Por Juarez Guimarães*
É preciso pensar a dialética entre o PT e o Estado brasileiro, ou seja, os vetores cruzados de mudança no PT fruto de sua adaptação à institucionalidade estatal e o que o PT conseguiu alterar desta institucionalidade
A ascensão do neoliberalismo
As vitórias e derrotas do PT, o seu impasse e seu futuro só podem ser bem avaliados à luz de toda uma era histórica de ascensão do neoliberalismo e da crise ainda não resolvida das tradições socialistas democráticas, inspiradas no marxismo.
Não é uma coincidência menor o fato de que o PT nasceu exatamente no período em que nos EUA e na Inglaterra, o neoliberalismo chegava aos governos e iniciaria o seu caminho nas décadas seguintes de centralizar a tradição liberal, derrotando o liberalismo social ou keynesiano, e afirmar-se de modo crescente como a força orgânica dirigente do capitalismo mundial. O próprio processo histórico de recomposição e superação da crise histórica do socialismo democrático foi profundamente condicionado e limitado por esta ascensão do neoliberalismo que organiza toda uma época da história mundial, que vai dos anos 1980 até os dias de hoje.
Esta era de ascensão significou, em primeiro lugar, uma brutal alteração da correlação de forças à direita, que se expressou não apenas no plano geopolítico – o modo como se processou e se capitalizou a dissolução da URSS e do Leste Europeu, firmando inclusive a Alemanha como a principal potência econômica capitalista europeia –, mas na economia ( um violento processo de concentração de riquezas e rendas em detrimento dos trabalhadores e povos ), no plano das comunicações ( com a formação de uma vantagem estrutural formidável em favor das classes dominantes), e da cultura política ( com a massificação das culturas liberais de mercado e anti-socialistas, típicas da Guerra Fria).
O processo da revolução centro-americana, as lutas anti-burocráticas no Leste Europeu como na Polônia e na Tchecoslováquia, os processos de libertação na África e no Vietnam, a derrubada do apartheid na África do Sul, não tiveram uma sequência emancipatória. Ao contrário.
Em segundo lugar, a ascensão do neoliberalismo significou um estreitamento histórico estrutural das possibilidades reformistas do capitalismo, que vicejaram no período do pós-guerra até os anos setenta, de construção de novos direitos e estruturas do Estado do Bem-Estar Social. A ascensão do neoliberalismo foi retirando a direção da macro-economia financeirizada das mãos do controle democrático, fomentando um gigantesco processo de evasão para os paraísos fiscais, criando desemprego estrutural e, por fim, atacando as próprias instituições democráticas de negociação corporativa no interior do capitalismo.
A crise da socialdemocracia européia, em especial da francesa, o emparedamento e isolamento das experiências mais avançadas de Estado do Bem-Estar Social no norte europeu, a crise do trabalhismo inglês e, em particular, a tragédia do eurocomunismo são expressões, em contextos nacionais específicos, destas grandes mudanças.
Em terceiro lugar, a ascensão do neoliberalismo agravou dimensões da crise capitalista que devem ser sintetizadas em um diagnóstico mais geral de crise de civilização: a crise ecológica, a renovação de padrões colonialistas de domínio e de verdadeiras zonas de guerra, o crescimento exponencial da pobreza e da violência, a renovação das culturas racistas e de ataque frontal aos direitos humanos. Mais importante, funcionou como uma barreira de contenção do feminismo e de reprodução dos padrões patriarcais e mercantis de reprodução da vida social.
As dimensões autocráticas, cada vez mais evidentes, do neoliberalismo – em aliança aberta com setores fascistas – não são um produto marginal, mas estão no centro de sua ascensão, de sua incapacidade de sustentar a sua legitimidade em contextos democráticos, de promover uma retomada do crescimento econômico (devido à sua raiz rentista), além de instituir fenômenos de vida social e cultura de barbárie (devido ao seu regime de apartação social). Em um sentido mais largo, o neoliberalismo seria a expressão não da força, mas da decadência hegemônica dos EUA frente a ascensão política da China, um grande eixo polarizador dos destinos do século XXI.
