As palavras apodrecem

Khalil Rabah, Geografias ocultadas, 2018
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ EDUARDO SOARES*

As palavras estão vazias, evocam mas não substituem os corpos empilhados em Gaza, apodrecendo em Gaza

O mais dilacerante sofrimento humano não é nomeável, descritível, muito menos mensurável. Transborda os limites da linguagem e de qualquer medida. Sua natureza é a incomensurabilidade. Por isso, quando provocado, este sofrimento, por ações alheias evitáveis, não pode ser justificado, não cabe em nenhuma sequência moralmente motivada de atos.

Milhares de crianças mutiladas, membros amputados sem anestesia, espíritos destroçados, seus mundos familiares arruinados, seu espaço devastado, as coisas que as cercam estilhaçadas e calcinadas. Essas palavras estão vazias, evocam mas não substituem os corpos empilhados em Gaza, apodrecendo em Gaza: as palavras também apodrecem.

Nenhum sofrimento extremo é comparável a nenhum outro, porque não pode ser partido em unidades, pesado, delimitado, contabilizado, apreendido fora de si mesmo, dado a outrem como um dom, devolvido por seu preço em moeda comum, a moeda que se troca entre mãos hábeis. O sofrimento excruciante da criança em agonia é um só, um oceano e um deserto, sem começo nem fim: a história interminável do avesso do que gostaríamos de chamar humano.

A criança em pânico, agonizando em Gaza, é a mesma criança em pânico agonizando no campo de concentração nazista. As duas agonias não são comparáveis porque são uma só e a mesma agonia. Nenhum de nós, nenhuma testemunha tem medida para distinguir, hierarquizar e comparar. Nenhum de nós tem o direito de sugerir que sabe o que é isso de que falamos para velar.

Mas temos o dever de nos postar como guardiões da inexpugnabilidade do sofrimento extremo, de sua incomparabilidade, de sua incomensurabilidade, de sua irredutibilidade à linguagem e a toda forma de neutralização. E temos também o dever de nomear os carniceiros.

Os agentes das carnificinas, o governo de Israel e os nazistas, cometeram crimes contra a humanidade e têm de responder perante a história. Seus crimes não são comparáveis. São um só.

*Luiz Eduardo Soares é antropólogo, cientista político e escritor. Ex-secretário nacional de segurança pública. Autor, entre outros livros, de Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos (Boitempo) [https://amzn.to/4754KdV]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Bolsonarismo – entre o empreendedorismo e o autoritarismo
Por CARLOS OCKÉ: A ligação entre bolsonarismo e neoliberalismo tem laços profundos amarrados nessa figura mitológica do "poupador"
Fim do Qualis?
Por RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA: A não exigência de critérios de qualidade na editoria dos periódicos vai remeter pesquisadores, sem dó ou piedade, para um submundo perverso que já existe no meio acadêmico: o mundo da competição, agora subsidiado pela subjetividade mercantil
Carinhosamente sua
Por MARIAROSARIA FABRIS: Uma história que Pablo Larraín não contou no filme “Maria”
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Distorções do grunge
Por HELCIO HERBERT NETO: O desamparo da vida em Seattle ia na direção oposta aos yuppies de Wall Street. E a desilusão não era uma performance vazia
Carlos Diegues (1940-2025)
Por VICTOR SANTOS VIGNERON: Considerações sobre a trajetória e vida de Cacá Diegues
O jogo claro/escuro de Ainda estou aqui
Por FLÁVIO AGUIAR: Considerações sobre o filme dirigido por Walter Salles
Cinismo e falência da crítica
Por VLADIMIR SAFATLE: Prefácio do autor à segunda edição, recém-publicada
A força econômica da doença
Por RICARDO ABRAMOVAY: Parcela significativa do boom econômico norte-americano é gerada pela doença. E o que propaga e pereniza a doença é o empenho meticuloso em difundir em larga escala o vício
A estratégia norte-americana de “destruição inovadora”
Por JOSÉ LUÍS FIORI: Do ponto de vista geopolítico o projeto Trump pode estar apontando na direção de um grande acordo “imperial” tripartite, entre EUA, Rússia e China
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES