que teria optado pela abstenção, em bom número, devido ao viés militarista de Joe Biden, na Ucrânia e na Palestina. 

Durante a campanha eleitoral, o trumpismo procurou conquistar os votos das facções da sociedade americana, não apenas conservadoras, em dissidência frontal com o wokismo, com o identitarismo, com a “ideologia de gênero”, com uma manipulação quase terrorista e oportunista da questão ecológica, climática, do feminismo etc. O que permitiu ao trumpismo empreender agitação fortemente conservadora contra as conquistas e defesa consequente da liberdade sexual, do feminismo, do ecologismo etc.

Raízes econômicas

As raízes do trumpismo assentaram-se no que sobrou do antes poderoso complexo manufatureiro estadunidense, produzindo para o mercado interno, hoje abastecido sobretudo por produtos chineses; no empresariado da construção imobiliária e infraestruturas, ao qual Donald Trump pertence; em facções da indústria automobilística tradicional, alijada pela concorrência internacional e temendo o abandono forçado dos motores de combustão. 

Importante apoio ao trumpismo chegou de setor petroleiro cerceado por determinações ambientais de todo tipo e igualmente acossado pela transição energética. As promessas de redução de impostos, desregulamentação geral e redução do aparato estatal atraíram segmentos do grande capital, igualmente seduzidos pelo ativismo de Elon Musk contra a legislação trabalhista e os trabalhadores.

O trumpismo não arrastou atrás de seu “carro de som” os complexos econômicos estadunidenses de ponta, firmemente ligados ao globalismo, entre eles, os segmentos tecnológicos do Vale do Silício, na Califórnia, e o setor bancário-financeiro-bulsátil internacionalizado, que emprega em torno de 8% da força de trabalho e é responsável por quase 20% do PIB do país. 

Joe Biden e os democratas apoiaram-se em uma pós-modernidade e um pós-industrialismo globalizado, a serem construídos e consolidados através da submissão, se necessária militar, sobretudo, da Federação Russa e do imperialismo chinês, que avança sobre a passada hegemonia estadunidense como um dragão endoidecido. [MAESTRI, 2021; PROBSTING, 2014.] Donald Trump parece querer retornar ao passado, à modernidade manufatureira, quando os Estados Unidos eram, ainda, a fábrica do mundo. 

De volta ao passado

Donald Trump luta pelo retorno a um período histórico superado pela internacionalização da produção capitalista e do capital industrial e financeiro, que desembocou no globalismo agressivo. De certa forma, pretende parar a história e retornar a um passado idealizado. Ao contrário do globalismo, pretende re-industrializar o país, servindo-se de duras disputas comerciais, e não de conflitos armados.      

O trumpismo é um movimento anti-globalista, de caráter conservador, que se apresenta para muitos como revolucionário. Ele arrasta trás de si trabalhadores e importante camadas populares devido ao radical enfraquecimento das propostas de superação da ordem capitalista, avançadas pelo mundo do trabalho, fragilizado em forma radical, desde 1991, com a explosão da URSSe a vitória mundial da contra-revolução neoliberal.

Donald Trump fortaleceu-se após o insucesso militar da OTAN-USA na Ucrânia, como proposto, com o espraiar da apreciação, em facções das classes dominantes estadunidenses, da impossibilidade de vencer confronto com a Federação Russa e a República Popular da China, ao menos nesse momento. A continuidade de política democrata exigiria o prosseguimento de um endividamento público sem fim que já enfraquecia o dólar, a última grande trincheira internacional do imperialismo estadunidense. [KISHORE, 2021.]

A violência do conflito no interior dos USA e fora dele, entre o trumpismo e o globalismo, sob a direção democrata, deve-se aos ganhos ingentes que as facções vencedoras obterão e as enormes perdas das derrotadas. Donald Trump promete cortar até 8%, anualmente, no pressuposto militar ianque. Um prejuízo paquidérmico e inaceitável para o complexo industrial-militar e o capital financeiro, favorecidos pelos governos estadunidenses há décadas, republicanos e democratas. Trata-se de um confronto em curso, atualmente, sem vencedor certo.