A experiência petista
Como esta era histórica de ascensão do neoliberalismo no plano mundial marcou os 40 anos do PT?
De modo profundo e decisivo. Em primeiro lugar, os dois ciclos de interrupção da ascensão do PT na democracia brasileira que resultou da transição conservadora podem e devem ser entendidos como expressões mediadas nacionalmente de conjunturas internacionais neoliberais: a ascensão dos governos FHC que reorganizou um pacto de cominação em contato direto com a chamada “Terceira Via” de Bill Clinton e Tony Blair e o golpe parlamentar de 2016 com sua sequência no governo Bolsonaro que tem o seu epicentro político no desenvolvimento abertamente anti-democrático do neoliberalismo após a grande crise internacional de 2008.
A reorganização do liberalismo brasileiro pela via do PSDB e, agora, a aliança neoliberal e fascista via Bolsonaro certamente têm raízes nacionais mas perdem sentido histórico se desconectados do que estamos chamando de a “era neoliberal”.
Em segundo lugar, é preciso constatar a temporalidade distinta e defasada por uma década da presença politicamente organizada do neoliberalismo no Brasil. Aqui, os anos 1980 foram marcados por um dos maiores ciclos de ascensão classista do século XX, pela criação do PT, da CUT, pela expansão do MST e que se expressaram muito bem nas resoluções do V Encontro Nacional do PT. Foi apenas nos anos noventa que o movimento político liderado pelo PSDB, após a derrocada de Collor, promoveu uma virada à direita na correlação de forças em relação à década de oitenta.
Agora, havia uma força política organizada pelo PSDB, com apoio do estado norte-americano, orgânico às classes dominantes com centro nos setores financeiros nacionais e internacionais, organizando uma maioria parlamentar e um poder comunicativo novo. O PMDB, girou para o sentido fisiológico e à direita. Esta pressão levaria o PT e os movimentos sociais para uma postura adaptativa claramente de resistência, predominando a partir de meados dos anos 1990 uma nova direção, uma nova estratégia e uma nova maioria partidária, mais afinada a um processo institucional de luta política, distanciando-se em sua maioria de um referencial e de uma cultura anti-capitalista.
Em terceiro lugar, a pressão neoliberal nos anos 90 – que foi capaz inclusive de modificar substantivamente pontos decisivos da Constituição de 1988 – moldou um novo cenário político de disputa para as esquerdas brasileiras. A polarização com o PSDB, que atravessou durante vinte anos as eleições presidenciais de 1994 a 2014, nunca propiciou ao PT formar uma maioria de primeiro turno ou um avanço consistente de uma maioria parlamentar.
Entre a polarização esquerda-direita, o PMDB manteve-se sempre como o partido fiel da balança, em um eleitorado que em geral se posicionava 1/3 à esquerda, 1/3 à direita e 1/3 flutuando ao sabor da polarização. De um ponto de vista social, as classes trabalhadoras não viviam mais uma ascensão organizativa e de lutas, em função de um desemprego estrutural e de novas dinâmicas cada vez mais fortes de precarização do mundo do trabalho.
Se esta perspectiva histórica ampla, permite constituir uma narrativa de sentido de como a era neoliberal foi contendo e condicionando profundamente a experiência petista, ela certamente se confundiria com uma perspectiva determinista de grave esvaziamento das alternativas políticas postas historicamente ao PT se não for mediada por uma segunda dimensão político-cultural decisiva: a evolução da cultura política do PT, de sua identidade, de seu programa e estratégia.
O espaço de autonomia da conjuntura nacional em relação a era neoliberal deve ser politicamente pensado, como atualização da condição semi-periférica do país e de suas dimensões histórico-estruturais como bem estuda, por exemplo, a tradição de Celso Furtado ou de Caio Prado Júnior. Em síntese, a era neoliberal condicionou fortemente o desenvolvimento do PT, mas não o determinou: a sua evolução dependia certamente da evolução de sua cultura política e de seu programa socialista. É o que examinaremos a seguir.
