O imperialismo e a disputa de poder no século XXI

Imagem: Aleksejs Bergmanis
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por BRUNO BEAKLINI*

As capacidades de projeção imperialistas e as formas de arranjo do Sistema Internacional reproduzem formas do capitalismo

Uma das tarefas mais difíceis na análise do Sistema Internacional e em especial de algumas áreas mais sensíveis como a economia política internacional é dialogar com a história contemporânea e aplicar uma correta periodização. Minha pesquisa mais recente foi iniciada com a intenção de fazer um relevo do período que seria verificável no capitalismo mundial pós-2008 e anterior à pandemia do novo Coronavírus, segundo a classificação da Organização Mundial da Saúde (que decretou pandemia em 11 de março de 2020). Embora não seja necessariamente um objeto de polêmica ou o ponto central para interpretar a virada e perda de poder do mundo ocidentalizado durante e logo após o desastroso governo de Donald Trump, esse debate é necessário por algumas razões.

A mais sensível é porque os conceitos são reais ou, ao menos, têm a intenção de interpretar o real, vivido como experiência concreta, e não apenas o universo imaginário (que também forma o real vivido). Ou seja, parto da premissa de que existe imperialismo e existem potências com capacidade de agendas imperiais, incluindo avanços em escalas regionais. A outra situação bem concreta e em diálogo com a primeira é que o poder global não impede o jogo regional ou mesmo continental, mesmo que este seja muito heterodoxo e fira interesses múltiplos simultaneamente. Um exemplo disso é o caso da Turquia na Era Erdogan, ainda dentro do guarda-chuva da OTAN e com política externa extremamente agressiva e contrariando várias potências regionais e globais simultaneamente. Podemos afirmar estas mesmas capacidades para outras potências médias do G20 e países com capacidades semelhantes, como Irã, Paquistão e Malásia.

Embora a presença militar em escala planetária seja ainda exclusiva dos Estados Unidos, algumas outras potências também são herdeiras do colonialismo do século XIX e da Era das Navegações, tais como França e Reino Unido. Também existem impérios tardios que vão se alastrando na esteira do Império matriz, tal é o caso dos EUA. Este país é classificado como promotor do imperialismo na maior parte dos estudos de pós Segunda Guerra e, em especial, ao final da Guerra Fria e Bipolaridade.

Outra razão prática do debate sobre o imperialismo é reconhecer suas formas contemporâneas (saindo da caricatura). Imperialismo não é apenas uma invasão de fuzileiros navais estadunidenses, mas também uma forma superior do capitalismo, e nisso Lênin estava correto (ao menos na classificação), mas não só. Antigos impérios muitas vezes obedecem a lógicas geopolíticas e étnico-territoriais muito anteriores da formação moderna destes Estados. Por exemplo, na tradição russo-bizantina, a União Soviética agiu de forma imperialista no Afeganistão, seguindo a trajetória da disputa imperial anglo-russa nesta mesma região (conhecido como o Grande Jogo). A relação da China com o Vietnã recém-unificado e liberto da invasão dos EUA (guerra sino-vietnamita de 1979) foi semelhante também. Obedecia a uma lógica de rivalidade milenar, ainda que sob os novos formatos dentro da etapa final da guerra fria ou o mundo bipolar. De forma genérica, o jogo de poder na Ásia pode ser assim classificado, com exceção do Grande Oriente Médio (Mundo Árabe e boa parte do Mundo Islâmico), onde incide a luta contra o colonialismo sionista e as perversas tratativas com o fim do Império Otomano, como no “acordo” Sykes-Picot.

