No inverno siberiano

Escultura José Resende / Moca, São Paulo/ foto: Christiana Carvalho
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Por VALÉRIO ARCARY*

Tática errada, estratégia míope em cinco notas

“As virtudes dos homens são semelhantes ao voo dos pássaros. Não se prenda aos atrativos inferiores. A ave que se habitua com a paisagem rasteira, perde o gosto pela altura” (Sabedoria popular Indiana).

1.

Dois anos de “inverno siberiano” bolsonarista e de “passagem da boiada” das contrarreformas reacionárias e o balanço é desolador. Tivemos (a) a “excepcionalidade” brasileira, ou seja, o impacto desproporcional da pandemia, mais de duzentos mil mortos, e a perspective de que a vacinação será um processo, na melhor das hipóteses, complicado; (b) o desemprego oficial, acima de 14% é o maior da história; os empregados por conta próprio caíram de 24,7 milhões para 21,7 milhões; os trabalhadores sem carteira assinada, outra parcela do semi-proletariado, caíram de 11,8 para 9 milhões; entre aqueles com carteira assinada a queda, entre dezembro de 2019 e o fim do terceiro trimestre de 2020, foi de 33,6 milhões para 29,3 milhões; (c) uma crise nacional do sistema de segurança pública com as chacinas racistas da violência policial e explosão de feminicídios; (c) o maior ataque de sempre à Previdência Social, o principal programa de distribuição de renda dos últimos trinta anos; (d) um aumento do desmatamento na Amazônia, o maior incêndio da história no Pantanal, o fim dos projetos de reforma agrária, os ataques às demarcações de terras indígenas; (e) ameaças constantes aos direitos das mulheres, dos LGBT’s, e da população negra; (f) a expansão das escolas militares, e a intervenção nas Universidades;(f) não fosse o bastante, o fim do auxílio emergencial de R$ 600,00 para mais de 65 milhões de pessoas; o fim da complementação salarial para outros dez milhões, no contexto de uma contração econômica de 4% a 5% do PIB sugerem um cenário de crise social grave para 2021, com a projeção de que quatorze milhões de pessoas poderiam cair na pobreza absoluta.

2.

Diante desta situação objetiva devemos considerar qual é a situação da esquerda. Passamos os últimos dez meses, em função da pandemia, com os punhos fechados e as mãos nos bolsos. Um contexto em grande medida inevitável, quase uma hibernação da esquerda. Hibernação é um estado fisiológico muito raro na natureza. Uma forma de adaptação ao jejum em condições, especialmente, adversas. A vigília é suspensa e prevalece uma letargia, marasmo, torpor, sonolência e inação, em que as funções vitais do organismo são reduzidas ao mínimo indispensável à sobrevivência biológica. Acontece que mesmo militantes revolucionários, treinados para a espera de inflexões, têm dificuldades de fazê-las. As mudanças na realidade são sempre quantitativas, e menos perceptíveis, até que ocorre o salto qualitativo. Reagimos com atraso. Porque a mente humana é vulnerável ao viés de confirmação de nossas preferências. É assim que vai se formando um senso comum. Mas a vida e a luta política não são lineares. Não há inverno que dure, indefinidamente. O mais importante é a capacidade de previsão dos conflitos e rupturas, para que estejamos capazes de enfrentar as batalhas que virão sem improvisos. As condições objetivas serão terríveis no ano que inicia. Mas um agravamento da crise social não será o bastante. A questão decisiva será a maturação das condições subjetivas para derrotar Bolsonaro. Mas, também, o perigo que se insinua com a formação, em alguma medida surpreendente, de uma posição que divide as bancadas do PT e do PSol, e parece ser unânime no PCdB,  que defende o apoio a Baleia Rossi, desde o primeira turno. Confundir a relação de forças política ultra-desfavorável dentro do Congresso Nacional com a relação de forças social no terreno da luta de classes é preocupante.

3.

