Por JEAN PIERRE CHAUVIN*
A chamada Era Digital estimulou o consumo imediatista de informações (falsas ou não); acelerou a confusão entre informação e saber
“Quem não aparece no jornal, não aparecerá nem no livro, nem no palco, nem em parte alguma – morrerá. É uma ditadura” (Lima Barreto, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá).
“– Vamos embora. Isso aqui não vai a lugar nenhum. Rodar 100 mil exemplares que ninguém vai ler. Vamos embora para a televisão. Vamos trocar a profundidade pelo alcance” (Hedyl Valle Jr. a Paulo Henrique Amorim, quando este dirigia o Jornal do Brasil na década de 1980).
Em 1919, uma personagem de Lima Barreto questionava o papel atribuído ao jornal e, por extensão, à imprensa, denominando-a “quarto poder”. Não terá sido coincidência o fato de Paulo Henrique Amorim recorrer ao mesmo epíteto, no livro que publicou em 2015. Obviamente, o contexto era bem outro: mais de cem anos separavam O Quarto Poder – uma outra história de Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. O protagonista barretiano protestava contra a necessidade de o sujeito circular nos jornais para ser reconhecido dentro e fora deles; Amorim denunciava as relações controversas entre nossa imprensa e os poderosos (antes e durante a ditadura) em nome da “liberdade”, sob a ingerência de representantes dos EUA.
Para além de questionar as relações entre Tio Sam e Zé Carioca, ao longo do século XX, o que se está a discutir é a onipresença dos meios de comunicação de massa na formação do senso comum – este poderoso repertório de frases-feitas raramente submetidas à verificação por parte de seus usuários. Não será preciso recordar o impacto nefasto de alguns políticos e “filósofos” negacionistas, em nossa história recente…
A chamada Era Digital, sedimentada a partir da década de 1980, estimulou o consumo imediatista de informações (falsas ou não). Além disso, acelerou a confusão entre informação e saber, preparando o terreno para a falsa equiparação entre dogma e verdade; opinião e conhecimento; argumento e achismo – o que se verifica na maneira como os trabalhadores intelectuais são chancelados, ou não, pelas enciclopédias digitais editáveis, pelos canais de entretenimento e pelas redes sociais.
Se quiserem um exemplo, basta ver como parte dos alunos, durante a aula, recorre sem qualquer constrangimento aos buscadores da internet para “complementar” – quando não contestar – o dado apresentado ou a reflexão desenvolvida pelo professor. Por outro lado, uma das ironias mais perversas está no fato de o “preparador de conteúdo” se gabar das trabalhosas “pesquisas” que empreende, como forma de certificar a qualidade do produto que oferece no canal que ele mesmo administra.
Ironia ainda maior é que empreendedores digitais recorram a livros de sua autoria para consolidar a presumida relevância cultural. É emblemático que o lançamento de obras assinadas por celebridades de ocasião renda filas quilométricas. Ora, na maioria dos casos não é o conteúdo das páginas que necessariamente interessa aos seus admiradores; mas a possibilidade de postarem fotos com o ídolo nas redes sociais, portando um bem cultural (o livro) que se traduza em capital simbólico (a faceta de leitor).
Decerto, isso não significa que todo administrador de canal prepare conteúdos e outros produtos com qualidade questionável; o que se está a discutir é o papel da internet como meio de validação compulsória de profissionais rigorosos, que acumulam décadas de atividade: professores, médicos, linguistas, jornalistas, filósofos, sociólogos, economistas, (astro)físicos, matemáticos, artistas, gastrônomos etc.
Essa reflexão é antiga, bem entendido. De Guy Debord (em A Sociedade do Espetáculo, de 1967) a Byung-Chul Han (vide No Enxame, traduzido no país em 2014), o que continua em debate é o papel das mídias como veículo para certificação de si mesmo e/ou do outro. Por sinal, vulgarizou-se a ideia de que a relevância de um “preparador de conteúdos” seja proporcional à quantidade de seguidores e membros do seu canal… Eis a implacável lógica dos antigos índices de audiência a contaminar o espaço supostamente livre, inovador e autônomo das plataformas digitais.
*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete Falas: ensaios sobre tipologias discursivas.
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