Sistema Cinco Olhos e a legitimidade questionada

No século XXI, as capacidades de projeção imperialistas e as formas de arranjo do Sistema Internacional, ao menos no campo da economia, reproduzem formas do capitalismo. Hoje, EUA e o seu Sistema Cinco Olhos (junto da Grã Bretanha, Canadá, Austrália e Nova Zelândia) e a União Europeia (empatadas as últimas duas), já não incidem tanto na área core da Ásia. Apesar de ser uma nota positiva, muito do capitalismo se confunde com a integridade da economia global e está sob alguma tutela da vigilância estadunidense. Índia, Irã e Turquia, em segundo plano, também podem exercer pressões em alguma escala, gerando excedentes de poder de modo a articular interesses nacionais com interesses domésticos de outros países. É preciso afirmar algo delicado: é um gesto legítimo que países fronteiriços ou de territórios contíguos, desde que não sejam povoados por colonos invasores (como na Palestina Ocupada em 1948 e em 1967), incidam e sejam influenciados por seus demais vizinhos, fazendo política para além de suas fronteiras e ampliando áreas de influência direta.

Esta legitimidade é radicalmente distinta de fazer guerras de agressão, ou empregar mercenários salafistas e takhfiristas (como os do Daesh, autodenominados de “Estado Islâmico” e sequestrar pautas e causas que a princípio seriam justas). Especificamente agindo contra a legitimidade internacional, temos a situação de monarquias árabes do Golfo, como Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Arábia Saudita. Como formador de ampla instabilidade e agressão permanente, desde a sua “invenção”, está incluído ao “Estado de Israel”, a entidade colonial por excelência. Outro debate urgente seria a respeito dos poderes médios da constelação do G20 e afins, ampliando o conceito de poder médio (Middle Power).

Entre a diversidade e a conformação global, o planeta é mais complexo do que os manuais de negócios internacionais. A constelação de países e territórios autônomos ou semiautônomos são sistemas políticos, formas de governo e regimes distintos, mas em termos de Economia Política Internacional, a soma da concertação estratégica de frações da classe dominante com a elite dirigente pode reproduzir uma projeção no Sistema Internacional ou com este associado. Observemos a corrida ao “eldorado africano”, uma das bases do renascimento de nosso continente co-irmão: China, França, Turquia e até o Brasil (em um belo exercício de cooperação e competição no continente africano, mas dotado de críticas) disputam ou disputaram espaços importantes, além dos EUA de sempre. Há cooperação Sul-Sul, mas sempre dependemos de arranjos locais, política doméstica ou mesmo da correlação de forças com o “centro do ocidente”.

Igualmente é válido debater o tema, pois, quase sempre, o modelo do século XIX, onde há um conjunto de alianças locais que se beneficia da pressão externa (ou da desnacionalização das riquezas e da perda de soberania popular) ainda existe e se reproduz. O domínio interno e associado pode ser motivado por interesses, muitas vezes, de motivação original ideológica (sentido de pertencimento, colonialismo e ausência de decolonialidade), e se posicionam, concomitantemente, ao conflito distributivo interno.

Cabe também observar que a complexidade do tema pede um debate à altura de sua ameaça, incluindo versões muito atuais, como os efeitos quase sempre nefastos da Cooperação Jurídica Internacional (temas permanentemente abordados por este analista); da interpenetração das redes sociais e de grupos de desinformação (o Brasil e a relação com neopentecostais e ultraliberais do Partido Republicano exemplificam o problema); e também de perigosas teses absurdas da “conspiração globalista”.

Por fim, conspiração e presença externa, assim como espionagem e guerras híbridas são assuntos tão evidentes e sérios, que não podemos ser irresponsáveis em confundi-las com absurdas e delirantes “teorias conspiratórias totalizantes”, sem evidências nem conceitos. O debate urge assim como a correta classificação conceitual.

*Bruno Beaklini é cientista político e professor de relações internacionais. Editor dos canais do Estratégia & Análise.