No fio da navalha

É como se o trumpismo entronizado se encontre com a faca e o queijo na mão. Obteve vitória eleitoral incontestável. Conta com a maioria na Câmara, no Senado, na Corte Suprema e dos governadores dos estados. Entretanto, ele caminha em um fio da navalha. A facção do capital nacional e mundial, derrotada nas passadas eleições presidenciais, controla enormes recursos nos Estados Unidos e fora dele, com destaque para a direção da União Europeia, que tudo faz para fracassar o programa trumpista. Consequente, Donald Trump procura aliados nas filas dos inimigos dos seus inimigos,

O trumpismo deve vencer corrida de saltos institucionais, sem tropeçar em nenhuma barreira. Em 2026, realizam-se as eleições, de meio mandato, de todos os congressistas, de parte dos senadores e de muitos governadores. Elas podem fortalecer, enfraquecer ou liquidar o trumpismo. E, dois anos mais tarde, em 2028, ocorrem as eleições presidenciais, é crível, sem a candidatura de Donald Trump, por questões constitucionais e sua então avançada idade: 82 anos. J.D. Vance terá, na época, 44 anos e, Marco Antonio Rubio, dez anos mais.

Se o globalismo democrata vencer em 2028, o trumpismo será totalmente resetado, possibilidade que, como veremos, contribuiu para manter a Federação Russa na retranca, nas atuais negociações em curso. O prometido hoje, pode ser desmentido, amanhã, por um outro governo estadunidense, precisamente o que está fazendo Donald Trump, em relação ao governo anterior. É imensa a força dos interesses globalistas nos Estados Unidos, na Europa e no mundo. 

O trumpismo dispõe de uma breve janela de tempo para acumular forças, sobrepor-se aos oposicionistas, superar os obstáculos que neutralizaram a sua primeira administração, em 2017-2021. Procura realizar transformações estruturais no aparato estatal e nas relações dos Estados Unidos com o mundo. Por isso, Donald Trump e suas tropas se lançam, como cavalaria ligeira, sob nutrida metralha, contra as casamatas que seus adversários controlam, nas instituições estadunidenses, e no exterior do país. Por necessidade, atacam os inimigos internos e externos ao mesmo tempo. 

Destruir o Estado profundo

Donald Trump nomeou um fiel, Pete Brian Hegseth, como Secretário de Defesa e, em 21 de fevereiro, em forma inusitada, defenestrou o general Charles Q. Brown Jr., afro-americano, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas dos USA, nomeado por Joe Biden. Mesma sorte conheceu a almirante Linda Fagan, chefe da Guarda Costeira dos Estados Unidos, também criatura democrata, acusada de se preocupar em avançar iniciativas pela “diversidade, equidade e inclusão” e gerir mal as tropas sob sua responsabilidade.

O diretor do FBI, o advogado Christopher A. Wray, renunciou antes de ser decapitado, sendo substituído por Kash Patel, um fiel do trumpismo, descendente de indianos, que acusou a organização que agora chefia de fazer parte do Deep State. A. Wray e seus homens promoveram investigações envenenadas contra o então candidato republicano. O trumpismo propõe ampla reorganização do FBI, esforçando-se para que funcionários de inclinação democrata renunciem de moto-próprio.

Trump nomeou, em segunda indicação, Pam Bondi, para chefe do Departamento de Justiça, uma fiel seguidora, já aprovada pelo Senado. Ela iniciará limpeza desse órgão estatal que também se desdobrou para sabotar a primeira administração e dificultar, agora, a reeleição do atual presidente. Donald Trump nomeou Robert F. Kennedy, pouco simpático aos mega-interesses farmacêuticos, para secretário de Saúde e Serviços Humanos.

Elon Musk, na direção do “Departamento de Eficiência Governamental”, intimou os funcionários públicos a enviarem relatório do trabalho efetivado, sob pena de demissão. Ele propôs a eventualidade de que funcionários pagos não estariam trabalhando. Algumas direções de agências governamentais, como o FBI e o Pentágono, aconselharam seus funcionários a não obedecerem à injunção. 

Burocracia pesada

O serviço civil federal e as forças armadas estadunidense possuem mais de cinco milhões e quinhentos mil integrantes, que a administração Donald Trump, como bons liberais, pretende reduzir drasticamente, visando diminuir os gastos públicos e a dimensão do Estado, e precaver-se de oposição interna, já em marcha, por atos ou por inércia. 