O PT e a crise não superada do marxismo
Os 40 anos do PT foram vividos em meio ao longo ciclo histórico da crise do marxismo que teve seu início na dissolução da Segunda Internacional e no impasse e, depois, regressão da Revolução russa. Em função disso, o PT, apesar de firmar desde o início sua identidade socialista, nunca conseguiu estabilizar um campo paradigmático de práxis socialista, isto é, que combinasse fundamentos teóricos marxistas com uma coerência prática socialista democrática.
No pós-guerra até o final dos anos 70, as identidades políticas do socialismo foram politicamente disputadas pelos partidos comunistas e pelas socialdemocracias, não tendo o maoísmo, o castrismo nem as diferentes vertentes do trotsquismos conseguido forjar um campo político estável e influente. Quando o PT surgiu estas correntes, em particular o eurocomunismo e a socialdemocracia, já viviam impasses profundos.
A ausência de um vetor claro de superação da crise do marxismo no campo teórico expressava-se neste período fundamentalmente pela formação de um conjunto de subculturas que mal se comunicavam entre si (eurocomunistas, althusserianos, luckasianos, as várias vertentes do trotsquismo, o marxismo inspirado na Escola de Frankfurt, o marxismo analítico anglo-saxão, estalinismos tardios). No campo político, pela ausência de uma convergência política internacional unitária que formasse um campo possível de diálogos e fusões.
Certamente o modo como se deu o fim da URSS e do sistema político do Leste Europeu trouxe para os anos noventa uma nova onda internacional de pressões, insulamentos, desarticulações e corrosão de identidades socialistas inspiradas no marxismo. Para a cultura neoliberal ascendente, o tempo do marxismo teria ficado definitivamente no passado.
Basta um exame panorâmico da vida intelectual do marxismo para constatar que este epitáfio neoliberal está sendo profundamente desmentido: a cultura do marxismo está mais viva do que nunca ( o livro Critical companion to contemporary marxism, editado por Jacques Bidet e Stathis Kouvelakis, de 2009, impressiona pela sua imensa bibliografia temática, em seus quarenta capítulos), a edição completa da obra de Marx e eruditos estudos contextuais já permitem construir uma narrativa de sentido alternativa àquela reformista e estalinista, há um vasto campo de atualizações críticas do marxismo em relação às realidades do capitalismo do século XXI.
Mas, na linha mesma do instigante ensaio de Perry Anderson sobre o marxismo ocidental (Considerações sobre o marxismo ocidental, Boitempo), a perda de uma relação orgânica entre o esforço de teorização do marxismo fora de relações orgânicas com as lutas operárias e sociais anti-capitalistas foi decisivamente aprofundada a partir dos anos 1990. Este processo de renovação do marxismo, em estado promissor e avançado, ainda não alcançou uma relação política orgânica, sendo este o seu principal limite.
A trajetória do PT
Como esta história da crise ainda não superada do marxismo condicionou a evolução do PT?
De novo, profundamente. O PT certamente ocupou nestes quarenta anos o lugar central da esquerda brasileira, mas claramente não conseguiu construir ao seu redor uma cultura socialista democrática, que afirmasse a sua identidade, o seu programa e a sua estratégia. Mais: ao longo do tempo foi se criando um fosso, uma defasagem e, em certo sentido uma contradição, entre a sua identidade socialista reiterada ao longo tempo e o seu programa e a sua estratégia.
Não se trata, ao modo Partido Socialdemocrata Alemão em seu período de máxima influência, no início do século XX, de uma separação entre retórica e realidade, entre programa máximo afirmado doutrinariamente e um reformismo prático cada vez mais acomodado ao status quo. É uma problemática mais complexa.
Desde sua fundação até o final dos anos 1980, houve um processo de radicalização classista que foi acompanhado por um esforço bem-sucedido de fusão entre tradições revolucionárias inspiradas no marxismo e a práxis do PT. Formou-se o embrião de um programa que vinculava a luta democrática por um novo governo com um sentido anti-capitalista. O PT chegou a ser avaliado neste período, por uma esquerda marxista que apostava nesta fusão, como um “partido revolucionário em construção”. Mas a nova escalada de crise do marxismo nos anos 1990 e a articulação política do neoliberalismo nos anos noventa quebraram este ciclo ascensional.
A aprovação do documento “O Socialismo petista”, em 1992, reafirmando e aprofundando a identidade socialista democrática do PT foi uma resposta decisiva. Mas não teve sequência no plano programático e estratégico em um horizonte fechado pela ascensão política do neoliberalismo. O debate estratégico do início dos anos 1990, polarizou-se entre três alternativas: a reiteração de uma estratégia insurrecional soviética por um marxismo dogmático, a proposta de uma combinação entre luta institucional e luta dos movimentos sociais e a chamada “estratégia da pinça”, que propunha esta combinação, mas com o centro de gravidade na acumulação de construção de um poder popular alternativo ao Estado liberal. Este debate estratégico não teve uma sequência explícita e organizada na cultura petista.
Cerca de dez anos após, um ciclo de debates sobre o “Socialismo petista”, promovido pela Fundação Perseu Abramo, inspirado por Antonio Candido, foi, de fato, o último momento em que o partido se concentrou no tema do socialismo e de sua cultura. A Teologia da Libertação passava já, há mais de uma década, por um ciclo regressivo e de perseguições no interior da Igreja Católica. A dinâmica classista do PT passava por um processo de institucionalização na estrutura sindical oficial precariamente transformada.
No século XXI
No novo século, após ter sofrido na década anterior duas derrotas eleitorais frente à coalizão liderada pelo PSDB, o PT caminhou decididamente para formar um programa de governo desradicalizado e desvinculado de uma perspectiva anti-capitalista, embora assentado na defesa dos trabalhadores e dos setores mais pauperizados.
A “Carta aos brasileiros” e o programa apresentado para as eleições de 2002 expressava bem esta separação, estabelecendo compatibilidade com a estratégia institucional de governar, a partir de dentro do Estado, a partir de suas possibilidades. Certamente, os quatorze anos de governo aprofundaram dramaticamente esta separação entre a identidade socialista e a prática política de um reformismo incapaz de alterar os fundamentos da estrutura de reprodução de poder e de riqueza.
O PT, ainda se reivindicando do socialismo, disputou as últimas três eleições presidenciais financiado por bilhões de reais oriundos de empresas que mantinham relações com sua inserção no Estado brasileiro. Esta separação entre a prática do PT e uma cultura socialista democrática certamente favoreceu todo tipo de subculturas adaptativas ao liberalismo ou, ainda, de tipo clientelista ou fisiológica, abrindo espaço para relações com interesses corporativos de setores e grupos empresariais.
Este quadro geral de diluição da cultura socialista do PT deveria ser parcialmente relativizado pela presença minoritária mas expressiva e, muitas vezes, decisiva em seu interior de correntes e lideranças que afirmavam em sua práxis valores anti-capitalistas, pelas experiências principalmente no âmbito municipal de radicalização da democracia, pela construção do Fórum Social Mundial e da relação com as experiências de esquerda na América Latina, pela manutenção de um núcleo de resistência da Teologia da Libertação, pela cultura criada em torno do MST que conseguiu manter e renovar vertentes anti-capitalistas, com o enriquecimento das culturas do feminismo, libertárias e anti-racistas, com o trabalho solitário mas memorável de Paul Singer em sua práxis da economia solidária.
Enfim, se o PT não conseguiu construir uma práxis socialista, ele não foi absorvido em sua identidade por uma lógica liberal, exceto no período da hegemonia de Palocci na condução da economia (curso depois modificado em 2005) e no período dramático de 2015 quando pôs à frente do principal Ministério de seu governo uma liderança secundária do neoliberalismo brasileiro. Não deixa de ser sintomático que, mesmo com o apoio de Lula e Dilma, a rejeição desta política tenha obtido mais de 40 % dos votos no Congresso do Partido, a oposição classista frontal da CUT e do MST. E, de toda forma, ela estava inserida em um ambiente de crise e desagregação da coalizão de governo liderada pelo PT.
Em síntese, se o PT não conseguiu construir uma práxis socialista, ele se manteve como a principal referência no Brasil nestes quarenta anos da luta contra o capitalismo realmente existente. Esta grande conquista histórica, magnífica se comparada ao destino trágico nestes quarenta anos de tantas experiências promissoras de emancipação, tem o seu epicentro na liderança histórica de Lula, a maior e mais importante já construída em toda a história de lutas do povo brasileiro.
A dialética entre o PT e o Estado brasileiro
A partir de uma tradição do socialismo democrático, inspirada no marxismo, a identidade de um partido deve ser definida a partir de sua relação com o Estado liberal. Um partido do socialismo democrático é aquele que luta por transformar o Estado a partir de seus valores, formar um Estado de transição histórica ao socialismo e construir um Estado cujos valores, instituições, sistemas de direitos e deveres, seja alternativo ao Estado liberal.
É esta a singularidade da obra de Marx, em relação aos outros socialismos de sua época, a defesa do sentido da revolução socialista democrática. E é este o princípio fundamental de construção de uma hegemonia socialista. Sem este norte programático e estratégico, um partido deve ser caracterizado como um partido de tipo reformista, de um reformismo forte ou fraco, submetido à pragmática das correlações de força.
Deste ponto de vista rigoroso, o PT ao longo de seus quarenta anos não conseguiu criar uma dinâmica, mesmo que inicial, de transformação revolucionária do Estado brasileiro. Em geral, se afirma que o PT “não conseguiu realizar reformas estruturais no sistema de poder e de reprodução do capitalismo brasileiro”. O que está correto, mas é insuficiente: seria preciso pensar a dialética entre o PT e o Estado brasileiro, ou seja, os vetores cruzados de mudança no PT fruto de sua adaptação à institucionalidade estatal e o que o PT conseguiu alterar desta institucionalidade.
O Estado liberal democrático brasileiro, saído da experiência da Constituíção de 1988, no qual o PT e a esquerda eram fortemente minoritários, viu-se logo em seguida em disputa pelas forças neoliberais, que recompuseram um bloco com as forças conservadoras a partir dos governos FHC. É fundamental entender que forças políticas neoliberais tiveram um poder constituinte fundamental de 1988 até hoje. Como as esquerdas ou um bloco esquerda e centro-esquerda nunca tiveram maioria parlamentar, sequer na Câmara quanto mais no Senado, neoliberais e conservadores sempre tiveram poder de veto sobre mudanças constitucionais importantes e mesmo sobre a efetivação de alguns princípios constitucionais que dependiam de uma regulação infra-constitucional.
Em função disso, as conquistas políticas, econômicas e sociais obtidas pelos governos nacionais petistas tiveram escassa constitucionalização.Mas do que isso, o governo FHC dispôs de maioria parlamentar para impor mudanças constitucionais importantes, em particular funcionalizando a macro-economia do Estado para os fins da acumulação rentista. E, agora, após o impeachment de Dilma, os pontos mais avançados da Constituição de 1988 estão sendo rigorosamente destruídos.
Sem poder constitucional, tendo que disputar em um sistema político de fortes vetores anti-republicanos, não deixa de impressionar as conquistas historicamente inéditas conquistadas obtidas pela ascensão democrática e pelos governos de coalizão liderados pelo PT. Elas traduzem o máximo civilizatório alcançado pelo povo brasileiro em toda a existência do país, este que está agora sendo dolorosamente destruído.
Esta dialética PT versus Estado brasileiro pode ser sintetizada em algumas dimensões: (a) a construção de uma política externa independente e a diminuição drástica da vulnerabilidade financeira do país ( mas não a alteração da matriz histórica estrutural da dependência econômica); (b) superação do quadro endêmico da fome e da pobreza extrema ( mas não a integração deste contingente de dezenas de milhões a uma condição estável de cidadania); (c) a ampliação importante dos gastos em políticas sociais, principalmente na educação ( mas não uma reforma tributária progressiva); (d) maiores investimentos no SUS e início da estruturação de um programa de atenção básica ( mas não a inversão do crescimento e polarização da medicina empresarial privatista); (e) a elevação do emprego, da formalização do mercado de trabalho e do valor do salário-mínimo ( mas não a superação de um quadro histórico de baixo patamar dos direitos do trabalho); (f) um investimento inédito na agricultura familiar e em assentamentos ( mas não uma política global de reforma agrária); (g) início de uma dinâmica de planificação econômica ( mas não a alteração de uma estrutura macro-econômica funcionalizada pelo rentismo); maior ciclo de construção de habitações populares ( mas não a reforma urbana e das cidades); (h) construção de marcos de controle e regulação do desmatamento, em particular na Amazônia ( mas não a mudança para um paradigma de desenvolvimentismo sustentável); (i) início de um ciclo participativo na esfera federal ( mas não a sua constitucionalização ou aprofundamento institucional); (j) adoção de políticas de cotas com grande impacto na incorporação da população negra ( mas não alteração dos padrões históricos de racialismo, em particular na área dos direitos civis e da segurança pública); (k) construção de marcos inéditos legais e institucionais de combate á corrupção ( mas não a superação do caráter sistêmico da corrupção, reproduzida principalmente através do financiamento empresarial das campanhas eleitorais); (l) visibilidade e adoção de políticas em defesa dos direitos da mulher, em particular a lei Maria da Penha ( mas não alteração dos fundamentos do caráter patriarcal do estado brasileiro); (m) início da construção de um sistema público de comunicação através da EBC ( mas não alteração dos padrões oligopólicos empresariais de domínio da comunicação).
Um balanço positivo e dramático
Este painel inédito e impressionante de conquistas históricas (e seus limites histórico estruturais), obtido com lutas sociais, ação parlamentar e ações de governo, não foi capaz de formar uma consciência socialista ou anti-capitalista no povo brasileiro mas formou uma consciência alta da dignidade e do direito a ter direitos do povo brasileiro. A sua síntese se traduz na força da liderança de Lula, na força de raiz do PT. Elas não foram destruídas pela violência neoliberal e neofascista. Em um contexto de disputa democrática, ela seria hoje provavelmente majoritária.
Por isso, um balanço dos 40 anos do PT não pode ser enunciado sob o signo de um fracasso já que uma consciência ufanista está fora de questão. É um balanço fundamentalmente positivo, mas dramático, que deve captar o risco fatal de sua destruição. mas também a superação potencial de seus limites históricos. Em um Estado neoliberal, construído em meio à violência de um governo de orientação neofascista, não há lugar histórico para a existência de um PT ou de qualquer esquerda, mesmo reformista. A dialética entre o PT e o Estado brasileiro precisa agora ganhar uma dinâmica socialista democrática.
Um futuro socialista democrático para o PT?
Nos quarenta nos do PT, houve assim três fases de sua relação com o Estado brasileiro: do nascimento até 1989, marcada por uma dinâmica de ascensão classista e popular e por um programa de enfrentamento e mudança frontal do Estado brasileiro; de 1990 até 2016, caracterizada por programa e estratégia que buscava defender e construir direitos no interior da institucionalidade democrática do Estado brasileiro, já modificada desde o início dos anos 1990 pela pressão reformista neoliberal; de 2016 em diante, centrada em um enfrentamento frontal com a destruição neoliberal da Constituição de 1988 e a reorganização do Estado a partir de princípios neoliberais e anti-democráticos.
É historicamente possível não um retorno do PT à práxis dos anos oitenta mas uma atualização de sua práxis em um sentido socialista democrático?
Pode-se afirmar que isto é possível: este caminho socialista democrático estaria fechado como impossibilidade histórica apenas se o PT houvesse aprofundado as suas relações com as classes dominantes nacionais e internacionais e perdido as suas relações com as classes trabalhadoras e populares. Mas a conjuntura de época, marcada pela radicalização liberal no sentido de um neoliberalismo autocrático, aponta o inverso disso. O PT e a liderança histórica de Lula ainda são, por mérito histórico, a principal referência pública da defesa dos direitos do povo brasileiro à liberdade e a uma vida digna.
Se um futuro socialista democrático do PT é um caminho possível, é ele provável? A previsão deveria ser condicionada.
A primeira condição é um novo período de fusão da cultura do PT com a cultura do socialismo democrático renovada pela compreensão do caráter anti-capitalista, radicalmente democrático e republicano da tradição fundada por Marx. A segunda fase da relação do PT com o estado brasileiro, em particular nos anos em que esteve no governo central, foi marcada pela ascensão da cultura do pragmatismo político e pelo enfraquecimento dos valores e tradições socialistas. Se não houver esta fusão, esta renovação da cultura do socialismo petista, o caminho de renovação do PT certamente se frustrará.
A esquerda marxista do PT foi, sem dúvida, a que mais sofreu e foi provada neste processo. Ela teve forças para incidir em vários momentos decisivos, mas não para ser uma alternativa de direção. A institucionalização do PT no Estado liberal expressou-se na vida interna do partido através do uso pelas correntes majoritárias do acesso privilegiado a cargos e dinheiro para manter posições. Nos dois últimos congressos partidários, feitos em regime de voto em urna com deturpações profundas, a democracia partidária foi fortemente afetada.
A esquerda petista, referenciada no marxismo, é hoje minoritária no PT. Mas ainda há, com identidade, articulação nacional e representação pública no PT e nos movimentos sociais que nele se referenciam, uma esquerda que se orienta a partir de valores socialistas democráticos e marxistas.
Ela tem forças para compor e fazer parte de uma nova composição hegemônica do PT?
Uma segunda condição para calçar uma previsão, é a postura do PT frente ao governo Bolsonaro e ao programa neoliberal.Como partido não doutrinário e com uma âncora socialista leve, a flutuar ao sabor das conjunturas em meio à toda uma época da crise de uma cultura, a consciência média do PT reflete de forma muito orgânica a dinâmica das lutas de classes.
A radicalização da luta de classes pode e deve abrir espaços para a renovação de uma cultura socialista democrática. Um novo ascenso das lutas políticas e sociais poderia incentivar a formação de um novo programa histórico do PT voltado para uma democratização mais profunda do Estado brasileiro e um enfrentamento mais decidido aos seus modos de reprodução das desigualdades do capitalismo. Em síntese, a renovação da cultura do socialismo democrático depende fundamentalmente de uma radicalização da luta democrática contra o neoliberalismo e a dinâmica fascitizante do governo Bolsonaro.
Faz parte deste desafio o reencontro do PT com as bases sociais dos trabalhadores brasileiros, profundamente atingidos pelo desemprego, pela precarização, pela entrada de novas tecnologias. Na história do PT, esta base social classista foi fundamental. Continua sendo: sem este reencontro, uma cultura socialista democrática não encontrará plenamente suas bases de desenvolvimento.
O risco maior do PT neste campo é enfrentar os desafios do futuro com os olhos voltados para o passado, isto é, enfrentar a desestabilização da democracia brasileira a partir de um viés estritamente institucional, pautado por seus ritos e calendários, suas expectativas e ilusões. Como se o tempo político do neoliberalismo, com o golpe e seu Termidor constitucional, estivesse ainda amarado á dinâmica pura e simples de uma democracia liberal. Ora, a disputa de hegemonia exige fundar um novo tempo, abrir novos horizontes, ir além do enquadramento da disputa posto pelas classes dominantes.
Uma terceira condição é o PT adotar, como estratégia, a unidade das forças de esquerda do país, ou seja, criar uma dinâmica de um diálogo histórico rico e necessário com as forças políticas e as novas gerações, que têm valores anti-capitalistas, mas não têm o PT como referência. A política de alianças políticas e eleitorais prioritárias com forças liberais e conservadoras provou ser um caminho de desastres. E uma parte importante das novas vanguardas da esquerda brasileira não tem o PT como referência, embora esteja aberta a convergências em regime de pluralismo e não hegemonismo.
A comemoração dos 40 anos do PT tem, assim, um triplo significado. Ela é um escândalo, subversivo e altissonante, para todos aqueles que colocaram como centro de sua vontade política o extermínio do PT e das forças de esquerda. Ela é um motivo de festa e júbilo – ainda mais com a recém libertação de Lula – para toda uma geração que dedicou a vida à defesa dos direitos do povo brasileiro e à construção de um socialismo democrático. E ela é principalmente um desafio posto na história de construção de uma esperança socialista nova.
*Juarez Guimarães é professor de Ciência Política da UFMG