A degradação da política

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Por TARSO GENRO*

As fogueiras do fascismo e o bloqueio da desobediência civil democrática

Os nossos incêndios têm responsáveis e as nossas mortes na Pandemia vêm de atos e omissões de criminoso com endereço sabido. O ritual do fogo e da morte, no fascismo e no nazismo, não são gratuitos. Ele pretende “limpar” as esperanças  e o passado, ressecar a coragem nas consciências, matar o ânimo das resistências, enterrar a inteligência trocada pelo instinto adquirido nas épocas de barbárie. A queima dos livros pelos nazistas em Berlim, no nazismo, e a chacina das Fossas Adreatinas – em Roma – com tiros na nuca de 335 vítimas, como represália a uma ação militar da Resistência italiana, são parte desta história.

O símbolo da morte e da tortura é o anúncio da necessidade da submissão absoluta do corpo ao líder do Estado, que passa a ser a essência de uma máscara. E ela revela uma única verdade: a entrega das pessoas, da cultura e da ideia de nação, a um ser que “presenta”, não apenas “representa” o Estado e patrocina o medo. A máscara também se esconde na  indiferença, no silêncio do Sistema de Justiça e na anulação dos inconformados. Se o fascismo atípico – em construção no Brasil – não for destruído dentro do Estado, ele poderá se firmar na sociedade civil, já anulada pela manipulação da informação e pela degradação planejada da esfera da política.

As manifestações que o Presidente Trump vem fazendo sobre a insegurança da votação para eleger o Presidente dos Estados Unidos, que provavelmente -segundo ele-  permite que os “democratas roubem a eleição”, coincidem com as “denúncias” -anteriores e posteriores à eleição da Presidenta Dilma- sobre  a insegurança da urna eletrônica e sobre a possibilidade de que tivéssemos, aqui no Brasil, um resultado “fraudado”, seja contra Aécio Neves, seja contra Bolsonaro. Esta estratégia de desconfiança planejada das eleições democráticas tem sido uma política mundial da extrema direita nos últimos dez anos

Proclamados os resultados, Aécio não os “aceitou” e, logo no início do seu mandato, estranhamente, Bolsonaro continuou insistindo que teria ocorrido -mesmo com a sua vitória já reconhecida- fraude na própria eleição em que foi vencedor. Os procedimentos de Trump e Bolsonaro sobre a legitimidade de Governos instalados a partir da soberania popular, abrem espaços para procedimentos de “exceção” em Governos que se alinham com a sua visão política, bem como favorecem o golpismo novo tipo, viabilizado por procedimentos parlamentares, que estão se tornando comuns na América Latina. E levam ao seu ponto final a crise da representação alcançada pelos procedimentos democráticos tradicionais.

No caso de Aécio, certamente sua postura foi produto de um desatino autoritário de quem já previa tempos difíceis nas Delegacias da Polícia Federal, pois se ele chegasse à Presidência, seus inquéritos seriam sustados. No caso de Bolsonaro, todavia, foi a previsão (certeira) de que – em algum momento – seria necessário contrapor algo às denúncias de ilegitimidade da sua vitória eleitoral, que foi lastreada num  festival de “fake news”. Tais “fakes” foram usadas para lhe trazer o apoio de milhões de eleitores, que acreditam em tudo que pode confortar os seus preconceitos e alienações.

Só quem acredita que a terra é plana, em “mamadeira de piroca”, em conspiração chinesa para “criar” vírus em cativeiros (para arruinar a economia mundial), em Jesus Cristo na goiabeira, em pastores das religiões do dinheiro interessados em salvar almas; só quem acredita que Bolsonaro é crente em Deus -só quem crê em tudo isso- seria capaz de supor que o TSE e o STF seriam capazes de fraudar resultados eleitorais para favorecer o PT.

