A arte multifacetada

Josef Albers, Homage to the Square: Broad Call, fall 1967
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Reflexões sobre escritores e suas obsessões

Na Literatura, como em outras artes, há dois tipos bem definíveis de artista: o que experimenta de maneira insaciável formas diferentes, explorando ângulos, texturas, materiais, técnicas, linguagens, caminhos e bifurcações, e os que mergulham de forma obsessiva num objeto de estudo (de desejo?), traçando uma rota de aprofundamento progressivo, numa tentativa heroica e vã de chegar ao âmago, ao deslindamento final e definitivo, ao cristal límpido e absoluto.

Há outras motivações, sabemos, mas fiquemos com estes dois opostos, por enquanto. E antes que optemos pelo generalista ou pelo especialista (categorias que não funcionam muito bem quando se trata de arte), é importante fazer uma ressalva: esse tipo de classificação não implica num juízo de valor.

De fato, há experimentadores ruins e obsessivos maravilhosos, e vice-versa. A radicalidade sintética do haicai, por exemplo, é uma das mais traiçoeiras armadilhas para os poetas iniciantes. Bashô é genial, mas tem uma legião universal de seguidores medíocres, com poucas exceções.

Como não admirar o mergulho suprematista de um Malevitch, que lhe custou caro na Rússia stalinista, e ao mesmo tempo não se espantar com seu retorno ao figurativismo? E aqui surge mais um dado complicante: há artistas que são “especialistas” em certa fase da vida e “generalistas” em outra. Mestres absolutos em dado momento, e auto diluidores em outro. Os que tem vida longa são mais visados por esse tipo de crítica, é óbvio, uma vez que o conjunto de obras tende a ser desigual quanto mais vasto for.

Alguém supõe que Mozart pudesse manter a excelência se vivesse mais quarenta anos? Ou Rimbaud? Será mais fácil ser gênio morrendo jovem? Novamente, não podemos estabelecer uma regra. Há artistas geniais e longevos, que criaram obras-primas provocativas na chamada terceira idade, como Verdi, que estreou sua ópera Falstaff (baseada na peça As Alegres Comadres de Windsor, de Shakespeare) aos 80 anos, ou Oscar Niemeyer, que inaugurou o Museu de Arte Contemporânea de Niterói com 89 anos (e continuou criando até os 105).

Outros explodiram cedo, como fogos de artifício, passando o resto da vida tentando reacender as cinzas de sua obra gloriosa. Ou procurando outros caminhos, movidos por uma inquietação que, dependendo do caso, pode ser confundida com falta de objetividade, oportunismo, pura sobrevivência ou até relaxamento estético. E há o inevitável apelo do mercado editorial, que joga seus dados em obra de fácil digestão, consumidas rapidamente e trocadas por outras. Muito citado no Brasil é o caso de Jorge Amado, radical em suas primeiras obras, que à medida em que se torna um grande vendedor de livros, cede à tentação do erotismo temperado com dendê, como apontam vários críticos.[1]

A literatura brasileira é terreno onde medra toda espécie de escritor. De contistas geniais e sintéticos, como Dalton Trevisan, até caudalosos autores de obra pouco lembrada, como Otávio de Faria, cuja Tragédia Burguesa, prevista para vinte volumes, teve treze publicados em vida e mais dois póstumos. No entanto, estes dois exemplos são obsessivos, cada qual a seu modo. Enquanto um esmiúça a relação de amor, ciúme e ódio entre joões e marias, outro busca dissecar a sociedade carioca sob o ponto de vista de classe, sem desviar o foco do cenário.

A literatura brasileira contemporânea, assim como a música ou as artes plásticas, é multifacetada e permeável a muitas influências, típicas de uma era midiática e globalizante. Apesar disso, ainda é possível observar obsessões estéticas criativas (ou paralisantes, dependendo do caso).  A legião de epígonos de Rubem Fonseca, por exemplo, buscando emular o clima dos primeiros contos do mestre. A empreitada ambiciosa de Alberto Mussa, construindo uma história do Rio de Janeiro por cinco séculos, em tramas policiais.

A lupa de Chico Lopes sobre a vida interiorana das pequenas cidades em modificação/estagnação num Brasil que é sempre um conjunto de frustrações. Escritoras feministas que rompem amarras e, paradoxalmente, se enredam em novos cercados. O esforço do escritor Chico Buarque em alcançar a excelência do compositor Chico Buarque. Os cronistas da periferia que martelam temas essenciais, porque é impossível não falar sobre violência, preconceito, fome ou miséria, assuntos que atravessam séculos sem perder a urgência. Cada qual a seu modo sustenta suas obsessões da forma possível, com as ferramentas que têm ao seu alcance.

