O caráter impulsivo

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Por CHRISTIAN DUNKER*

Comentário sobre o primeiro livro de Wilhelm Reich

Wilhelm Reich (1897-1957) é costumeiramente lembrado como herói da contracultura dos anos 1960, criador do freudomarxismo e inspirador de inúmeras tendências psicoterápicas corporalistas (bioenergética, vegetoterapia, orgônioterapia). Contudo, sua trajetória formativa encontra-se estreitamente vinculada com a psicanálise. Desde 1920, Reich participava das reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena, atuando na Clínica Psicanalítica de Viena desde sua inauguração em 1922. Formou-se pela Policlínica de Berlim em 1930. Ou seja, Reich passou pelo que havia de melhor na formação psicanalítica na década de 1920.

Diferentemente de outros dissidentes, cuja participação nos meios psicanalíticos foi esporádica ou periférica, ele vivenciou o que havia de mais inovador e criativo em torno de Freud. Independente do mérito de seus últimos desenvolvimentos teóricos, Reich é uma espécie de objeção viva às críticas usualmente levantadas contra a psicanálise. Membro do Partido Comunista, admirador da Revolução Russa, nunca deixou de considerar a clínica no contexto do poder e de sua subversão. Formou-se como psicanalista atendendo pessoas em situação de exclusão social na Clínica Psicanalítica de Viena. O caráter impulsivo, seu primeiro livro, publicado em 1925, baseia-se no material extraído desta experiência.

O que vemos aí é sua impressionante sagacidade clínica como psicanalista. Geralmente considera-se o texto de Stern (1938) como o primeiro artigo a abordar as personalidades borderline, contudo isso é apenas mais um indício do apagamento histórico de Reich na história do movimento psicanalítico. É Reich, e não Stern, quem nos dá a primeira descrição deste que foi o tipo clínico mais exaustivamente estudado, nos anos 1980, pelas diferentes tradições psicanalíticas.

Sintoma e caráter

O ponto de partida para o estudo é a oposição entre sintoma e caráter. Ao contrário do sintoma, o caráter é algo do qual raramente nos queixamos. São os outros, os próximos, que costumam ser perturbados pelo caráter de alguém. O caráter impulsivo nunca aparece sem algum complemento sintomático: fobias, rituais compulsivos, amnésias histéricas. O caráter é uma espécie de repetição que acompanha uma vida: ser sistematicamente traído por aquele a quem se protege, ter experiências amorosas que atravessam as mesmas fases e chegam ao mesmo fim, “uma perpétua recorrência da mesma coisa”.

É neste contexto que Reich propõe distinguir a “personalidade impulsiva”. Sua apresentação é próxima das melhores descrições clínicas contemporâneas sobre o assunto. Examina uma subjetividade dividida entre um funcionamento esquizóide, sem alucinação, mas com dissociações intensas das experiências de afeto, prazer e corporeidade, ao lado de um funcionamento narcísico, sem uma estável formação de ideal, mas com uma espécie de “superego isolado”. Antecipando os últimos desenvolvimentos de Freud sobre o mecanismo de renegação (Verleugnung), Reich descreve sujeitos que resolvem a dupla antinomia entre desejo e interdição, e entre o eu e o outro, por meio de um único ato impulsivo.

Ao contrário da compulsão, que sempre é sentida como uma obrigação intrusiva a agir, a impulsão é ardorosamente defendida pelo eu como expressão instantânea de sua vontade. Veja-se aqui a importância e atualidade do tema: crimes e atos violentos de natureza impulsiva, a impulsividade que se atribui aos usuários de drogas, os transtornos de atenção e hiperatividade que preocupam educadores. Paradoxo de uma época que parece louvar o impulso (o instante de felicidade, o ato genuíno), na mesma medida em que o marca com o sinal do patológico.

Eclipse do pai

Duas séries de problemas devem convergir na formação do caráter impulsivo, a saber, o “superego isolado” e a “identificação sexual problemática”. Quanto à formação do superego isolado verifica-se uma espécie de “eclipse do pai” ou dos modos de apresentação da autoridade: “não é a mesma coisa se um revolucionário social ‘revolucionar’ somente por causa de uma reação contra seu pai, ou se age a partir de uma imagem paterna revolucionária, sem relação com as atitudes de seu próprio pai” ou ainda, “o ideal burguês da dona de casa econômica, limpa, submissa e calma também exige que a mulher mantenha as crianças quietas”. Nos dois casos Reich questiona a figura paterna como unificador necessário das posições de autoridade. O superego isola-se do ideal de eu, e conseqüentemente do próprio eu, quando deve obedecer a interpelações contraditórias.

Na neurose simples a contradição expressa pela autoridade é resolvida por meio do recalque alternado das moções de amor e ódio ou de respeito e insubmissão deixando em seu lugar o fenômeno residual da ambivalência (coexistência de amor e ódio pela mesma pessoa). No caso do caráter impulsivo a contradição é transformada em duas injunções independentes que são então seguidas por meio do impulso. Daí que a separação entre os sentimentos sociais (culpa, vergonha, nojo e angústia) seja substituída pela sensação difusa, mas unificada, de desprazer. Aqui Reich parece teorizar uma importante inversão no estatuto do superego, inversão apontada também por Lacan anos mais tarde. Se expressão freudiana – em acordo com o paradigma social da produção – associava o superego com a interdição, Reich acentuará a dimensão prescritiva ou “impulsiva” do superego, em acordo com o paradigma social do consumo.

Masoquismo

O segundo aspecto formativo do caráter impulsivo é a identificação sexual problemática. Reich parte de uma regularidade clínica verificada na prática sexual destes pacientes. Trata-se do uso combinado do prazer como meio de punição e da sexualidade como defesa contra o prazer. Este funcionamento de tipo masoquista encontra-se associado a experiências de abuso sexual, social e do espaço de intimidade.

As situações de terríveis maus tratos sofridos pelos seus pacientes, levam-no a teorizar sobre o efeito deletério da frustração. Longe de atribuir massivamente razão etiológica a tal tipo de experiência, como a tendência da vitimologia contemporânea, ele percebe que o problema maior reside na inconstância e na oscilação de atitudes nos laços identificatórios iniciais. Assim fixação e projeção combinam-se na típica encenação de fantasias dos pacientes de caráter impulsivo.

Wilhelm Reich discute o caso de pacientes que se agridem, que se masturbam com o cabo de uma faca, pacientes que estão constantemente “pedindo” para serem expulsos, excluídos e rejeitados (de instituições, de relações e tratamentos), que vivem aberta e continuamente pensamentos bizarros, pacientes que se feriam física e moralmente (como forma impulsiva de alívio e satisfação), assim como criavam situações recorrentes de perigo, desafio e insubordinação.

O que Reich chama de identificação sexual problemática, e sua paralela degradação do amor-próprio, foi largamente teorizado pela psicanálise que lhe sucedeu, porém nem sempre com a mesma argúcia. A identificação com o agressor (Ferenczi), heróica (Lagache), ou projetiva (Klein) nem sempre descrevem com a mesma clareza esta espécie de metamorfose entre prazer, dependência e fetiche que Reich narra.

*Christian Dunker é professor titular do Instituto de Psicologia da USP. Autor, entre outros livros, de Litorais do patológico (Nversos).

Publicado originalmente no Jornal de Resenhas, em agosto de 2009.

Referência

Wilhelm Reich. o caráter impulsivo. Tradução: Maya Hantower. São Paulo, WMF MARTINS FONTES, 120 págs.

 

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