Há nuvens no horizonte que sugerem turbulências. A divisão das bancadas federais do PT e do PSol em relação à tática para a eleição da presidência da Câmara em torno de duas posições, infelizmente, sinaliza um debate muito mais grave de estratégia, ainda que de forma embrionária. O tema é o caminho para a derrota de Bolsonaro, a mãe de todas as batalhas. Na forma, a diferença é tática. Nas últimas décadas de estabilidade do regime, as negociações em torno da eleição da presidência da Câmara, dos cargos na mesa, e distribuição nas comissões e relatorias foram um tema menor, quase uma subtática de rotina parlamentar. Mas, estamos em condições excepcionais sob o governo de extrema-direita de Bolsonaro, um presidente neofascista com um projeto bonapartista. O fato de ser tão polêmico o lançamento de uma candidatura de esquerda no primeiro turno, quando há acordo em um voto crítico contra Artur Lira no segundo turno é o mais perturbador. Por quê? Há três grandes blocos políticos no Brasil, não dois. Devemos fazer unidade de ação pontual com os inimigos de classe em defesa das liberdades democráticas. Mas não podemos entrar em uma frente programática com os inimigos de classe. O apoio no segundo turno é um voto contra Artur Lira. O apoio no primeiro turno é um voto de apoio à plataforma de Baleia Rossi, desconsiderando que os discursos anti-Bolsonaro são um jogo de dissimulação eleitoral. A tática de 2021 é indivisível da estratégia para 2022. A defesa de apoio a Baleia Rossi, ainda em primeiro turno, indica uma tendência perigosa, porque ameaça a defesa da independência de classe como o centro da estratégia. Tática e estratégia são indivisíveis. Se vale apoiar Baleia Rossi no primeiro turno para a eleição da presidência da Câmara, porque não valeria, também, com mais razão até, apoiar a candidatura melhor colocada em 2022 para derrotar Bolsonaro, antecipando o desenlace de um possível segundo turno para o primeiro?

4.

O programa de Baleia Rossi é o da ala do centrão que sonha com uma Frente Ampla. Quando a esquerda apoia Baleia Rossi apoia o programa da oposição de direita liberal. Mas o que prevaleceu nestes dois últimos anos foi o apoio da oposição de direita liberal à maioria dos projetos bolsonaristas. Rodrigo Maia, elevado à posição de “primeiro-ministro”, costurou uma frente que representa o projeto de garantia da governabilidade de Bolsonaro até 2022. Esse projeto exclui o impeachment a menos que algo, neste momento, imprevisível, como um giro de Bolsonaro para o autogolpe aconteça. Que o candidato seja homem de confiança de Temer não é casual. Trata-se de garantir que a Câmara dos Deputados assuma, plenamente, um papel de cogestão já ensaiado no último semestre, diminuindo, o lugar de Bolsonaro. O desenho do regime, o tipo de equilíbrio de poder entre as instituições, seria deslocado pelo fortalecimento do Congresso engessando as iniciativas de Bolsonaro aos limites do que é consensual na classe dominante. Esse projeto tem o apoio da maioria da burguesia. O apoio da maioria da bancada do PT na Câmara capitula a este projeto esgrimindo o argumento do perigo “iminente e real” de um autogolpe: melhor o governismo sem bolsonarismo. Na eleição do Senado a bancada do PT foi mais longe e decidiu apoiar, por unanimidade, a candidatura defendida pelo próprio Palácio: melhor o bolsonarismo sem os golpistas, uma espécie de hipocondria política. Mas não é este o perigo real e iminente. O perigo real e iminente é a aprovação da independência do Banco Central, a reforma administrativa, a privatização dos Correios, entre outros, mas todos com o apoio do bloco de Rodrigo Maia.

5.

O perigo da estratégia da Frente Ampla não se coloca somente como discussão de candidatura unificada de oposição para 2022. Coloca-se agora, desde já, em 2021, na eleição da Câmara. A linha da Frente Ampla, dirigida pelo núcleo duro da fração paulista da burguesia, que se expressa pelo bloco Maia e Doria, é desgastar Bolsonaro, mas preservar seu mandato, para retirar a esquerda do segundo turno de 2022. A candidatura de Baleia Rossi não é a candidatura de Bolsonaro, mas é, também, governista, porque é a rede de proteção da estabilidade institucional. Portanto, uma candidatura para proteger os interesses da classe dominante contra Bolsonaro, o que gera confusão nas “aparências”, mas não esconde a “essência”. Estamos diante de um jogo de dissimulação. Esta discussão, portanto, é indivisível da linha da Frente Ampla: a esquerda não pode renunciar à disputa da liderança da oposição a Bolsonaro. A esquerda deve  lutar, impiedosa e incansavelmente, para tentar derrubar Bolsonaro, forçar o impeachment e, se não conseguirmos, impedir que a extrema-direita chegue ao segundo turno em 2022.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

 

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