Publicado originalmente na Revista Manutenção.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marilena Chauí Carlos Tautz Marcos Silva Leda Maria Paulani Alexandre de Freitas Barbosa Kátia Gerab Baggio Vinício Carrilho Martinez Marcos Aurélio da Silva Anderson Alves Esteves Rodrigo de Faria Bruno Fabricio Alcebino da Silva Fernando Nogueira da Costa Lincoln Secco Gabriel Cohn Andrés del Río Tadeu Valadares João Adolfo Hansen Sergio Amadeu da Silveira Mário Maestri Walnice Nogueira Galvão Francisco de Oliveira Barros Júnior Celso Favaretto Everaldo de Oliveira Andrade Tarso Genro Claudio Katz Renato Dagnino Mariarosaria Fabris Leonardo Avritzer João Carlos Salles Bernardo Ricupero José Micaelson Lacerda Morais Eugênio Trivinho Vladimir Safatle Carla Teixeira Andrew Korybko Milton Pinheiro José Costa Júnior Dennis Oliveira Marcus Ianoni Luiz Roberto Alves Lucas Fiaschetti Estevez Paulo Capel Narvai Michel Goulart da Silva Michael Löwy Jean Pierre Chauvin João Paulo Ayub Fonseca Marilia Pacheco Fiorillo Annateresa Fabris Luiz Eduardo Soares Paulo Sérgio Pinheiro Leonardo Boff Gerson Almeida Igor Felippe Santos Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Chico Alencar Ari Marcelo Solon Luiz Renato Martins Matheus Silveira de Souza Sandra Bitencourt Rafael R. Ioris Benicio Viero Schmidt Henry Burnett Airton Paschoa Yuri Martins-Fontes Luiz Carlos Bresser-Pereira Flávio R. Kothe Chico Whitaker Eugênio Bucci Daniel Brazil Antonio Martins Francisco Fernandes Ladeira Elias Jabbour Francisco Pereira de Farias Jorge Luiz Souto Maior José Raimundo Trindade Bruno Machado Luiz Bernardo Pericás Fernão Pessoa Ramos Luis Felipe Miguel Anselm Jappe Denilson Cordeiro José Machado Moita Neto Lorenzo Vitral Remy José Fontana Armando Boito Celso Frederico Paulo Martins Ricardo Musse Marcelo Módolo Luiz Werneck Vianna Daniel Costa Salem Nasser Osvaldo Coggiola João Feres Júnior José Luís Fiori Berenice Bento Afrânio Catani Eduardo Borges Marjorie C. Marona Dênis de Moraes Manchetômetro Gilberto Lopes Tales Ab'Sáber Ronaldo Tadeu de Souza Paulo Fernandes Silveira Henri Acselrad João Sette Whitaker Ferreira Atilio A. Boron Slavoj Žižek Alexandre Aragão de Albuquerque Alexandre de Lima Castro Tranjan Eleutério F. S. Prado Eleonora Albano Antonino Infranca Ricardo Antunes Flávio Aguiar Priscila Figueiredo Rubens Pinto Lyra Ricardo Fabbrini Alysson Leandro Mascaro Luciano Nascimento Samuel Kilsztajn André Márcio Neves Soares Boaventura de Sousa Santos Bento Prado Jr. Leonardo Sacramento Plínio de Arruda Sampaio Jr. Julian Rodrigues Manuel Domingos Neto Gilberto Maringoni João Lanari Bo Luiz Marques João Carlos Loebens Michael Roberts Daniel Afonso da Silva José Dirceu Eliziário Andrade Valerio Arcary Luís Fernando Vitagliano Fábio Konder Comparato Ladislau Dowbor Liszt Vieira Ronald Rocha Jorge Branco Ronald León Núñez Marcelo Guimarães Lima Otaviano Helene Antônio Sales Rios Neto Ricardo Abramovay Paulo Nogueira Batista Jr Maria Rita Kehl Heraldo Campos Jean Marc Von Der Weid Caio Bugiato Juarez Guimarães André Singer Érico Andrade Vanderlei Tenório Thomas Piketty José Geraldo Couto

NOVAS PUBLICAÇÕES