Por MARCELO GUIMARÃES LIMA*
O recém-revelado plano golpista tem como fundo histórico a impunidade dos crimes da ditadura militar iniciada em 1964
Há ocasiões em que não é demais repetir o que todo mundo já sabe. Pois o conhecimento dito comum pode acabar ocultando importantes questões e fatos justamente por não ser devidamente expresso, assumido como “óbvio”, isto é, algo que não necessita ser repetido por não anunciar nada além daquilo que “todos sabem”. Alguém duvida que o recém-revelado violento plano golpista ao final da presidência do Sr. Jair Bolsonaro, incluindo, além da destituição dos poderes constituídos, o planejamento de assassinatos, que tal plano tem como fundo histórico a impunidade dos crimes da ditadura militar iniciada em 1964?
Creio que nem mesmo o general Augusto Heleno, militar ativo nas altas esferas do comando das forças armadas durante a ditadura, duvidaria se refletisse. Mas, que digo? O general Augusto Heleno, como ideólogo e ativista da direita militar extrema, sem dúvida refletiu, isto é, expressou nos seus atos, segundo o noticiário, suas profundas convicções políticas de grande radicalidade.
Generais golpistas, generais que organizaram a tortura na ditadura, torturadores civis e militares nunca foram de fato punidos pela justiça. Com a ditadura militar, as forças armadas brasileiras assumiram como própria a ideologia da Guerra Fria elaborada nos Estados Unidos e que expressava a visão de mundo e plano de poder da classe dominante norte-americana. As forças armadas do Brasil subordinaram o país ao projeto hegemônico do Tio Sam. No meu restrito entender, já que não sou especialista de assuntos militares, o nome disto é propriamente traição à pátria. Não vejo outro significado adequado.
A “conciliação das elites”, como Florestan Fernandes caracterizou a transição da ditadura militar para a democracia vigiada e cerceada, nos deixou como herança, entre outras e outros, o próprio general Augusto Heleno e Jair Bolsonaro, entre tantos ideólogos e ativistas da Guerra Fria.
Na fábula do escorpião e do sapo, o instinto assassino do escorpião o levou a matar o sapo que o transportava na lagoa a meio caminho e assim selar seu próprio destino de bicho que não sabia nadar. Seria possível dizer que o escorpião, por não atentar suficientemente ao novo contexto da viagem por água, morreu de suas mais profundas “convicções” inscritas na sua natureza de predador violento e fatal. A simbologia animal da fábula nos remete aos corredores do poder em Brasília, cenário improvável da destruição “do interior” da ordem democrática.
A democracia vigiada e cerceada, legada pela ditadura militar, é a “mesma” que temos hoje no Brasil. Essencialmente a mesma com o Partido da Imprensa Golpista ativo e igualmente impune, com a extrema direita no interior do aparelho de estado, no parlamento, no sistema jurídico, nas polícias e nas forças armadas, na comunicação, com a instrumentalização da religião como ideologia reacionária, etc. Tudo muito familiar pra quem viveu a ditadura militar. Alguém duvida? Acho que não. Estou aqui cumprindo o maçante papel de “repetir o óbvio”.
O que já era “óbvio” na derrocada da ditadura e na transição a meias que os representantes do regime militar conseguiram administrar a favor da impunidade de corruptos e assassinos, alguns protegidos por fardas, outros por terno e gravata, segue evidente na impunidade dos mandantes e administradores da micareta golpista do 8 de janeiro. A “baderna” organizada em Brasília era parte de um plano compreensivo de subversão violenta da ordem política desta nossa pobre democracia que já nasceu com óbvias desvantagens de filha “bastarda”, portando o estigma da sua condição de serviçal dos poderes de sempre da anêmica república brasileira.
Trabalhando “por etapas”, a justiça hoje põe a descoberto o segundo escalão militar do golpe frustrado. Neste ritmo, teremos que aguardar ainda algum tempo a punição dos mandantes. No intervalo, os grupos e os ativistas mais afoitos da extrema direita terão tempo e ocasião para mais ações como o recente atentado terrorista contra o STF que vitimou um “pacato” cidadão membro das milícias bolsonaristas movido por apocalípticas convicções da luta cósmica “entre o bem e o mal” que esconde, por parte de alguns, interesses materiais bem específicos, em outros expressa as profundas frustrações, humilhações e a opressão do sistema da chamada ordem competitiva “meritocrática”, ordem que alimenta seus mais convictos defensores entre as variadas vítimas do próprio sistema num processo perverso, paradoxal para o observador externo, mas não menos efetivo.
Hegel observou que história parece se repetir duas vezes em seus episódios mais significativos. A primeira vez como tragédia, a segunda como farsa, completou Marx. No caso do Brasil, tragédia e farsa parecem se repetir continuamente, mutuamente implicadas. Nossas tragédias têm algo de farsa, nossas farsas muito de tragédia, no exemplo do golpe de 2016, repetindo no contexto do século XXI, a coalizão antipopular, antidemocrática e antinacional do golpe de 1964 que no século XX atrasou o relógio da história nacional em, pelo menos, meio século.
Em 2024 a democracia brasileira vive ainda à sombra de golpistas nos escritórios da Faria Lima, nas instituições, nos meios de comunicação, devidamente protegidos, distantes dos tiozinhos que carregam explosivos, atuam sobre os discursos de ódio e terminam mortos antes de causar a destruição que planejaram.
O terrorista “solitário” de Brasília pode ser considerado um “suicidário” do bolsonarismo, assim como os tios e as tias do 8 de janeiro, tropa de choque amadora do golpe planejado por profissionais, podem ser considerados, com suas graves punições legais, como agentes e vítimas da violência política comandada dos quartéis e dos escritórios.
O inacreditável Flávio Bolsonaro escreve no X que planejar golpes e assassinatos não é crime se não há um golpe e assassinatos de fato. De onde se conclui que se alguém planejar algum atentado contra o nobre político filho do ex-presidente (que a sua fé em Deus evite e o proteja de tal sorte!) ele deve, se tiver conhecimento, aguardar pelo fato para pedir que a justiça intervenha.
*Marcelo Guimarães Lima é artista plástico, pesquisador, escritor e professor.
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