As hostes de Trump e Bolsonaro, na verdade, acreditam na ilimitada ignorância de uma boa parte manipulável da população e apostam todas as suas fichas nesta diferença: o absurdo pode ser a vitória, a mentira pode ser universalizada, quem acredita que a terra é plana pode acreditar que é importante matar suspeitos atirando na sua “cabecinha” e que Flordelis vai para o céu. Thoreau, que foi preso ao se negar a pagar impostos porque eles estariam financiando a Guerra dos Estados Unidos contra o México, no seu  ensaio sobre a “Desobediência Civil” (1849) inspirou Tolstói, Gandhi e Luther King, mas não só.

A “desobediência civil” é a resistência contra os mecanismos de poder das instituições quando estes operam em desrespeito às liberdades, aos direitos dos indivíduos e se tornam -na mecânica dos seus procedimentos-  uma ameaça constante ao conjunto da comunidade que decidiu “ser livre”. Nesta hipótese atuam com apoio de leis injustas ou por  procedimentos injustos das autoridades legais. Na sua visão anarco-individualista libertária Thoreau defendia um tipo de Governo que atuasse sempre  pela consciência do que é verdadeiro e justo, não necessariamente a partir da vontade majoritária.

As formulações de Thoreau, revolucionárias à época em que foram postas na formação do Estado Liberal Democrático, podem -como em todas as fórmulas anarquistas ou semi-anarquistas- ser lidas com variadas lentes. Tanto com as de Gandhi, na sua resistência de massas pacíficas contra o colonialismo assassino, como com as de Rosa Parks, que desafia sozinha a segregação racial, recusando-se a sair de um lugar destinado aos brancos no ônibus de Montgomery.

Podem ser lidas, também, com as lentes de Mussolini, que dividia a Itália entre os “politiqueiros e covardes” e a Itália “sadia, forte e vigorosa, que se prepara para varrer todos os incompetentes” (…) “toda a ralé infecta da sociedade italiana”, para “que a Itália se torne fascista”, como ele mesmo disse no Comício de Cremona, em setembro de 1922. A desobediência civil de Mussolini, pela direita, ocupou o espaço que a esquerda deveria ocupar -como desobediente- em defesa da democracia e da república.

Observemos a visão de Mussolini, exposta no seu discurso do bairro Amatore Sciesa, em outubro de 22, em Milão, para comparar as suas táticas de gestão política -fora e dentro do Estado-  com as de Trump e Bolsonaro, nos dias atuais. Nele o Duce expõe a sua visão sobre o Estado Liberal, dizendo e a sua visão de desobediência civil na crise da democracia liberal: “o Estado liberal é uma máscara por trás do qual não há rosto algum (…) o que nos separa da democracia são os artifícios eleitorais. As pessoas querem votar? Que votem! Votemos até o cansaço e a imbecilidade. Ninguém quer suprimir o sufrágio universal. Mas faremos uma política de reação e de severidade (…) Dividi(re)mos os italianos em três categorias:os italianos ‘indiferentes’, que ficarão em casa esperando; os ‘simpatizantes’ que poderão circular; e finalmente os italianos ‘inimigos’. E esses não circularão”.

Estas são todas as tentativas de Trump e Bolsonaro, que espelham os movimentos de extrema direita em todo o mundo e que precisam unificar o Poder Judiciário e as Procuradorias para prosperar, embora -apesar de tudo- estas instituições ainda resistam às ações mais grosseiras e destrutivas,  de si mesmas e da própria ideia de Constituição. A hora é hora de alarme, na beira do sinal vermelho. Se as nossas lideranças  da esquerda e do campo liberal-democrático consequente não se unirem chamara à resistência e à luta -acima dos interesses imediatos dos Partidos- podemos ser asfixiados, não só pelas fumaças dos incêndios, mas também pelo ódio do fascismo em curso de instalação na burocracia do Estado.

A ambição e os interesses do ultraliberalismo radical, amancebado com o que tem de pior na política nacional, separaram Bolsonaro e Moro, para a nossa sorte. Não fiquemos parados, pois eles podem ainda nos preparar uma pior: unificar Bolsonaro, Bretas e Trump, num mesmo barco que levará o país às fogueiras atuais e às outras fogueiras do inferno ultraliberal, mais ajustado ainda com o fascismo e mais solidário com as mortes pelo fogo, pelo vírus e pela tortura generalizada.

*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

 

 

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