Arte permite várias visões, interpretações, audições e leituras, e essa natureza multiforme encerra toda a graça e mistério da coisa. Espelho distorcido do mundo em que vivemos, pode ampliar ou reduzir qualidades e defeitos, mas nunca deixa de ser um termômetro das ansiedades da época em que foi produzida. Feita por casmurros obcecados ou panteístas delirantes, sempre pode nos fornecer algumas chaves para compreensão do mundo, do céu ou do inferno em que vivemos.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Nota


[1] vale conferir Motta, Carlos Guilherme, Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974) (Editora 34).

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marcelo Guimarães Lima Daniel Costa Gabriel Cohn Dennis Oliveira Valerio Arcary Bruno Machado João Carlos Loebens Lucas Fiaschetti Estevez Fernão Pessoa Ramos Luiz Eduardo Soares Annateresa Fabris Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcos Silva Ronald León Núñez Juarez Guimarães Jean Marc Von Der Weid Marcus Ianoni Celso Favaretto Milton Pinheiro Chico Whitaker Lincoln Secco Bento Prado Jr. Tales Ab'Sáber Eugênio Bucci Marcos Aurélio da Silva Antonino Infranca Paulo Capel Narvai Elias Jabbour Renato Dagnino Walnice Nogueira Galvão Ricardo Abramovay Ricardo Fabbrini Luciano Nascimento Leonardo Sacramento Remy José Fontana Eduardo Borges Eliziário Andrade Alexandre de Lima Castro Tranjan André Márcio Neves Soares José Machado Moita Neto Rodrigo de Faria Ronaldo Tadeu de Souza Leonardo Boff Michael Löwy Mário Maestri Érico Andrade Everaldo de Oliveira Andrade Sergio Amadeu da Silveira Bruno Fabricio Alcebino da Silva Anderson Alves Esteves Armando Boito Francisco Pereira de Farias Heraldo Campos Ricardo Antunes Marcelo Módolo José Raimundo Trindade Fernando Nogueira da Costa Alexandre de Freitas Barbosa Manuel Domingos Neto João Adolfo Hansen Afrânio Catani Sandra Bitencourt Antônio Sales Rios Neto Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Marques Atilio A. Boron Andrés del Río Matheus Silveira de Souza Rubens Pinto Lyra Airton Paschoa Anselm Jappe Ladislau Dowbor Berenice Bento Jorge Branco José Micaelson Lacerda Morais Daniel Afonso da Silva José Luís Fiori Gilberto Maringoni Priscila Figueiredo Antonio Martins João Sette Whitaker Ferreira Manchetômetro Francisco Fernandes Ladeira Ronald Rocha Jean Pierre Chauvin Vanderlei Tenório João Feres Júnior Luis Felipe Miguel Marilia Pacheco Fiorillo Marilena Chauí Celso Frederico Gerson Almeida Marjorie C. Marona Claudio Katz Igor Felippe Santos Eugênio Trivinho José Costa Júnior Liszt Vieira Paulo Martins Kátia Gerab Baggio José Dirceu Gilberto Lopes Fábio Konder Comparato Paulo Nogueira Batista Jr João Carlos Salles Thomas Piketty Bernardo Ricupero Salem Nasser José Geraldo Couto Mariarosaria Fabris Carlos Tautz Paulo Sérgio Pinheiro Paulo Fernandes Silveira Benicio Viero Schmidt Eleutério F. S. Prado Slavoj Žižek Eleonora Albano Vladimir Safatle André Singer Luiz Roberto Alves Luiz Carlos Bresser-Pereira Flávio Aguiar Tarso Genro Vinício Carrilho Martinez Maria Rita Kehl Michel Goulart da Silva Daniel Brazil Otaviano Helene Michael Roberts Luiz Renato Martins Andrew Korybko Flávio R. Kothe Chico Alencar Henri Acselrad Leda Maria Paulani Luís Fernando Vitagliano Carla Teixeira Tadeu Valadares Boaventura de Sousa Santos Ricardo Musse Alysson Leandro Mascaro Denilson Cordeiro Luiz Werneck Vianna Samuel Kilsztajn Rafael R. Ioris Julian Rodrigues João Lanari Bo Osvaldo Coggiola Leonardo Avritzer Francisco de Oliveira Barros Júnior João Paulo Ayub Fonseca Jorge Luiz Souto Maior Caio Bugiato Luiz Bernardo Pericás Lorenzo Vitral Dênis de Moraes Henry Burnett Alexandre Aragão de Albuquerque Ari Marcelo Solon Yuri Martins-Fontes

NOVAS PUBLICAÇÕES