Por FRANCISCO DE OLIVEIRA BARROS JÚNIOR*
Há um desfile de Cristos: os coniventes com as estruturas opressivas, excludentes, ideólogos das relações de exploração, geradoras dos camarotes vips e apartheids sociais
Em um campo religioso de conflitos, são construídas muitas imagens de Jesus Cristo. Este é moldado em várias direções. São muitos os perfis compartilhados em torno do personagem nuclear da história do Cristianismo. Reflexo de uma sociedade classista, observamos um desfile de Cristos: os coniventes com as estruturas opressivas, excludentes, ideólogos das relações de exploração, geradoras dos camarotes vips e apartheids sociais. Os fascistas compartilham a imagem do seu Cristo acrítico, colonial, conformado e afinado com os interesses dos dominadores. A religião na sua clássica faceta opiácea. Por outro lado, com menor visibilidade, o Cristo sintonizado com a luta dos oprimidos, o desafinado com o coro dos “cristãos” pactuados com os exploradores. Afinado com o povo das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), os periféricos, excluídos, invisíveis e criminalizados. O Cristo da Teologia da Libertação, o que coloca os pés no chão das nossas favelas. Aquele que corre o risco de ser morto no enfrentamento de quem pergunta: você sabe com quem está falando?
Falo daquele Jesus que foi morto, no seu tempo histórico, por desafinar do projeto político, social e religioso dos donos do poder daquele contexto dos Herodes, Pilatos, sumos sacerdotes e anciãos. Estes, representavam interesses partidários e classistas. Uma opção preferencial e solidária pelos pobres, incomodava às classes dominantes. Aliados, um “Centrão” de políticos e uma bancada de religiosos daquela época, colocavam pedras no caminho dos cristãos libertadores. Os Júlios Lancellottis daquele momento, eram ameaçados, perseguidos, cancelados e mortos. Um Cristo “pedra no sapato”, que fedia e cheirava, não açucarado no seu relacionamento com os poderosos de plantão. Aquele que ficou furioso com os vendilhões do templo sagrado, gênese das “pequenas igrejas, grandes negócios” dos nossos dias. O carismático pregador de um discurso indignado e profético, de anúncio e denúncia. Assassinado, por múltiplas razões, em especial as políticas e religiosas, protagonizou uma dolorosa “via-sacra”. Nas estações do seu Calvário, em número de quinze, na ritualística católica, a abertura de espaços para um cristão pensante, com ideais transformadores, voltados para mudanças estruturais, revolucionárias. Como separar fé e política?
Nas referências de uma “Teología de la Liberación”, cito Gustavo Gutiérrez, propagador do “Deus da vida” e do seu objetivo teologal de “hablar de Dios desde el sufrimiento del inocente”. “La fuerza histórica” de um Cristo “del lado de los pobres”. Nesta trilha, com seu “Batismo de Sangue” e em “uma vida entre a igreja e a política”, o “Jesus militante” de Frei Betto, munido do “Evangelho” e do “projeto político do Reino de Deus”. Na “esperança de um povo que luta”, com a sua “leitura popular da Bíblia”, o Frei Carlos Mesters segue “com Jesus na contramão”. Inquieto e persistente na “paixão de Cristo, paixão do mundo”, Leonardo Boff protagoniza uma “eclesiologia militante”, ancorada em “Jesus Cristo libertador”. O investimento teológico na “força dos pequeninos” apresenta o Cristo da “Teologia do Cativeiro e da Libertação”. Os referidos teólogos, mesmo sabendo das profundas diferenças entre Jesus Cristo e Karl Marx, veem possibilidades de diálogo entre as perspectivas por eles propostas. Na ponte dialogal, a crítica ao capitalismo selvagem, desumanizante, e as propostas de superá-lo. Estamos em um plano de muitas tensões.
No seguimento do martírio de Cristo, uma indagação: quem são os crucificados da nossa sociedade? Carregando cruzes de pesos diferenciados, tentamos suportar as nossas e atentar para as pesadas cargas carregadas pelos desempregados, doentes e famintos em suas precariedades existenciais. Humanos são alvos de descartes e tratados como refugos. Os refugiados sabem disto. As quedas de Jesus são experimentadas pelos “pequeninos”, os “tantos caídos” pelas ruas das nossas cidades. A ostentação violenta, inconsequente e exibicionista dos milionários, celebridades e influenciadores despudorados, nas suas novas mansões, provocando e humilhando os miseráveis. “Sou visto, logo existo”.
Paisagens da “Belíndia” brasileira e as suas cariocas zonas norte e sul, sob as bençãos redentoras de um Cristo na vista de um espetáculo de fascínios e terrores. Os brasis seguem o cartão postal da “cidade maravilhosa” com os seus luxuosos condomínios murados, eletrificados, vigiados e seguros contra os perigosos periféricos, pobres e pretos. Da areia da praia, a ralé contempla a destrutiva, escandalosa e incontrolável especulação imobiliária. Apartamentos de preços nada populares. Quantos deles tem aquele jogador famoso? A criminalização da pobreza demanda por muros altos, cercas elétricas e câmeras de vigilância. O medo gera lucro e os jornais policiais são campeões de audiência. A chapeuzinho, vermelha ou amarela, segue assustada com a espreita dos lobos. Cuidado com os sob pele de cordeiro.
As Marias sofrem ao verem os seus rebentos hospitalizados, presos e drogados. Sofrimentos marianos nos rostos brasileiros desfigurados: moradores de rua, os violentados e desassistidos em todas as fases da vida. Na desassistência, encaram agressividade, indiferença e fechamento. Na exclusão, as pessoas são despojadas das suas dignidades. Sem emprego, saúde e moradia, encarnam a paixão cristã e chagados, conhecem a discriminação, o abandono, a intolerância. Na perspectiva de uma “amizade social”, o estímulo para que enxuguemos as lágrimas uns dos outros, em uma sensibilização de ajuda. Toques dados pela Campanha da Fraternidade 2024, uma iniciativa da CNBB, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. E os descasos dos poderes públicos? Nos seus descuidos irresponsáveis, chegam a atuar como crucificadores.
Não atentando para os desdobramentos do que estamos fazendo ou omitindo, parimos situações mortíferas. Banalizamos o mal. Este é espetacularizado, viraliza, dá altos índices de audiência. O mercado dita as regras, joga e lucra com a pequenez, a frivolidade e o lado ordinário dos indivíduos, escancarados em hiperexposição e vigilância midiáticas. “Fofocalizados”, são vistos, logo passam a existir. As barbáries fazem parte do nosso show. Por onde anda a delicadeza? Pendulando entre progressos e regressões, para onde estamos indo? É neste contexto de clarões e breus que observamos a elasticidade do nome de Jesus, moldável para justificar os seus mais variados usos e abusos, de A a Z. À semelhança da palavra Deus, usada para amar e matar.
No artigo enviado por A Terra é Redonda, em 27 de março de 2024, Marilia Pacheco Fiorillo interroga no título do seu texto: “Um Jesus? Ou uma multidão de disfarces?” No final, exclama e lança mais uma pergunta, congruente com um breu conjuntural de retrocessos: “Ai, Jesus! Quem te fez miliciano?”. Na mesma data antes mencionada, a “Teologia da Libertação Brasil” compartilhou, no facebook, a seguinte mensagem do Padre José Comblin: “Jesus morreu porque anunciou o Reino de Deus, o que ameaçava tanto o reino de César como o reino das autoridades religiosas de Israel. Era um ato político, como queria o Pai”. O mártir cristão tem mil e uma utilidades.
*Francisco de Oliveira Barros Júnior é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
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