Um plano de demissão voluntária, pouco generoso, oferecido aos funcionários federais recebeu 75 mil adesões. Em 11 de fevereiro, o Tupetudo assinou decreto instando as repartições federais a se prepararem para cortes ambiciosos. O terror perpassa atualmente os servidores públicos estadunidenses, sobretudo de coloração democrata. Recursos à Justiça procuram suspender determinações do novo governo.

Administração Trump determinou pausa de 90 dias no pagamento das bilionárias ajudas externas, para exame das mesmas. O objetivo é realizar as economias prometidas e siderar financiamento votados pelos democratas pró-globalistas. 

O trumpismo atingiu com chumbo grosso a poderosa Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID). Praticamente todo o pessoal contratado foi posto em licença administrativa e se prevê corte de 1.600 funcionários permanentes. O objetivo é extinguir a USAID, mesmo mantendo-se a sigla, que controla recursos bilionários.

Elon Musk organizou vazamento seletivo de e-mails da USAID referentes a infinidade de financiamentos de campanhas, contra governos e países mal-queridos pelo imperialismo — financiamento de milhares de jornais, rádios, ONGs, treinamento de mercenários e por aí vai. Comprova-se que a USAID agiu, sempre, de dedos entrelaçados com a CIA, como a esquerda anti-imperialista, acusada de conspiracionismo, propõe há décadas.

Combate ideológico e cultural

Como proposto, a questão central é o programa econômico do trumpismo, que propõe domesticar a dívida, cortando fundo nos gastos administrativos e militares; inverter o déficit da balança comercial estadunidense, nem que seja aos trancos e barrancos, como já procede em relação ao México e o Canadá. Servindo-se, para tal, sobretudo, da imposição de taxação das importações. O que vai avançar a inflação nos USA, uma séria ameaça ao apoio à administração Donald Trump, que lhe exige vitórias substanciais imediatas. 

O trumpismo propõe-se impor, nesse processo, batendo forte na mesa, reivindicações estadunidenses, como já ocorreu no Panamá e espera que ocorra igualmente com a Groenlândia e com o Canadá. No mesmo sentido, procura-se o literal esbulho da Ucrânia, ao se cobrar a ajuda militar oferecida pelo governo Joe Biden. Em geral, ela financiou a compra pela Ucrânia de armas super-faturadas produzidas nos USA. 

Impõe-se, para o trumpismo, com urgência, empreender a reindustrialização do país e domesticar os fluxos imigratórios. O que tenderia a elevar os salários dos trabalhadores, que passariam a ser escorchados com a radicalização da precarização e uberização das relações trabalhistas. Sobretudo, para seguir o plano de rota trumpista, é imprescindível o fim do conflito na Ucrânia e uma aproximação à Federação Russa, que a afaste em algo da República Popular da China. Não se descarta uma eventual pacificação das relações com Pequim, sem abandonar a dura disputa comercial. 

Para recuar o monstruoso gasto público estadunidense, é incontornável o fim da hemorragia de recurso em favor da guerra na Ucrânia e cortar sem piedade, como prometido, o atlântico orçamento militar do país. O que exige recuo na política tradicional do imperialismo estadunidense de policiamento mundial, para a qual se mantêm setecentas bases militares no exterior. E, sobretudo, uma pacificação, mesmo relativa, das relações estadunidenses com a Federação Russa e a China. É impossível seguir brigando militarmente com a Federação Russa e ameaçando de morte a China enquanto se ataca comercialmente o resto do mundo, sobretudo os possíveis e necessários aliados para projetos bélicos em desenvolvimento. Ou se bebe o leite ou se transforma em manteiga.

Soldado universal

Uma política de cortes do orçamento militar estadunidense obriga a entregar o sustento da OTAN às nações europeias, como Trump exige, já que os Estados Unidos são responsáveis por nada menos do que 40% do orçamento do Tratado do Atlântico Norte. Donald Trump propôs corte de 50% do orçamento militar dos Estados Unidos, da Federação Russa e da República Popular da China. 

Putin teria acenado concordância com a proposta de corte dos orçamentos militares e, Xi Jinping, discordância, já que a China tenta anular a superioridade militar estadunidense. O que, entretanto, pode ser superado com uma redução proporcionalmente menor do pesado orçamento militar chinês. O determinante, nesse caso, é a intensão, e não os valores das propostas avançadas.

A pacificação das relações com a Federação Russa e, mesmo, com a República Popular da China, permitiria impulsionar uma repartição tripartida da hegemonia internacional, deixando de fora a Europa, a Índia, a Turquia, entre outras nações emergentes. Uma realidade que determinaria o futuro do Brics+. Algo não simples de ser realizado, mas de desdobramentos estruturais e históricos, no caso de sua materialização.

Ucrânia deve vencer

A União Europeia e a OTAN, defensores do euro-atlantismo impulsionado pelo Partido Democrata derrotado em novembro de 2024, seguem impulsionando a guerra na Ucrânia e tudo fazendo para sabotar os esforços de paz de Donald Trump, ou atraí-lo, até onde seja possível, à política militarista. O núcleo duro do imperialismo europeu, Inglaterra e França, procura agora impor a Donald Trump que dezenas de milhares de suas tropas acampem na Ucrânia, como forças pacificadoras, quando de um armistício. Tudo sob a proteção militar ianque.

Essa é a alma do projeto de paz proposto, agora, a toque de caixa, após o quebrar de pratos do Salão Oval e o começo das instruções trumpistas para que os USA abandonem o esforço militar contra a Federação Russa. Segue se tratando de plano de paz que garante o prosseguimento dos combates, já que, como proposto, a Federação Russa deixou claro que não aceitará essa proposta envenenada, nem que a “vaca tussa”. Ela permitiria que provocação ocidental reiniciasse o conflito envolvendo diretamente as forças da OTAN e os Estados Unidos.

A consecução dessa reivindicação significaria a conquista, na mesa de negociações, de programa bélico anglo-francês de ingresso de suas tropas na Ucrânia, derrotado no campo de batalha. A União Europeia segue sancionando a Federação Russa e armando Kiev, que recebe, igualmente, até agora, o armamento aprovado durante o governo Joe Biden. Uma realidade que pesa, em recursos materiais e humanos, duramente, à Federação Russa.

Moscou demonstra plena abertura para as negociações de paz e sobre uma infinidade de outras questões atinentes às relações bilaterais e globais propostas por Donald Trump. Entretanto, avança com precaução. A segunda reunião Usa-Federação Russa, na embaixada estadunidense de Istambul, na Turquia, seguiu discutindo o restabelecimento das estruturas diplomáticas de ambos os países, destruídas pelo governo de Joe Biden. 

Precaução e água benta não faz mal a ninguém

Para avançar nas discussões Moscou exigirá possivelmente que se comece a abater parte das sanções que ferem a Federação Russa. Restabelecer plenamente as relações diplomáticas, suspender algumas sanções, avançar em acordos de desarmamento e outros, constituirão sólidos ganhos para Moscou, mesmo no caso em que não se materializarem os prognósticos mais otimistas, ou seja, uma ampla discussão e deliberação bilateral sobre a situação internacional.

Como lembrado, na primeira administração de Donald Trump, a aproximação Washington-Moscou encerrou-se sem continuidade, seguindo às sanções à Federação Russa. Todos os acordos obtidos entre os dois países podem ser, como proposto, revertidos, no caso da derrota eleitoral do trumpismo. Por isso, a Federação Russa e a República Popular da China preferem refazer, diante do mundo, como agora, suas juras de amor eterno e … logicamente, de defesa mútua, caso seja necessário. Um compromisso, entretanto, jamais firmado entre Moscou e Pequim, ao menos explicitamente.

O fim da ofensiva na Ucrânia, com a vitória de Moscou, enterraria as expectativas de uma expansão do imperialismo europeu em direção à Eurásia. Ele encerraria o estado de guerra latente com a Federação Russa e dificultaria o projeto em curso na União Europeia de relançar o grande capital europeu com o investimento de ingentes capitais nacionais e comunitários para o complexo militar-industrial, à custa da população europeia.

O primeiro-ministro inglês, Keir Starmer, acaba de anunciar a elevação para 2,5% do PIB do país, em 2027, com crescimento até 3%, no fim de seu mandato. Tudo isso, grita, para proteger a Inglaterra e a Europa do Urso russo. Enquanto isso, condenou, nesse inverno, milhares de idosos a morte por frio, ao retirar as subvenções para os gastos de aquecimento de setores empobrecidos do país. Fala-se em dezessete mil mortos. Apenas eleito, o político trabalhista viu sua avaliação cair em picada, entre a população inglesa, com a qual pouco se preocupa.

*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de Filhos de Cã, filhos do cão. O trabalhador escravizado na historiografia brasileira (FCM Editora).

Referências

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