Um crime de raça e de classe

Imagem: ColeraAlegria
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por OSVALDO COGGIOLA*

Comentário sobre o assassinato de João Alberto Silveira Freitas

O assassinato de João Alberto Silveira Freitas, homem negro conhecido como Beto pelos amigos, espancado e morto a 19 de novembro por seguranças brancos em unidade do supermercado Carrefour em Porto Alegre, suscitou uma onda de indignação nacional. Beto tinha 40 anos e deixa a sua mulher, Milena Borges Alves, 43 anos, cuidadora de idosos. Beto morava com a sua mulher em uma comunidade na Vila Farrapos, zona norte de Porto Alegre, onde era bastante querido pelos vizinhos. Ele ganhava a vida com bicos, em pequenos trabalhos feitos como pintor e pedreiro. Os seguranças bateram a cabeça dele no chão por diversas vezes e Beto clamava por socorro e pedia para respirar, na presença de sua mulher, que foi impedida de se aproximar.

Os assassinos, um homem de 24 anos e outro de 30 anos, foram presos em flagrante. Um deles é policial militar e foi levado para presídio militar. O outro é segurança da loja e está em prédio da Polícia Civil. A investigação trata o crime como homicídio qualificado. Nas imagens que circulam nas redes, é possível ver os dois homens vestindo roupa preta, comumente usada por seguranças, dando socos no rosto da vítima, que está no chão. Uma mulher que estava próxima filmou a ação dos agressores. Em seguida, já com sangue espalhado pelo chão, outras pessoas apareceram em volta do homem agredido, enquanto os agressores continuavam tentando imobilizá-lo no chão. Uma equipe do Samu tentou reanimar o homem depois do espancamento, mas ele morreu no local. Análises iniciais dos departamentos de Criminalística e Médico-Legal do Instituto-Geral de Perícias (IGP) do Rio Grande do Sul apontaram asfixia como causa da morte. Como no caso de George Floyd nos EUA, que se revela um padrão internacional.

Os elementos racistas do crime são gritantes. Carrefour, multinacional de origem francesa, possui um histórico de casos de violência racial nas suas dependências, apesar das inúmeras manifestações e denúncias dos movimentos negros sobre as práticas racistas. O crime de 19 de novembro reafirma a existência de um padrão institucionalizado de desrespeito e violência destinado à população negra por parte dessa multinacional. Que vem de longe. Em 2009, tomado por suspeito de um crime impossível – o roubo do seu próprio carro – o funcionário da USP, Januário Alves de Santana, negro, foi submetido a uma sessão de espancamentos com direito a socos, cabeçadas e coronhadas, por cinco seguranças do Hipermercado Carrefour de São Paulo. Os exemplos, dezenas e denunciados, poderiam se multiplicar.

Não se deve esquecer, porém, que os assassinos, incluindo o PM que ali se encontrava “trabalhando” ilegalmente (com pleno conhecimento da firma empregadora, que deveria ser levada à Justiça apenas por esse motivo) agiam segundo ordens e treinamento fornecidos pela empresa terceirizada de segurança à serviço do hipermercado, chamada Vetor, e pelo próprio Carrefour. Explorados transformados em assassinos de outros explorados, em função do lucro capitalista. Se trata de um padrão de “proteção da propriedade”. A bestialidade à serviço do lucro capitalista, nos mínimos detalhes e até o último centavo, inclusive diante da suspeita (que não passava disso, presumivelmente) de perda de uns míseros caraminguás.

Os assassinos serão traduzidos perante a Justiça, e provavelmente sofrerão pesadas penas de prisão (o PM implicado já foi separado da corporação), enquanto seus mandantes farão declaração “humanitárias” e promessas de revisar seus “sistemas de segurança”. Talvez, até farão alguma doação (o lucro de uns poucos minutos de operação da empresa) para a família da vítima. No Brasil, como em outros países da América Latina, o racismo está a serviço e se fusiona com a exploração e a opressão de classe. Para lutar contra o racismo, lutar contra o capitalismo, por um governo dos trabalhadores da cidade e do campo. Para lutar contra o capitalismo, acabar com o racismo nas fileiras dos próprios explorados. Que Carrefour e Vetor sejam responsabilizadas pelo crime, antes que os próprios imputados. E isso é prá já.

*Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Questões de história contemporânea (Oficina de livros).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Milton Pinheiro Armando Boito Luiz Eduardo Soares José Geraldo Couto Gabriel Cohn João Sette Whitaker Ferreira Carlos Tautz Tadeu Valadares Annateresa Fabris Bernardo Ricupero Bruno Fabricio Alcebino da Silva Maria Rita Kehl Juarez Guimarães Everaldo de Oliveira Andrade Dênis de Moraes Antônio Sales Rios Neto Luiz Werneck Vianna Jean Pierre Chauvin Luis Felipe Miguel Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Eduardo Borges Celso Frederico Marilia Pacheco Fiorillo Gilberto Maringoni João Adolfo Hansen Leda Maria Paulani Vanderlei Tenório Benicio Viero Schmidt José Raimundo Trindade Matheus Silveira de Souza Valerio Arcary Manuel Domingos Neto Michael Löwy Paulo Capel Narvai Francisco Fernandes Ladeira Ronaldo Tadeu de Souza Renato Dagnino Eugênio Bucci Vladimir Safatle Daniel Afonso da Silva Afrânio Catani Celso Favaretto Vinício Carrilho Martinez Leonardo Boff Ari Marcelo Solon Eliziário Andrade Airton Paschoa Denilson Cordeiro Daniel Brazil Ladislau Dowbor Flávio R. Kothe João Carlos Loebens Paulo Fernandes Silveira Eleonora Albano Jorge Branco Antonio Martins Francisco Pereira de Farias Salem Nasser Thomas Piketty Marcos Silva Kátia Gerab Baggio Jean Marc Von Der Weid Fernão Pessoa Ramos Liszt Vieira Gilberto Lopes Leonardo Avritzer Luiz Bernardo Pericás Paulo Martins Osvaldo Coggiola Flávio Aguiar Chico Alencar José Dirceu Alexandre de Lima Castro Tranjan Bruno Machado José Machado Moita Neto João Lanari Bo Alexandre de Freitas Barbosa João Carlos Salles Paulo Sérgio Pinheiro Heraldo Campos Fernando Nogueira da Costa Elias Jabbour Plínio de Arruda Sampaio Jr. Fábio Konder Comparato Otaviano Helene Bento Prado Jr. Claudio Katz Sandra Bitencourt Lucas Fiaschetti Estevez Berenice Bento Luiz Renato Martins Marcelo Guimarães Lima Paulo Nogueira Batista Jr Ricardo Antunes Slavoj Žižek Walnice Nogueira Galvão Luiz Carlos Bresser-Pereira Henri Acselrad Luciano Nascimento Henry Burnett Andrés del Río Eugênio Trivinho Andrew Korybko Dennis Oliveira José Costa Júnior Ricardo Abramovay Ricardo Musse João Feres Júnior Ricardo Fabbrini Eleutério F. S. Prado Marilena Chauí Marjorie C. Marona Sergio Amadeu da Silveira Priscila Figueiredo André Singer Marcelo Módolo Rubens Pinto Lyra Chico Whitaker Manchetômetro Lorenzo Vitral Luiz Marques Jorge Luiz Souto Maior Antonino Infranca Érico Andrade Marcus Ianoni Lincoln Secco Caio Bugiato Mário Maestri Yuri Martins-Fontes Daniel Costa Rodrigo de Faria Ronald León Núñez Luís Fernando Vitagliano Boaventura de Sousa Santos Samuel Kilsztajn Carla Teixeira João Paulo Ayub Fonseca Gerson Almeida Marcos Aurélio da Silva Rafael R. Ioris Francisco de Oliveira Barros Júnior José Luís Fiori André Márcio Neves Soares Alexandre Aragão de Albuquerque Alysson Leandro Mascaro Julian Rodrigues Luiz Roberto Alves Remy José Fontana Michael Roberts Atilio A. Boron Michel Goulart da Silva Leonardo Sacramento Ronald Rocha Igor Felippe Santos Anderson Alves Esteves Tarso Genro José Micaelson Lacerda Morais Anselm Jappe Tales Ab'Sáber Mariarosaria Fabris

NOVAS PUBLICAÇÕES